Os filmes de Gus Van Sant

1 INTRODUÇÃO

De início, vale apontar que

Gus Van Sant, que ingressara na arte através da pintura, como autodidata, desenvolveu uma idéia de cinema a partir dos filmes experimentais dos anos 60, mormente os nova-iorquinos. Embora suas primeiras referências tenham sido cineastas como Stan Brakhage, Jonas Mekas e Ron Rice, ao elaborar seus filmes Van Sant adota um modelo que reúne, segundo ele próprio, o visualmente tradicional e o intelectualmente abstrato.[1]

Ele consegue destaque no cinema com os três primeiros filmes, que dirige no circuito underground/independente/indie norte-americano: Mala noche (1985), Drugstore Cowboy (1989) e Garotos de programa (1991). Em 1993, dirige seu primeiro filme de estúdio Até as Vaqueiras Ficam Tristes, filme que vai mal de bilheteria. Mas Van Sant dá a volta por cima e se firma em Hollywood, com Um Sonho Sem Limites (1995) e os três filmes seguintes: Gênio Indomável (1997), grande sucesso, inclusive indicado ao Oscar; Psicose (1998), remake crucificado pela crítica e Encontrando Forrester (2000).

Em 2002, com Gerry, Van Sant sinaliza querer voltar a um caminho mais autoral, poético, em seus filmes. Mas é com Elefante (2003) que ele efetivamente consegue criar uma obra que se aproxima bastante da cultura indie de seus primeiros filmes, mas mantendo o primor estético já apresentado desde Psicose e a juventude como temática, questão que mesmo em Hollywood não deixou de nortear seus filmes.

Last days e Paranoid Park sucedem o filme de 2003, novamente Van Sant utiliza-se do prestígio conquistado em sua trajetória por Hollywood para fazer filmes com bom financiamento, mas não ligados à grande indústria cinematográfica. De tal forma, ele mantém forte liberdade autoral nestes, aprimorando a estética, a narrativa e suas temáticas.

Em vista disso, este trabalho pretende abordar primordialmente os três últimos filmes longas-metragens lançados no Brasil: Elefante, Last Days e Paranoid Park. A escolha dos filmes partiu de algumas observações: tais filmes possuem de modo mais forte uma marca autoral do realizador (que também atua como roteirista e montador nestes filmes); refletem um cineasta mais maduro (que já passou pelo cinema independente e por Hollywood); demonstram grande liberdade estética na construção de um estilo próprio e por serem obras de um diretor premiado e consagrado que escolhe livremente os temas de que quer tratar e o modo de abordagem destes.

Pretende-se investigar na obra do diretor: as principais características temáticas abordadas, o modo peculiar como Van Sant trabalha com os atores, os estratagemas que compõem o estilo de fotografia destes filmes, além da montagem e do som como elementos narrativos e estilísticos.

2 TEMÁTICA E INFLUÊNCIAS

O diretor americano Gus Van Sant figura em um restrito grupo de realizadores com a habilidade de agradar tanto o público mais especializado e segmentado, quanto o mainstream, através de uma linguagem poética e a sua recorrente temática voltada para elementos considerados à margem da sociedade norte-americana.

2.1 LITERATURA BEAT

Claramente influenciado pela literatura Beat, assim como os beats, Gus Van Sant procurava “descobrir a verdadeira América”, explorando o submundo marginal, a América dos drogados como em Drugstore Cowboy (1989), dos outsiders, dos desenganados. Se por um lado os beats tinham os seus escritos como meio de expressão, Gus Van sant usa o cinema como o meio de mostrar a América, sendo que os beats e o diretor (que se considera como um herdeiro do movimento) utilizam-se da arte poética.

A geração Beat teve a sua expressão máxima na década de 60, na qual se destacaram Jack Kerouac, William S. Burroughs e Allen Ginsberg, sendo que os dois últimos fizeram parte do círculo de amizade do diretor. Essa geração foi definida por Jean-Paul Sartre como sendo “The Lost Generation” – A Geração Perdida. Não é por acaso que no início da década de 90, o diretor juntamente com Francis Ford Coppola e o ator Johnny Depp, reuniram-se com a intenção de levar para as telas de cinema uma adaptação do romance On the Road,considerado como a bíblia do movimento Beat, escrito por Jack Keroauc.

Gus Van Sant procura passar o sentimento de angústia, abandono e desespero, através de uma linguagem que beira o poético, sem muito preciosismo ou rigor formal, na tentativa de alcançar um estilo mais livre, sempre possibilitando o improviso somado à inspiração do momento.

“Meus filmes são exercícios poéticos. Nunca quis criar situações de cinema, mas momentos quaisquer”, nas palavras do diretor é possível notar a influência do movimento citado acima, e a sua abordagem poética.

2.2 JUVENTUDE, SEXUALIDADE E MORTE

Em toda sua filmografia, alguns temas são recorrentes. É considerado por muitos como um porta-voz da juventude da pós- modernidade, justificada pela freqüente abordagem dos jovens e de suas angustias, muitas vezes enfocando e tentando apresentar argumentos que expliquem a rebeldia com causa – muitas vezes resultante de um mundo opressor, que de alguma forma impede as pessoas mais jovens de demonstrar seus sentimentos e, por conseqüência, estes sofrem de maneira individual e isolada.

Nos filmes da trilogia da morte – Elefante, Last Days e Paranoid Park – essa concepção de angústia difícil de ser expressada é bem evidente quando o diretor opta por inserir poucos diálogos nas tramas, apresentando personagens que se expressam através de gestos e atitudes cotidianas. De algum modo, Gus Van Sant sempre apresenta a repressão sexual como causadora dos anseios e desgostos da juventude. Homossexual assumido e atuante, o diretor em muitos dos seus filmes coloca em foco a questão da sexualidade explorando a faceta mais psicológica do termo, apresentando personagens jovens, que muitas vezes se vêem indefesos e confusos diante da expressão de sua própria sexualidade. Em Elefante, filme que recria a tragédia de Columbine, os dois personagens, autores da chacina, claramente apresentam não apenas a angústia, mas principalmente a ambigüidade em torno da própria sexualidade, que culmina em uma reação de violência extrema, mas sem, no entanto, com intenção de glamourizá-la.

Pode-se dizer que, nestes seus últimos filmes, Gus Van Sant trata também da questão da morte. Gerry, Elefante, Last Days e Paranoid Park compõem uma seleção de filmes que abordam a morte, mas cada qual com uma abordagem distinta.

Gerry, narra a história de dois amigos perdidos num deserto que se vêem tomados pelo lento desespero à medida que não conseguem encontrar o caminho de casa. A morte, aqui, é acidental e ganha um teor metafísico.

Já em Elefante, a morte em conseqüência dos assassinatos é resultante de desvirtuamentos sociais provocados por jovens sexualmente reprimidos e socialmente deslocados, inseridos em ambientes de abandono ou desamparo familiar. A atmosfera criada em Elefante expõe os alunos de Columbine de uma maneira fria, dando a entender que todos estavam metaforicamente mortos e amorfos e que a chacina representou apenas consolidação de tal fato.

Em Last Days é mostrada uma morte anunciada, baseada no que poderia ter sido os últimos dias de vida de Kurt Cobain, o líder do grupo Nirvana, que se suicidou em 1994. Diferentes dos anteriores, a morte não é de fato apresentada, é insinuada, e perde o foco em relação a deterioração psicológica do personagem. No filme, há novamente a questão da sexualidade,  mais precisamente na ambigüidade das relações entre os personagens.

3 ELENCO

Gus Van Sant nos seus filmes, e principalmente nos três que compõem primordialmente esse estudo, tem grande preocupação na escolha dos atores, preferindo na maioria das vezes amadores ou não-atores, semelhante ao que acontece no neo-realismo em relação. Essa estratégia confere ao filme um caráter de verossimilhança nas interpretações, juntando isso à temática de seus filmes, essa força acaba por chocar o senso comum ao dizer que os jovens realmente possam ser do jeito desses personagens.

Em Elefante o diretor passou a conviver com os alunos da escola em que o filme foi filmado para assim tirar deles suas ações e interações que lhes são cotidianas. Um exemplo nesse filme foi ele ter observado um dos garotos tentando tocar “Sonata ao Luar” de Beethoven, e ter adicionado a cena ao filme.

Essa liberdade de criação dada aos atores também faz parte das características do diretor, é comum o uso de improvisações e sugestões dos atores. Em Last Days o improviso predomina com a busca da naturalidade: a maioria das cenas e dos diálogos são completamente improvisados e as músicas cantadas são inventadas pelos atores.

Sobre a relação de Van Sant com o elenco, Luis Carlos Oliveira Jr. escreveu:

Algo que fica claro no trabalho de Van Sant é a proximidade com os atores (tanto que muitos deles se tornam seus amigos), o que decorre da busca de um conluio entre ele – o autor – e o personagem que cria. É uma aproximação tripla: o diretor com o ator, o ator com o personagem, o diretor com o personagem. Nos seus filmes, Van Sant quer se tornar o personagem (cf. entrevista na Cahiers du Cinéma nº 579). [2]

Podemos concluir que a utilização de atores amadores e o improviso compõem a peculiar forma de relação deste diretor com o elenco, e principalmente com os jovens atores, prova disso:

Gerry, projeto experimental e exercício estético bastante ousado, onde já se nota extrema competência na confecção de atmosfera e no aproveitamento do potencial visual específico do ambiente, originou-se de conversas com os atores Casey Affleck e Matt Damon. Nasce sempre uma relação de proximidade desse encontro entre Van Sant e jovens atores/personagens. [3]

4 MONTAGEM

É imprescindível pensar a montagem ao se trabalhar o estilo de Gus Van Sant, uma vez que o diretor foi montador dos três filmes que aqui abordamos primordialmente: Paranoid Park, Last Days e Elefante (vale destacar também sua atuação como montador em Mala Noche e em Até as vaqueiras ficam tristes).

Mas analisar a montagem dentro do estilo ou de uma linha autoral traçada pelo cineasta propõe-se como um desafio na medida em que se trata de uma área diretamente ligada ao sentido a que cada filme se propõe.

4.1 NARRATIVA NÃO-LINEAR

Uma das características que se vê presente tanto em Last Days, em Paranoid Park e, mais evidentemente, em Elefante é a liberdade ao se trabalhar o tempo nos filmes. Utiliza-se da narrativa não-linear ou da cronologia fragmentada como recurso narrativo – há vários flashbacks e bruscas elipses – mas se mantêm o sentido e a coerência do filme.

No caso de Elefante mais especificamente, o filme possui diversas linhas narrativas, podem ser vistas como linhas separadas por personagens. Mas a história de cada personagem é trabalhada de forma que se intercalam e se repetem momentos que aparecem anteriormente ou posteriormente por outro ponto de vista. E não há prejuízo ao entendimento do filme, muito pelo contrário, utiliza-se da montagem como recurso a auxiliar determinado entendimento que se quer obter. A apresentação da história e dos personagens, o desenvolvimento, a tensão e o ápice da narrativa são bastante dependentes da montagem uma vez que a não-linearidade atua diretamente na busca do ritmo fílmico.

Já quanto a Paranoid Park, vê-se a montagem como uma aproximação do espectador com a diegése (configurada em muito a partir do ponto de vista do protagonista, ou, pode-se dizer, do ponto de vista da memória dele, se pensarmos em seu trauma e no fato de que a história é contada em primeira pessoa). A narrativa segue as lembranças que o protagonista, Alex, vai escrevendo em seu caderno, segue o modo como ele revela os acontecimentos.

Logo nos primeiros minutos do filme, vemos Alex escrevendo em seu caderno e a voz over dele narrando os flashbacks que aparecem. É interessante observar, portanto, que Paranoid Park é um filme que se passa em flashbacks que retratam as memórias que o protagonista narra em seu caderno. Ele conta a história de forma não-linear, revelando aos poucos suas memórias íntimas, como numa cadeia de pensamentos em que um acontecimento liga-se a outro pelo sentido e não por uma questão necessariamente cronológica. Na diegése, todos os fatos a serem mostrados no filme já ocorreram, o jovem está apenas contando o passado, e ele faz isso aos poucos, como se estivesse traumatizado e, então, lembrando-se aos poucos… Ou ainda, como se tivesse receio em revelar o ocorrido e fosse lentamente se libertando desse medo.

Sobre tal, Gabriel Ritter Muniz da Silva afirma em crítica:

A linha narrativa e a montagem sugerem justamente esse aspecto. O filme parece estar sempre em suspensão: várias imagens um tanto desconexas se sucedem em diversos momentos, e conseguimos apenas intuir uma cadeia cronológica. Por não sabermos ao certo em que momento da cronologia se passa a cena que estamos vendo, ela fica suspensa, sem antes nem depois, apenas o momento. Esse procedimento é a tradução perfeita da juventude: não é à toa que um dos bordões mais repetidos pelos jovens seja o carpe diem. É uma juventude que não sabe bem de onde veio, e não tem idéia para onde vai; valoriza apenas o instante presente. [4]

4.2 “JULGAMENTO” E PONTO DE VISTA

Vale destacar outra característica forte de Van Sant, que parte das propostas e roteiros: atuar sobre temas fortes, polêmicos, exercendo certa “neutralidade”, ou seja, a decupagem muitas vezes é feita num sentido de mostrar os fatos de diversas formas ou mesmo de maneira “distante”, deixando a interpretação, o “julgamento”, a escolha, para o espectador.

Em Elefante, Van Sant filma a causa para deixar com que o próprio espectador construa uma espécie de discurso ou de interpretação, retrata o polêmico atentado de Columbine sob ótica de vários personagens secundários bem diferentes entre si.

Em Last Days, baseado nos últimos dias de vida do músico Kurt Cobain, a decupagem de certa forma “distancia-se” do protagonista, com planos bastante abertos e longos planos seqüências estáticos em que algumas vezes o personagem sai de quadro. Além disso, Van Sant deixa de mostrar o fato principal dos últimos dias, o suicídio, retratando no filme somente as causas.

Em Paranoid Park, o ponto de vista é o do protagonista e é realizado, por exemplo, através: das subjetivas, dos enquadramentos fechados, da linha narrativa seguindo a memória do personagem, da empatia gerada por tal, da voz narrando à história… Porém, o julgamento quanto ao ato principal da história, o assassinato, e quanto à culpa, cabe ao espectador, não há um final moralista, da mesma forma que não há o contrário. Poder-se-ia dizer que não há final, mas o que ocorre é que o filme acaba deixando o desfecho em aberto, para o espectador se posicionar e “julgar”.

Sobre Paranoid Park, e sobre o ponto de vista adotado neste filme e nos outros dois, Leonardo Amaral afirma:

A câmera é colocada quase sempre à altura dos olhos de Alex, simulando seu olhar – o uso de teleobjetivas limitam a profundidade de campo em vários momentos – e circundando um mundo próprio, sendo esse orientado pelos anseios e paranóias do personagem marcado por um acidente. Mais do que mais um relato da juventude dos EUA, Paranoid é também a forma de como essa mesma juventude enxerga o mundo – transposta pelos olhos de Alex. [5]

4.3 OUTRAS CARACTERÍSTICAS DA DECUPAGEM

Outras características marcantes do diretor são os planos-seqüências e uma aproximação com o documental: ambas buscando certo realismo. Como destaca Leonardo Amaral para a revista eletrônica Filmes Polvo:

Os três filmes procuram o documento, a câmera, seja no plano-seqüência com movimentação ou no da câmera estática, é a expressão naturalista do realismo de André Bazin: o corpo e o restante do que está em cena é o princípio fundamental do estudo e da análise; do extracampo, a música clássica é quase uma maneira de tentar entender aquelas ações e personagens. Em Paranoid Park ela funciona como a extensão dos anseios do personagem, em Last days ela é a expressão do próprio personagem e em Elefante ela é um artifício estético combinado pelos vários planos seqüências. [6]

Vale destacar o uso dos planos-seqüências com a câmera atrás do personagem, seguindo-o, que é a tônica em Elefante, mas ocorre também em Last Days e Paranoid Park, passando a ser, de certa forma, uma marca registrada de Gus Van Sant.

A utilização de câmera na mão é outra questão que aproxima os filmes da linguagem documental, sendo mais destacada em Elefante. Já o uso de planos-seqüências estáticos ou com movimento muito leve se destaca em Last Days, seu sentido em termos de ritmo e intenção geral do filme é claro: não apenas gera realismo, como se liga à temática de morte, à valorização corpo e da degradação do personagem. Sobre a sutileza de movimento e a intencionalidade em Last Days, Luiz Carlos Oliveira Jr. afirma: “Nenhuma inquietação abala o lentíssimo travelling que se distancia da casa, deixando Blake a sós com as guitarras nas quais se manifesta todo o furor negado pela mise en scène[7].

Uma última questão, não menos importante, que vale destacar é o uso e a valorização dos personagens secundários, pelo roteiro, pela decupagem e pela montagem.

Em Last Days há os momentos em que a narrativa deixa Blake se centrando em seus amigos, sempre com os longos planos-seqüências e câmera estática ou sutil movimento.

Já em Paranoid Park há o destaque para o plano de Gabe vendo sua amiga Macy, que faz um convite para ir ao cinema, então a câmera desvia-se para a amiga de Macy, Rachel, uma personagem sem grande importância na narrativa, que aparece muito poucas vezes, mas nesta seqüência apenas aquele movimento diz muito da relação dos personagens e do momento psicológico do protagonista.

Já em Elefante se vê mais fortemente a questão. Afinal, a narrativa é multifacetada seguindo paralelamente vários personagens, mostrando ora o cotidiano de um, ora de outro e convergindo na interação entre eles. A escolha por seguir os personagens secundários aqui guia o filme a uma múltipla interpretação e a um viés mais subjetivo/aberto.

5 FOTOGRAFIA

Em Elefante, Last days e Paranoid Park, têm-se na fotografia elementos comuns e também pertencentes a outros filmes da carreira do diretor e muito peculiares da obra de Gus Van Sant. Elefante e Last days têm a direção de fotografia de Harris Savides, enquanto Paranoid Park tem a cinematografia de Christopher Doyle e Kathy Li.

Nesses três filmes, principalmente nos dois primeiros, certos aspectos demonstram claramente o diálogo entre diretor e fotógrafo, são exemplos desses os planos-seqüências muito bem trabalhados, que podem ser compreendidos em duas principais formas. A primeira forma compreende planos-seqüências em movimento, feitos em sua maioria com lentes teleobjetivas e steadycam. Aos olhos do espectador, esses planos contribuem para criar uma espacialização do ambiente, explorando-se as diferenças de luminosidade entre os ambientes. Aqui, percebe-se o uso de uma iluminação naturalista, com a luz suave e grandes pontos de sombra, compondo à cena um contraste alto. Neste ponto, Harris Savides e Gus Van Sant optam por um rompimento com a cinematografia tradicional, comumente apoiada na técnica da luz de três pontos.

A outra forma compreende planos-seqüências sem movimento, feitos com lentes grandes angulares, muito particulares dos filmes de Gus Van Sant. Nesses planos, são destaques os enquadramentos usados, que podem ser considerados não-convencionais: a câmera permanece fixa ou apresenta movimentos extremamente sutis, enquanto a ação sofre um deslocamento, em certos momentos, entrando e saindo de quadro. Aqui, procura-se representar uma visão limitada do espectador, adequando este à situação diegética proposta.

Em Elefante, Últimos dias e Paranoid Park, podemos notar, principalmente no primeiro e no último, o uso de filtros para acentuar as cores frias da imagem. Em algumas seqüências, é perceptível a tonalidade azul desses filtros. Esse recurso, aliado ao uso de filmes com sensibilidade baixa, fazem com que a imagem do filme apresente uma aparente “limpeza”, que contribui para a consolidação de uma estética própria dos filmes de Gus Van Sant.

Em contraposição a essa estética, no filme Paranoid Park, Gus Van Sant utiliza películas de super-8 para criar variações na textura da imagem, que passam ao espectador a sensação de um filme doméstico, ampliando a noção de realidade documental das imagens. Esse recurso, antes utilizado também em filmes como Drugstore Cowboy, Gênio indomável e Encontrando Forrester, aparenta ser uma forma de atribuir a introspecção das personagens às cenas, criando uma familiaridade personagem-espectador e remetendo às lembranças das personagens. A granulação do super-8, somada à captação com maior proporção de quadros por segundo, popularmente chamada de câmera lenta, remetem à vanguarda do cinema nova-iorquino, que muito influenciou o diretor.

Vale lembrar também que a aproximação com as reflexões das personagens ocorre também através do intenso uso do enquadramento em close-up, tanto do protagonista como daqueles que com ele interagem. Esse enquadramento, quando combinado com o fundo desfocado, transmite a sensação de um monólogo interior, onde o espectador é levado a interpretar as emoções e pensamentos da personagem.

6 SOM

6.1 MOMENTOS DE CONFUSÃO MENTAL OU TENSÃO

Nos filmes analisados mais detalhadamente aqui existem momentos em que os personagens passam por confusões mentais individuais ou tensões coletivas. Geralmente a escolha do diretor se baseia em usar várias camadas de sons que se alteram gradualmente, fazendo uso freqüente de sons de sinos e gaivotas para esses momentos.

Em Paranoid Park, por exemplo, no momento em que Alex toma banho, a trilha é unicamente da água caindo, e gradualmente se altera o tom desta, se tornando cada vez mais aguda. No final, sons de gaivotas e ruídos agudos complementam a trilha, caracterizando outra atmosfera, como de a de um lugar externo, criando temor pelos sons desagradáveis. Ainda no mesmo filme, após o envolvimento acidental na morte do segurança da estação de trem, Alex anda sozinho pela ponte. A banda sonora é composta por falas de Alex com reverberação, além da sua voz over e de outros personagens.

Já em Elefante, os momentos perturbadores se concentram no fim do filme: as cenas de assassinato em massa têm como trilha muitos ecos, sons de pássaros, tiros e trilha musical repetitiva, também composta por microfonias.

Blake, o protagonista de Last Days, se encontra em um constante desespero emocional, e Gus Van Sant trabalhou esse sentimento de diferentes formas. Em muitos momentos, são usadas várias camadas de sons: sons da natureza (pássaros, passos, suspiros, sussurros) misturados com sons extra-diegéticos (sinos, coral de igreja, ruídos de ambiente) que enfatizam a perturbação da mente de Blake. Também como efeito de reiteração, algumas passagens de maior desespero interno do protagonista acompanham trilha ruidosa (white noise), com microfonias. Num desses momentos, a música pop e alegre acompanha o mal estar do protagonista criando contraste proposital, também expandindo o significado da cena (sobre a relação de Blake com o mundo externo). No momento em que ele sai de casa, o mal estar é enfatizado pelo excesso de sons: banda, pessoas falando sem parar.

6.2 O SOM DIRETO E O SILÊNCIO

O som direto (ou, às vezes, recriado em foley) é o recurso mais usado por Van Sant nestes últimos três filmes. Nos planos-seqüências, juntamente com a fotografia, ajuda-se o espectador a se ambientar no espaço que ocorre a ação. Isso fica mais claro em Elefante, onde essa forma de troca de espaço é mais freqüente.

Gus Van Sant opta pelo total ou parcial silêncio em algumas tomadas. Na primeira relação sexual de Alex e Jennifer, em Paranoid Park, não existem sons no quarto e nem trilhas musicais, somente ruídos de outros adolescentes no fundo da casa onde eles se encontravam. Essa escolha enfatiza o motivo dessa relação, que é relacionado às aparências externas ao grupo de amigos, já que Jennifer queria perder a virgindade. Como criação de momento de tensão, o diretor utiliza discretamente em Elefante o som direto no primeiro assassinato de Alex e Eric na biblioteca do colégio: a partir do primeiro tiro, iniciam-se os gritos, passos e ecos de mais tiros. Em Last Days, como já citado, o protagonista se encontra em muitos momentos sozinho, recluso em algum cômodo, sussurrando sozinho sobre o que se passava em sua cabeça.

6.3 AS TRILHAS MUSICAIS

Os estilos musicais mais eruditos, como ópera ou música clássica, são as trilhas mais usadas pelo diretor. Last Days inicia-se com um coro de vozes em tom melancólico, em que Blake se encontra andando em meio a um bosque, e termina com esse mesmo coro em uma canção de tom alegre, logo após a sua morte. Em Paranoid Park, esse mesmo estilo musical é presente após a morte do guarda de segurança. Já em Elefante, “Fur Elise” de Beethoven acompanha uma seqüência de quase cinco minutos em que Alex e Eric se encontram no quarto.

Esse último momento citado adapta a música à psicologia dos personagens. A música de Beethoven que os dois garotos de Elefante escutam reforça a atmosfera psicológica perfeccionista – que em outro momento, aproxima-se com o nazismo. Já Jennifer, de Paranoid Park, em muitos momentos é relacionada a uma espécie de música clássica de contos de fadas, o que enfatiza sua relação com Alex e sua personalidade feminina, angelical, inocente e juvenil. Nota-se o destaque para a cena em que Alex resolve terminar o namoro: o som do diálogo não existe, pois não é dada importância – somente a música, acompanhada das mudanças de expressão da garota, compõe a seqüência.

Mas, é claro que Gus Van Sant não se utiliza somente desses estilos musicais: Last Days tem sua trilha musical composta por sons diegéticos, seja de Blake tocando violão em seu quarto ou quando um disco de rock é tocado na sala. Em Paranoid Park, por exemplo, existe grande diversidade de gêneros musicais: country, folk, hardcore, entre outros. No mesmo filme ainda existem algumas passagens semelhantes a videoclipes, que são cenas filmadas em super-8 de aspecto granulado, cujo áudio é composto por uma música rodada de trás para frente, com inserções de falas em francês e com ruídos de ranhuras de discos, que ajudam a enfatizar o caráter nostálgico.

7 CONCLUSÃO

Investigar a obra e o estilo de Gus Van Sant se propõe como um grande desafio na medida em que o diretor se demonstra multifacetado e eclético, mesmo que autoral.

Van Sant possui dentre suas múltiplas facetas as de: roteirista, montador, esteticista e produtor; poeta sonoro e poeta visual; olhar fragmentado e olhar linear… Além disso, é eclético ao ponto de ter conquistado prestígio tanto em Hollywood quanto no cinema independente, e ao ponto de ter obtido reconhecimento tanto para os holofotes do Oscar, quanto para o tradicional Festival de Cannes.

Mas ao mesmo tempo é autoral, seus filmes e suas facetas carregam fortes marcas constantes: poesia, que trabalha em prol da juventude, que é seu tema, seu elenco, sua inspiração, seu combustível e sua angústia… Mesmo assim o que deve ser a principal marca de Gus Van Sant é o talento, o qual o faz autor de filmes tão variados e ao mesmo tempo tão bem-sucedidos e que faz dele um dos diretores com maior liberdade para trabalhar um estilo próprio na atualidade. O talento de Van Sant, como aqui analisado, fica evidente no modo como trabalha suas temáticas, na condução dos jovens elencos, no estilo ousado de montagem, na beleza da fotografia e no primor da utilização do som.

Então, encerramos esse texto com uma frase do cineasta: “Meus filmes são exercícios poéticos. Nunca quis criar situações de cinema, mas momentos quaisquer”. Pois os momentos quaisquer de Gus Van Sant são sim verdadeiras situações de cinema; momentos simples, como adolescentes se cruzando pelos corredores de uma escola, são transformados, pela lente da câmera de Van Sant combinada à tela grande do cinema, em verdadeira poesia… Poesia pura como o assassinato cometido por Alex em Paranoid Park, como os silêncios do Kurt Cobain imaginado por Gus em Last Days, como a rebeldia de Will em Gênio Indomável, como a trajetória de Bob em Drugstore Cowboys, como o céu intocável anunciando o efêmero em vários de seus filmes, poesia pura como só o cinema pode ser…

8 REFERÊNCIAS

JR, Luiz Carlos Oliveira. Apresentação de Gus Van Sant. Contracampo. n.51. Disponível em <http://www.contracampo.com.br/51/apresentacaovansant.htm>

SILVA, Gabriel Ritter Muniz da. Paranoid Park (2007). Cineplayers. Acesso em 12 de novembro de 2008. Disponível em <http://www.cineplayers.com/comentario.php?id=7889>.

AMARAL, Leonardo. O cinema do detalhe e do físico feito por Gus Van Sant. Filmes Polvo. Disponível em <http://www.filmespolvo.com.br/site/artigos/cinetoscopio/147>. Acesso em 12 de novembro de 2008.

JR, Luiz Carlos Oliveira. Dias no campo. Contracampo. n.75. Disponível em < http://www.contracampo.com.br/75/lastdays.htm> Acesso em 11 de novembro de 2008

JR, Luiz Carlos Oliveira. Elefante. Contracampo. n.58. Disponível em <http://www.contracampo.com.br/58/elefante.htm>. Acesso em 10 de novembro de 2008

JR, Luiz Carlos Oliveira. Elefante: Clouds Taste Metallic. Contracampo. n.58. Disponível em <http://www.contracampo.com.br/58/elefantecineclube.htm>. Acesso em 10 de novembro de 2008.

Julio B. Paranoid Park. Armadilha Poética. Publicado em março de 2008. Disponível em <http://www.armadilhapoetica.com/armadilhapoetica.php?db=cinema&tab=rec>. Acesso em 12 de novembro de 2008.

JR, Luiz Carlos Oliveira. Paranoid Park. Contracampo. n.89. Disponível em <http://www.contracampo.com.br/89/festparanoidpark.htm>. Acesso em 10 de novembro de 2008.

MIRA, Gonçalo. Paranoid Park, livro e filme, uma análise comparativa. Publicado em janeiro de 2008. Disponível em <http://orgialiteraria.com/2008/01/paranoid-park-livro-e-filme-uma-anlise.html>. Acesso em 8 de novembro de 2008.

DIAS, Rafael. Gus Van Sant: o uivo da juventude transviada. O Grito. Publicado em Janeiro de 2008. Disponível em <http://www.revistaogrito.com/page/28/01/2008/gus-van-sant/>. Acesso em 8 de novembro de 2008.

DIAS, Rafael. Paranoid Park, a dura e precoce descoberta do fardo da culpa. O Grito. Disponível em <http://www.revistaogrito.com/page/28/01/2008/paranoid-park/>. Acesso em 8 de novembro de 2008.

GOMES, Inês Dias. Gus van Sant regressa ao inconsciente adolescente. Jornalismo Porto Net. <http://jpn.icicom.up.pt/2007/11/29/cinema_gus_van_sant_regressa_ao_inconsciente_adolescente.html>. Acesso em 10 de novembro de 2008.

– Filmes de Gus Van Sant: Paranoid Park, Las Days, Elefante, Gerry, Paris, te amo, Procurando Forrester, Psicose, Gênio Indomável, Um sonho sem limites, Garotos de Programa, Drugstore Cowboy, Até as vaqueiras ficam tristes, Mala Noche

Celso Moretti, Diego Anami, Eduardo Palazzo, Lucas Mingoti e Marco Umeki são graduandos em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos


[1] JR, Luiz Carlos Oliveira. Apresentação de Gus Van Sant. Contracampo. n.51. Disponível em <http://www.contracampo.com.br/51/apresentacaovansant.htm>. Acesso em 12 de novembro de 2008.

[2] JR, Luiz Carlos Oliveira. Apresentação de Gus Van Sant. Contracampo. n.51. Disponível em <http://www.contracampo.com.br/51/apresentacaovansant.htm>. Acesso em 12 de novembro de 2008.

[3] JR, Luiz Carlos Oliveira. Elefante. Contracampo. n.58. Acesso em 11 de novembro de 2008. Disponível em < http://www.contracampo.com.br/58/elefante.htm>.

[4] SILVA, Gabriel Ritter Muniz da. Paranoid Park (2007). Cineplayers. Acesso em 12 de novembro de 2008. Disponível em <http://www.cineplayers.com/comentario.php?id=7889>.

[5] AMARAL, Leonardo. O cinema do detalhe e do físico feito por Gus Van Sant. Filmes Polvo. Disponível em <http://www.filmespolvo.com.br/site/artigos/cinetoscopio/147>. Acesso em 12 de novembro de 2008.

[6] AMARAL, Leonardo. O cinema do detalhe e do físico feito por Gus Van Sant. Filmes Polvo. Disponível em <http://www.filmespolvo.com.br/site/artigos/cinetoscopio/147>. Acesso em 12 de novembro de 2008..

[7] JR, Luiz Carlos Oliveira. Dias no campo. Contracampo. n.75. Acesso em 11 de novembro de 2008. Disponível em < http://www.contracampo.com.br/75/lastdays.htm>.

Author Image

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

More Posts

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

Este post tem 2 comentários

  1. Author Image
    Pedro

    Belo texto. Uma análise profunda e ao mesmo tempo direta. Parabens

Deixe uma resposta