A Liberdade é Azul (Krzysztof Kieslowski, 1993)

Bleu ou Como descobri a liberdade como um oceano sem fim e sem vida

Azul. Em 1993, foi com o azul que Krzysztof Kieslowski iniciou sua trilogia das cores. No título original, “Trois Couleurs: Bleu”; no Brasil, “A liberdade é azul” (mais tarde seguido por “A igualdade é branca”, e “A fraternidade é vermelha”, ambos de 1994). Com a tradução, acredito que possamos ver mais clara a associação entre as cores da bandeira francesa e os ideais da Revolução – associação esta que escapa ao conjunto dos títulos originais, que apenas nomeiam as cores. No caso deste primeiro filme, a partir da nomeação utilizada no Brasil, creio que nos seja possível captar uma pista daquilo que será tema central da obra. Entre a mansidão e a frieza associadas comumente à cor, a liberdade – aqui imersa em um grande e inabitado oceano, em um caminho sem fim.

Carros em movimento, uma mão que se estende e brinca com um pedaço de papel (azul) contra o vento, o recorte de um vazamento em algum dos canos do automóvel, uma batida contra uma árvore. Deste modo, logo no início da obra, conhecemos o fato que desencadeará toda a trama. Em poucos minutos, o acidente encerra a primeira sequência do filme. Longe de dramatizações ou construções emotivas, o fato ocorre seco. Não choraremos pelo acidente que dá início a “Trois Couleurs: Bleu”. Sem lágrimas, estaremos, talvez, pusilânimes; introspectivos como sua única sobrevivente.


Julie (Juliette Binoche), a esposa, mãe e única a escapar do acidente, nos é apresentada ao receber friamente de um médico a notícia da morte de sua família. Enquanto acompanhamos o desenvolvimento de suas reações, do extremismo à absoluta introspecção, seu entorno remarca insistentemente a inaceitabilidade da situação. Como um grande peso sobre Julie, desde o enterro – quando se apresenta a posição de destaque de seu marido como compositor – ao encontro com os empregados domésticos, ecoam frases como “ninguém pode aceitar a sua ausência” ou “penso neles, como esquecer?” – frases, devemos nos atentar, vindas sempre da exterioridade, do outro. Ditas aparentemente sem propósito, ou inocentemente, por aqueles que cercam a viúva, os discursos remarcam a existência de um fardo incalculável.

Em um filme majoritariamente silencioso, eis que, ao percorrer a casa da família, nos deparamos (nós e Julie) com o choro de uma das empregadas. Por que ela chora? Sem esconder a tristeza com o acontecido ou a sinceridade, afirma, sem hesitação, “choro porque a senhora não chora”. Sim, não basta dor, é preciso lágrimas. No entanto, frente ao grande fardo que se vê, agora, obrigada a carregar, às memórias que se vê impedida de esquecer, a personagem (assim como os relacionamentos que ela desenvolve a partir daqui) está seca, endurecida – talvez mais rude, como afirma uma jornalista que a procura após o acidente. Em uma atuação comovente, Binoche retrata uma tristeza profunda, mas sem dramas. Nos olhos de sua personagem, o que resta são reflexos do vazio, da desesperança.

Julie, talvez seja essa a melhor definição, está descrente. A decisão é de se manter distante de tudo e de todos, de se desfazer de seus bens e se afastar de seus conhecidos. Como uma estranha, a personagem tenta recomeçar do zero e, de certa forma, permanecer nele – construir nada. Inerte, seu objetivo é não desenvolver seus relacionamentos ou qualquer atividade, apenas seguir.

No entanto, “não se pode abrir mão de tudo”. Creio que seja esse o ponto central da obra. Frase dita por sua mãe, mas que funciona como âmago da questão desenvolvida pela obra, não, não se pode abrir mão de tudo. Bens, famílias, relações, tudo são vínculos. Por mais alienada que pense estar, até mesmo um músico de rua toca em sua flauta melodias que remetem a algumas já conhecidas, à última obra desenvolvida pelo marido. Em um fluxo inexorável, gostemos ou não, o passado sempre volta. Talvez, tal qual um oximoro, simplesmente não seja possível viver e ser livre – livre de tudo e de todos, liberdade em toda a sua potência. Como vaticina o flautista, “é preciso agarrar-se a algo”. Possivelmente, na mais absoluta liberdade, nos tornaríamos apenas fantasmas de nós mesmo. Julie de Curcy? Julie Vignon? É possível que nem nomes tivéssemos mais.

Quanto à construção da obra, a fotografia é belíssima e o desenvolvimento é absolutamente tranquilo, sem qualquer atropelo. Quanto às minúcias, aos pequenos pontos que tornam o filme ainda mais encantador, o diretor utiliza muitos planos fechados, alguns subjetivos e vários detalhes. Transportando a máxima da mãe de Julie ao cinema, este também não se faz sem vínculos. Talvez Kieslowski nos mostre que nem mesmo o cinema é livre. Seja ou não bom, somos todos presos a nós mesmo. A liberdade é azul, como é triste. A liberdade é árida, como é inalcançável.

Tiago Canário é graduando em Jornalismo pela Universidade Federal da Bahia (UFBA)

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Este post tem 3 comentários

  1. Author Image
    CA

    Adorei os comentarios feitos, me ajudou a compreender mais profundamente o filme!

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    Daniel

    Tiago, primeiramente, parabéns pelo texto.

    Ao que se refere à trilogia das cores, creio que Kieslowski concentra forças em transmitir a complexidade e a fragilidade da sociedade moderna. Com relação ao “Bleu”, fica evidente a impossibilidade da personagem desvincular-se de uma teia social. O autor explora a questão do acaso não como um fim em si mesmo, mas como forma de verificar esta impossibilidade.

    Me recordo que eu sua entrevista, kieslowski se diz obcessivo por expor na película situações de casualidade. Acho, portanto, que em “Bleu” o personagem flautista de rua é a personificação da casualidade, pelo fato de “compor” a mesma música do falecido esposo de Julie, sem nunca tê-lo conhecido. Acho muito marcante Kieslowski afirmar que no mundo as notas musicais existem isoladamente (cada nota é uma nota) e elas estão a espera de alguem para ordená-las. Nada impede que pessoas diferentes em situações ordenem-as de forma igual.

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