A retomada do gênero musical

Amanda de Castro Melo Souza, Nicole Santaella, Patrícia Castilho, Pedro Garcia e Zoe Sá Dall’Igna*

1. O surgimento dos musicais

Desde o início, o cinema flertava com o som por meio do acompanhamento sonoro (feito por orquestras, pequenos grupos musicais ou mesmo, gravações) que, geralmente, acompanhava as suas exibições. Já havia uma necessidade de inclusão do som no cinema, seja para a eliminação dos letreiros, seja pela criação de uma especifica atmosfera em relação as reações do espectador (criar climas de suspense, terror, amor, entre outros).

A Warner estava à beira da falência quando arriscou a produção da ópera Don Juan, o primeiro filme com passagens cantadas. O sucesso encorajou os irmãos Warner a continuar com a experiência sonora até que em 1927 produzem O Cantor de Jazz (Crosland – Com Al Jolson, grande nome da Broadway) que teve grande popularidade entre o publico norte-americano. Com esta produção nasce, junto ao cinema sonoro, o cinema cantado.

Com a entrada do som na produção cinematográfica mundial, consolidou-se dentro de grandes estúdios a produção do gênero musical. O primeiro musical, “Broadway Melody”, foi produzido em 1929 e seu êxito provocou uma onda de filmes que rapidamente se tornam populares, assim como os nomes de Fred Astaire, Ginger Rogers e Gene Kelly. Com o cinema sonoro, encenadores da Broadway foram chamados para trabalhar em Hollywood.

"The Broadway Melody".

Situada em Nova Iorque, a Broadway é a avenida das superproduções onde estão em cartaz há décadas os mais famosos musicais do mundo. Com o advento dos filmes sonoros, a conhecida popularidade dessas peças tornou-se interessante ao cinema, pois muitas pessoas que gostariam de assistir a essas peças, mas não tinham acesso à Broadway, por questões geográficas ou financeiras, seriam um público garantido, uma vez que se adaptasse essas peças para o cinema. Filmes como “A Noviça Rebelde” e “My Fair Lady” foram alguns dos primeiros a serem adaptados dos teatros da Broadway para o cinema, obtendo sucesso de bilheteria e incentivando a continuidade da produção desse tipo de musical.

Algum tempo depois, o inverso começa a acontecer, principalmente com filmes de produção da Disney: filmes musicais de sucesso começaram, também, a ser adaptados para peças da Broadway e se mantêm em cartaz até hoje, como é o caso de “O rei leão”, “A Bela e a Fera” e “A pequena sereia”.

2. O gênero musical

Filme musical é um gênero de filme, no qual a narrativa se apóia sobre uma sequência de músicas coreografadas, utilizando música, canções e coreografia como forma de narrativa, predominante ou exclusivamente. Nas primeiras décadas, a maior parte dos musicais, como já foi dito, vinha de adaptações da Broadway, mantendo características “teatrais”: as câmeras geralmente mostravam planos gerais das cenas, como se vê nos teatros, os cenários eram mais limitados e havia poucos objetos ao centro, para que as danças fossem realizadas; os números musicais não faziam tanto parte da narrativa, era uma “parada para cantar” no meio do filme, a apresentação musical, muitas vezes, era diegética, ou seja, os personagens realmente estavam cantando dentro da narrativa; os números musicais também estavam ligados intimamente à dança, o sapateado, principalmente.

Uma divisão dos filmes musicais pode ser feita com base no estudo, principalmente, da temática e da abordagem narrativa: os “Musicais Ups” que expõem uma temática alegre e divertida com o típico final feliz e que representam a maioria dos musicais feitos até o final da década de 60, e os “Musicais Downs” com conteúdos engajados socialmente e críticas à sociedade, começam a surgir a partir da década de 70 e não, necessariamente, apresentam um final feliz.

3. Musicais Ups

O gênero musical teve seu momento de glória nos anos 1940/50/60, períodos referentes à Crise Econômica Americana, Segunda Guerra Mundial e início da Guerra Fria. O filme Musical Up acabou servindo de escape ao contexto da época, por apresentar uma temática leve. Os Musicais Ups, apresentam marcas características como o otimismo e o happy end. Eles nos passam uma visão positiva do mundo através da exposição do amecan way of life.

Os personagens que compõe a narrativa são ingênuos e geralmente munidos de qualidades incontestáveis. Dentre as grandes produções desta época podemos destacar: Sinfonia de Paris (An american in Paris,1950), Um dia em Nova York (On the town,1949), A roda da fortuna (The bang wagon,1953), Cantando na chuva (Singin’ in the rain,1952) Amor, sublime amor (West side history,1961) e A noviça rebelde (The sound of music,1965).

cena do filme "A Noviça Rebelde".

3.1 – A Noviça Rebelde, 1935

A Noviça Rebelde (The sound of music) é um Musical Up de 1965, baseado em uma peça da Broadway, que por sua vez, foi baseada na história real da família de cantores Von Trapp, que realmente viveu na Áustria à época da Segunda Guerra.

A Noviça Rebelde é considerado até hoje por diversas instituições um dos melhores filmes já feito em todos os tempos, tendo ganhado o Oscar de melhor filme em 1966, além de melhor diretor, melhor montagem, melhor som e melhor trilha sonora e sido indicado em mais 5 categorias.

O filme possui diversas características que o tornam claramente um Musical Up, dentre as quais podemos citar os cenários (amplos, claros, bonitos), a própria história (focada no amor, onde tudo dá certo e acaba num final feliz), as músicas (todas falando de amor, felicidade ou coisas levianas). Em suma, mesmo tendo como pano de fundo o avanço da Alemanha Nazista para cima da Áustria, o filme tem um tom predominantemente alegre e, até podemos dizer, inocente. As situações resolvem-se através de músicas, e todos sempre ficam contentes e satisfeitos.

"A Noviça Rebelde".

Um ponto interessante a se notar da Noviça Rebelde é que os números musicais apresentam-se de duas maneiras diferentes no filme: em algumas situações eles fazem parte da diegese, onde os personagens estão realmente participando de uma apresentação musical (como em The Lonely Goatherd, So Long Farewell, The Sound of Music...). No entanto, em outros, o número musical não faz parte da realidade dessa diegese, os personagens cantam e em seguida continuam suas vidas como se nada houvesse acontecido, como se não houvesse a percepção nem a diferença entre conversar e cantar (como em Climb Ev’ry Mountain ou Maria).

No entanto, mesmo possuindo essas duas maneiras de se apresentar durante o filme, essas cenas musicais muitas vezes não colaboram para o avanço do filme em si, agindo apenas como grandes shows no decorrer da história. Algumas vezes elas até adicionam algo novo à história (The Sound of Music, na cena onde as crianças cantam para a baronesa pela primeira vez, o que causa uma mudança na forma de seu pai, o Capitão, vê-las), mas normalmente apenas aprofundam uma situação já conhecida (Sixteen going on Seventeen, onde apenas mostra-se um pouco mais da relação da filha mais velha do capitão Von Trapp com o garoto mensageiro).

No filme, a câmera muitas vezes se comporta como se fosse um expectador em um teatro, mantendo-se longe dos personagens e mostrando amplamente o cenário.

4. Musicais Down

A comédia Musical Up vive seu período de esgotamento devido a evolução dos costumes da sociedade (consciência ecológica, manifestações contra a guerra, luta pelos direitos das minorias, surgimento da contra cultura e da aldeia global acompanhados da revolução técnico-cientifica) e aos movimentos sociais. Neste novo contexto a produção hollywoodiana se vê obrigada a mudar sua produção musical, o gênero perde a sua ingenuidade e reflete esta nova realidade, desta forma surge o Musical Down.

O Musical Down expressa maior afinidade com a realidade econômica, política e social, apresentando uma tendência às denuncias das mazelas da sociedade, Seus personagens apresentam defeitos e qualidades. Podemos citar algumas das produções que se encaixam neste grupo: Jesus Cristo Superstar (Jesus Chirst superstar, 1973), O show deve continuar (All That jazz, 1979), Hair (Hair, 1979), Dançando no escuro (Dancer in the dark, 2000) Sweeney Todd: O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet (Sweeney Todd: the demon barber of Fleet street, 2007)

"Sweeney Todd: O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet"

4.1 All That jazz, 1979

Um grande filme musical do início desse gênero foi “All That Jazz”, de Bob Fosse (este título original do filme é o nome de uma das canções mais conhecidas do musical da Broadway “Chicago”, de autoria de Bob Fosse). Trata-se de um relato semi-autobiográfico da vida do escritor/diretor/coreógrafo Bob Fosse, vencedor do Oscar, do Tony e do Emmy. No filme, o personagem principal que o representa sofre um infarto e, com a vida por um fio, revê momentos de sua vida em forma de números musicais onde sua atenção é disputada por quatro mulheres: a namorada, a ex-esposa, a filha e a morte. A temática do filme é uma leitura dos cinco estágios da elaboração de uma perda, segundo Kubler-Ross (1969): negação, raiva, negociação, depressão, aceitação. Ao mesmo tempo que o personagem principal passa por esses estágios, ao perceber que está morrendo, vemos suas lembranças de quando editava um vídeo de um humorista falando sobre tais estágios paralelamente, nos informando sobre a situação momentânea do personagem.

"All That Jazz".

Um elemento que exerce papel fundamental na construção deste filme é a edição. São muito bem feitas as inserções de certas imagens que estão aparentemente deslocadas da ação principal. Como, por exemplo, na cena em que Joe Gideon (personagem principal) está, após sofrer um infarto, sendo operado e ao mesmo tempo, os produtores do musical que ele faria estão discutindo quanto dinheiro ganharão ou perderão dependendo do sucesso da cirurgia – a ironia presente neste trecho é fortíssima, e é talvez a cena na qual a crítica ao sistema capitalista e à indústria cinematográfica é mais intensa. Esta crítica é completada no filme de um jeito sutil e irônico nos créditos finais, com a música “There’s no business like showbusiness”.

Algo que chama atenção na narrativa é o significado da morte para o personagem Joe Gideon, muito maior do que para qualquer outra pessoa. Para ele, a morte é o último “ato” do espetáculo da vida, simbolizando isso com o último número musical do filme, “Bye Bye Life”; O protagonista vê tudo, até a própria morte, como espetáculo (O mesmo acontece com a personagem Roxie Hart, de “Chicago”). Com isso concluímos que a idéia central de “All That Jazz” é a idéia de que vivemos no mundo do espetáculo. Tudo é espetáculo, até a própria morte.

  1. A nova geração de musicais do século XXI

No ano de 2001 é lançado o filme musical “Moulin Rouge” do diretor Baz Luhrmann e, com ele, o gênero musical ganha novamente força em Hollywood, agora, dotado de novas características. Exemplos desses novos musicais são: “Dançando no escuro” (2000), “Chicago” (2002), “8 mulheres” (2002), “Rent” (2005) e “Sweeney Todd” (2007).

Marcos Aleksander Brandão, em sua dissertação de mestrado, desenvolveu uma análise do filme “Moulin Rouge” que pode ser estendida a esses novos musicais, caracterizando-o como um musical pós-moderno a partir da identificação de algumas características principais:

1.    Heterogeneidade: nos personagens ou na temática;

2.    Canções fragmentadas e repetidas;

3.    Utilização de efeitos especiais;

4.    Excesso e exagero: o filme trabalha com excesso de cortes, cores, atitudes, representando uma realidade, de certa forma, exagerada;

5.    Formato videoclipe;

6.    Constante diálogo com outras obras e culturas: intertextualidade e hipertextualidade.

Partindo dessas características o filme “Sweeney Todd” do diretor Tim Burton foi analisado tentando identificá-las em cenas do filme ao mesmo tempo em que o contrapomos com musicais clássicos como “Cantando na chuva” e “A noviça rebelde”, pertencentes à Época de Ouro dos musicais de Hollywood.

  1. Análise do filme “Sweeney Todd” e comparação com os musicais clássicos de Hollywood

O filme “Sweeney Todd”, assim como muito dos musicais clássicos de Hollywood, é uma adaptação de um musical da Broadway e, já neste fato, podemos associar uma das características citadas acima: a do diálogo com outras obras. Esta característica vai ser muito recorrente em todo o filme dialogando com diversas obras, como por exemplo, com os filmes do Expressionismo alemão, na maquiagem dos personagens; com os filmes de HQs, no exagero com que algumas cenas são retratadas e, com Sin city pela maneira como o sangue é utilizado no filme; com os filmes de terror pela escolha de uma “atmosfera” mais sombria e, principalmente, com os filmes da produtora londrina Hammer, pela utilização de câmeras abaixo do nível dos personagens. Outro diálogo que pode ser atribuído ao filme é com relação à caracterização do personagem principal, o barbeiro Sweeney Todd, representado por Johnny Depp, com outro personagem, também representado por ele, o Edward de “Edward mãos de tesoura” de 1990 e também do mesmo diretor. Em uma das cenas do filme, na qual ele revê suas navalhas pela primeira vez, uma fala do personagem principal também nos remete a este diálogo: “Finalmente, meu braço esta completo novamente!”

Cena do filme "Sweeney Todd: O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet".

O filme apresenta uma temática um tanto quanto bizarra. Um barbeiro depois de ter sido preso injustamente e ter perdido sua esposa e sua filha, retorna a Londres com outro nome e a vingança como seu único objetivo. No decorrer da história ele acaba matando um homem que o reconhece e, a partir daí, passa a matar seus fregueses e a rechear tortas com a carne dos mortos. Com apenas este breve resumo da história do filme podemos perceber que ela muito se diferencia da dos musicais tradicionais que eram, em grande maioria, alegres e apresentavam um final feliz. Em “Sweeney Todd” não temos alegria, mas sim tristeza e ódio, além do final não ser feliz, pelo menos para os protagonistas, se aproximando mais dos musicais down dos anos 70.

De maneira a combinar com a temática bizarra e sombria do filme, os cenários também encaminham-se para esta linha mais sombria. Eles retratam a Londres do final do século XIX, suja, feia, com problemas de esgoto, higiene e alimentação da sua população. São cenários muito diferentes dos apresentados em filmes como “A noviça rebelde” ou “Cantando na chuva” nos quais eles foram bem projetados de modo a agradar visualmente o publico; em “Sweeney Todd” eles, normalmente, não agradam ao público do ponto de vista estético, mas sim por estarem coerentes com a proposta do filme. Também é possível perceber a utilização de efeitos especiais, principalmente, nas cenas mais gerais da cidade, outra característica dos musicais pós-modernos.

Ainda fazendo a comparação do filme de Tim Burton com os clássicos do gênero podemos perceber uma grande diferença na utilização da câmera para retratar as cenas musicais do filme. No início do gênero, a música era bastante presente e ela, quase sempre, vinha acompanhada de dança; a câmera, então, realizava poucos movimentos e as cenas, normalmente constituídas por planos mais gerais, tinham poucos cortes porque a intenção era, especialmente, mostrar a coreografia que os atores realizavam enquanto cantavam. Já, no “Sweeney Todd”, assim como em outros musicais dessa nova geração, a câmera é muito mais dinâmica: utiliza-se de cortes, movimentos de câmera, planos diferenciados, tudo isso misturado para se construir a idéia que o número musical pretende transmitir. Em Sweeney, especialmente, quase não ocorre dança; o movimento dos atores é muito bem estudado em todo o filme, porém, uma verdadeira dança só ocorre após a primeira hora de filme e nela a câmera dança junto com os atores rodando em torno deles na direção oposta de seus movimentos.

Outra característica importante de ressaltar no filme em questão é o fato da maioria das músicas não serem diegéticas, ao menos da apresentação que acontece no mercado de Londres, e serem de fundamental importância para o entendimento da trama, como acontece com os momentos de flashback.

Continuando a identificar as características dos musicais pós-modernos podemos citar as cenas nas quais até a mendiga canta, ou seja, todos cantam no filme independente de classe ou de serem os personagens principais. As canções são repetidas de formas fragmentadas no decorrer do filme, muitas vezes mesclando temas diferentes numa mesma cena musical, outra característica citada no ponto 5 deste trabalho.

Com esta breve análise é possível perceber que os musicais dessa nova geração apresentam algumas diferenças com relação aos musicais clássicos de Hollywood e algumas características mais gerais que possibilitam sua identificação como musicais pós-modernos.

Bibliografia

REIS, Guilherme “Sweeney Todd: O lado down do gênero musical no cinema”, Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão, Ano XIX, n. 5 – vol. II

BRANDÃO, Marcos Aleksander “A Transtextualidade remixada em “Moulin Rouge – Amor em vermelho” (2001): Uma análise de quatro cenas do filme”, Dissertação de mestrado sob orientação do Prof. Dr. Rogério Ferraraz apresentada pelo Programa de Mestrado em Comunicação Contemporânea, da Universidade Anhembi Morumbi.

VIEIRA, João Luiz. Cinema e performance. In: Xavier, Ismail (org.) O cinema no século. São Paulo: Imago, 1996

* Amanda de Castro Melo Souza, Nicole Santaella, Patrícia Castilho, Pedro Garcia e Zoe Sá Dall’Igna são graduandas em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

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Este post tem um comentário

  1. Author Image
    Marcos Aleksander Brandão

    Prezados Todos, boa noite!

    Fiquei muito lisonjeado por ter sido citado em um texto tão categórico e muito bem estruturado.

    Parabéns a todos!

    Se precisarem, estou à disposição!

    Abs,
    Marcos Aleksander Brandão

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