A Direção de Fotografia e o “Doce de Coco”

No final do ano de 2006, recebi uma notícia muito boa: iria filmar meu primeiro longa-metragem captado e finalizado em 35mm. Foi um chamado feito pelo diretor Pernna Filho, para quem já havia fotografado o documentário “Um Craque Chamado Divino”, lançado no cinema (2005) e em DVD (2006). O filme chama-se “Doce de Coco”.

Pra minha geração, educada e formada com a película (quando fiz faculdade, Vídeo e Cinema eram coisas quase que estanques), filmar em 35mm sempre foi um objetivo. Imaginem o que é isto para um Diretor de Fotografia daquela geração e tentem intuir meus sentimentos.

Na verdade, a estória começa antes. Quando o roteiro do filme “Doce de Coco” foi premiado pelo governo de Santa Catarina, eu havia conversado com o diretor. À época, ele imaginava fazer o filme em Super 16mm para posterior ampliação para 35mm. Eu havia lhe alertado para o fato de que isto geralmente sai mais caro que captar e finalizar direto em 35mm. Mandei ele fazer as contas, pôr no papel e ver o que achava. Concluiu pelo que eu havia lhe dito.

Muitas pessoas vêem o 35mm como algo quase proibitivo. Quando menciono estas contas costumam me olhar com desconfiança. Mas a matemática não mente. O resto são idéias pré-concebidas. O que explica tal é o fato de que uma parte muito cara na finalização são os materiais intermediários, os chamados intermediates, que são o interpositivo e o internegativo. E, numa ampliação, obrigatoriamente, você passa por eles. Aí é que os custos sobem muito. Captando e finalizando em 35mm, sem intermediação digital, você evita estes custos. Claro, você ter interpositivo e internegativo é uma grande segurança, pois são duplicações do seu material original, mas o que é melhor? Uma maior qualidade por um custo mais baixo, ou uma menor qualidade, maior custo, porém cópias de segurança? É uma questão com múltiplas respostas, que não cabe discutir aqui.

Enfim, escolhendo esta rota conseguimos fazer um filme em 35 mm com um orçamento de pouco mais de 750 mil reais. Pra se ter uma idéia, o Minc (Ministério da Cultura) e a Ancine (Agência Nacional de Cinema) dão prêmios de filme de baixo orçamento na casa de 1 milhão de reais.

Às vezes tenho a impressão que o Cinema Brasileiro parou de sonhar. Num momento único de sua história, é sustentado totalmente com dinheiro público. É fato que, desde a implantação da Lei do Audiovisual, consideram-se 2 milhões como orçamento baixo. É curioso, pois os orçamentos aumentaram, concomitantemente à receita gerada pelos filmes declinarem, de modo geral.

Já vi reclamações de que não dá pra fazer curtas com 80 mil reais, e filmes com este valor que mal remuneram as pessoas. Acho que isto é um derrotismo, na omissão de outras palavras.

Dos cinco longas que fiz, faço um cálculo que foram gastos com eles cerca de 1 milhão e 900 mil reais, dos quais 130 mil foram de capitais privados (existem alguns abnegados que ainda investem dinheiro do próprio bolso em filmes, sim). Dois destes filmes estão aguardando finalização, um foi finalizado em vídeo, um foi estreado em cinema e lançado em DVD, e o último está pronto pra ser lançado. Isto com menos do que consideram um orçamento baixo. É pra se pensar. Desses cinco filmes, este foi captado em 35mm, um em Super 16mm e o restante em vídeo digital.

Vou deixar este assunto de lado, pois, afinal, não sou produtor, e sim Diretor de Fotografia. O problema é que dependo deles pra meus futuros trabalhos, então lógico que estas questões acabam por me interessar diretamente.

Ademais, e isto é outra coisa que assusto ao ver certas coisas no Cinema Brasileiro, na minha profissão sempre me deparo com problemas de orçamento. Muitas vezes as pessoas não fazem filme com menos dinheiro por puro deslumbre. Querem ter a câmera mais moderna, o ator mais famoso, e por aí vai. Retomo este assunto mais tarde.

Em janeiro de 2007, fui a Florianópolis a fim de visitar as locações escolhidas. Isto é um momento importante, pois é possível se antever dificuldades e ajuda a elaborar o pedido de equipamentos. Roteiro em punho, fiz uma planta baixa de todas as locações visitadas, e os pontos cardeais nelas. Isto é de muita valia num planejamento das filmagens.

Feito o pedido de luz, começa uma parte tensa para o fotógrafo. É costume sempre a gente levar luz a mais do que o estritamente necessário. Costuma-se fazer isto por vários motivos. Para numa eventual quebra de equipamento você ter reposição imediata, pra sobrar luz para os planos de detalhes sem ter que alterar o esqueleto de luz dos planos gerais, e pra se ter mais opções de luz diferenciadas pra cada cena. Além disso, é praticamente impossível se antever exatamente quais luzes vão ser usadas, é algo que depende da decupagem, da lente, da hora em que se filma, etc. Enfim, vai-se com uma idéia aproximada. O complicado é fazer o produtor entender isto.

Aí volto ao assunto de três parágrafos atrás. Nos meus filmes sempre tive que brigar muito pelo meu parque de luz. E olhe que ele é menor que a média dos filmes brasileiros que estão aí nos cinemas. Como sempre trabalho com orçamentos apertados, os problemas são maiores. No “Doce de Coco”, quero lembrar que o diretor chegou a trabalhar na Boca do Lixo, e no seriado de TV “Águias de Fogo” (onde se filmava um episódio a cada dez dias), que foi produzida por Ari Fernandes, o mesmo que fez “O Vigilante Rodoviário”. Quero dizer: produções com custos reduzidos, com capitais que necessitavam retornar com lucro. Ganha aqui, perde ali, fica bravo acolá, chegamos a um acordo e consegui manter o mínimo pra poder fazer um trabalho com bom padrão. É por isto que me espanto com filmes onde as pessoas querem do melhor, mas que acabam por nem remunerar uns e nem por finalizar o filme. O Cinema Brasileiro parou de sonhar, volto a pensar nestas horas.

Em março, volto a Florianópolis para os testes de câmera e negativo. Isto é importante, pois garante que as coisas saiam como planejados, que a câmera e o negativo respondam de acordo com suas especificações. Testes pré-filmagens podem ser de inúmeros tipos. No caso, concordamos com a produção em nos restringirmos a estes dois testes estritamente necessários, pois, num universo total de 72 latas previstas para a filmagem (o que muitos consideram impossível de fazer um longa também…), gastar mais de uma lata (e uma pequena ponta) num teste poderia ser contraproducente, já que elas poderiam ser mais úteis rodando mais planos para o filme. Sobre o detalhe da pequena ponta, explico: uma lata seria o suficiente para o teste, mas como iríamos utilizar dois tipos de negativos, precisávamos de uma pequena ponta somente para testar o outro tipo de emulsão. Os negativos foram o Fuji Eterna 500T 8573 e o Eterna 250D 8563.

Quando vi o teste projetado confirmei que os negativos eram de um grão muito fino, fiquei muito bem impressionado com estas novas emulsões, principalmente o ASA 500. E a câmera e lentes estavam funcionando perfeitamente. A câmera é uma Arri BL Evolution, que é uma BL III com um melhoramento da PS Technik, o que se por um lado melhora a ótica do visor e outros itens, por outro a torna uma câmera bem pesada.

A filmagem durou cinco semanas. A equipe era quase que inteiramente composta por pessoas de Santa Catarina, exceção feita a mim, o assistente de câmera, o chefe-eletricista e o ator principal, que éramos de S. Paulo. Foi um jeito de se reduzir custos, assim como o fato de concentrarmos as locações num bairro de Florianópolis, o Ribeirão da Ilha.

Duas coisas me deixaram apreensivos nos primeiros dias da filmagem. A primeira era a enorme quantidade de planos rodados num só take, e a quase ausência de coberturas. A segunda era que tardou a vermos o primeiro telecine off line. No primeiro caso, há sempre um receio, por parte da equipe de câmera, em se rodar um take só. Na nossa visão (se quiserem chamar de classista, aceito sem problemas), há sempre uma chance de se ter algum problema com o negativo (um problema de foco, ou sujeira, ou risco, etc), e, num caso desse, se perde um plano e parte da narrativa. Para piorar, havia um problema de logística, já que filmávamos em Florianópolis; tínhamos que enviar, pelo Correio, o material pra ser revelado no Rio de Janeiro, pro telecine off line voltar pra nós. Em inglês, este material é chamado de dailies, ou seja, o ideal é vê-lo diariamente. Por motivos vários, só fomos ver o primeiro lote depois de uns 10 dias. Pra nossa alegria, nada havia se perdido, por quaisquer motivos que seja. Ver o material filmado aumenta a confiança entre os membros da equipe, e o trabalho seguiu depois, se não fácil, ao menos sem maiores ansiedades.

Planejei uma fotografia sem contrastes extremos na maior parte do filme, já que se trata de uma comédia, e de um enredo sem grandes surpresas de entrecho. Como o filme se centra num personagem, feminina, cheia de esperança ainda que na adversidade, optei por fazer sua luz sempre um pouco acima da luz ambiente, e com brilhos nos olhos, como que simbolizando sua posição perante a vida, sua fé em Deus e no mundo. Além deste tratamento mais comedido e clássico, procurei dar mais expressividade em algumas cenas onde há uma ambigüidade entre sonho e realidade, utilizando-se de filtros de correção de cor não padrão e luz mais desenhada. E numa cena de pesadelo assumida, fui fundo no contraste e puxei o negativo 8573 em dois stops para “sujar” um pouco o visual.

Fizemos a marcação de luz e tiramos a primeira cópia em fevereiro último. O filme pré-estréia no FAM, Florianópolis Audiovisual do Mercosul, em sete de junho do ano corrente. Depois, resta captar mais algum dinheiro pra fazer um lançamento com mais cópias e certa publicidade, e arrumar um distribuidor.

Um filme terminado causa em nós alegrias diversas. Neste caso, fico contente que o filme tenha obtido um resultado visual muito bom, do qual me orgulho, e sendo feito com um capital que muitos não acreditam ser possível fazer em 35mm. Como diz um amigo meu, o difícil é fazer barato um filme parecer mais caro, e não o contrário. Do meu ponto de vista, se o público gostar do resultado visual, sentir as intenções da luz, dou-me por satisfeito enquanto profissional.

Claro que há coisas que não interessam ao público comum, mas sim a nós, que somos, vamos dizer assim, um público especializado. A questão do orçamento é uma delas. Outra, e disto me orgulho, é que, dentro de uma situação, como eu disse anteriormente, onde erros seriam imperdoáveis, pela ausência de segundos takes e coberturas, o nível de erro da equipe de fotografia foi quase nulo. Grande parte disso foi garantido pelos testes do negativo e câmera que fizemos, além de um entrosamento de muitos anos. Pro público isto passa despercebido (como deve ser mesmo), mas confesso que me deixa com certa vaidade. Por fim, fico feliz de, entre a saída da primeira parcela e a primeira cópia, num orçamento limitado, tudo ocorrer dentro de um ano e meio, o que em termos de Brasil é rápido.

Por fim, gostaria de não deixar ao leitor uma impressão errada. De modo nenhum acho que os filmes devam ser feitos com pouco, ou muito dinheiro. É claro que, como Diretor de Fotografia, se disponho de orçamento grande, não tenho por quê reclamar; muito pelo contrário, posso experimentar e ousar mais, usar equipamentos novos, e assim por diante. Mas acho que as relações entre orçamentos e filmes devam seguir certa lógica, e esta é, numa arte industrial, a lógica do mercado. É isto que pode me garantir a sobrevivência como fotógrafo em longa-metragens. Outros caminhos conduzem invariavelmente a crises, das quais conhecemos tantas.

Pra chegar aos grandes orçamentos, é necessário se sair bem nos pequenos. Comparações à parte, Janusz Kaminski comenta que Spielberg gostou do seu trabalho em um filme dirigido por Diane Keaton pois, além de gostar da fotografia em si, ficou ainda mais impressionado em saber que o resultado foi obtido em somente 21 dias de filmagem. E isto o convenceu que Kaminski era o cara certo para fotografar “A Lista de Schindler”, que é um trabalho visual espetacular.

Assim, se lições são algo que podemos apreender, acho um exemplo um filme em 35mm ser feito com menos de um milhão de reais, num país onde filmes em Super 16mm são feito com orçamentos na casa dos 6 milhões, acreditem-me. E, agrade ou não aos críticos, de gasto excessivo não podemos culpar este filme.

Adriano Barbuto é Diretor de Fotografia e professor do curso de Imagem e Som na UFSCar

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Este post tem um comentário

  1. Author Image
    R@quel Roch@

    Li cada linha do seu texto hipnotizada sonhando com meu primeiro trabalho em película… Parabéns pelo trabalho, eu vi o trailer e achei lindo!

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