Anticristo (Lars von Trier, 2009)

Wanderson Lima*

A má vontade da crítica em relação a Anticristo deve ser creditada, em parte, às imposturas do encrenqueiro Lars Von Trier, mas nem por isso se trata de uma atitude justa. Anticristo é uma grande obra, possivelmente a maior feita por Trier, e no entanto, no Brasil, a tônica foi falar mal do seu diretor ou enfileirar moralizações mal disfarçadas.

Vou aqui recorrer a uma argumentação diferente, na minha defesa da película de Trier. Direi o que o filme não é, baseado em opiniões da crítica com as quais não concordo.

1) Desarticulação do prólogo

Não, o prólogo não é desarticulado do restante do filme nem é um exercício esteticista estéril. Ele é uma síntese precisa do filme, articula praticamente todos os símbolos da narrativa e já mostra o entrelaçamento entre sexo, culpa e religião. Da mesma forma, já desvela a ambigüidade do sujeito feminino, mãe-fêmea. Se é preciso acusar o prólogo de algo, é de um excesso de controle racional (tudo na cena é símbolo, nada é objeto “natural”) e não de desarticulação, pois se tiver uma coisa ausente do prólogo é a gratuidade. A câmera lenta (recurso diabolizado por certos críticos) se junta à bela ária de Händel para criar uma atmosfera celebratória, onde o amor e a morte se entrelaçam como em um rito sagrado. Também o preto-e-branco ali é um agente produtor dessa atmosfera.

2) Terror mal realizado

Anticristo não é um filme de terror mal realizado simplesmente porque não é um filme de terror. Trier se vale de elementos do terror para criar um filme metafísico. A natureza do mal e sua relação com o feminino é o que interessa a Trier e não pregar sustos e chocar. Em segundo plano, temos uma das mais veementes sátiras às nossas modernas técnicas terapêuticas e à propalada segurança e racionalidade do macho. Trier nos diz que não há sublimação possível para o luto e o remorso, eleva a culpa a uma dimensão metafísica e, neste patamar, não há terapia ou psicanálise que possa ajudar. Resta à protagonista uma descida aos infernos, um retorno ao arquétipo da mulher-bruxa, que, como filha de Satã, não precisa mais temer sua casa, isto é, a Natureza (por isso, a personagem feminina, a certa altura, diz: “A Natureza é a igreja de Satã”).

3) Mal articulado, cheio de choques gratuitos

Assim como o prólogo, todo o filme é pensado a partir de uma lógica simbólica em que cada elemento está ali não para preencher o quadro, mas para concretizar uma idéia abstrata e exorcizar um fantasma interior do diretor. As sementes de carvalho que batem no teto; o simulacro dos Reis Magos representado pela raposa, o gamo e o corvo; o pesado objeto que é colocado na perna do protagonista; a estada deste no buraco da raposa e a mutilação genital, nada disto é mal articulado ou gratuito, ao contrário formam um tecido cerrado e denso, um discurso furioso sobre a fragilidade de nossa condição frente à experiência do Mal.

Sem dúvida, em alguns momentos o simbolismo chega a ser tão ostensivo que o enredo perde o interesse. Mas é preciso que entendamos o porquê dessa falha: quem dá o ritmo ao filme é a construção dos símbolos e não as peripécias do enredo.

4) Exorcizando fantasmas

Parte da crítica quis reduzir o filme a uma mera válvula de descargas dos fantasmas interiores do diretor. Proclamaram, com a ajuda de depoimentos imbecis do próprio Trier, que o filme era “fruto de dois anos de depressão”. Se fosse assim, eu cuidaria logo de ter quatro anos de depressão, pois assim, quem sabe, eu escrevia um bom romance! A questão mesmo é plasmar numa forma artística o sofrimento pessoal. Trier se aproxima da família de artistas como Bataille, Sábato, Genet e Céline – artistas que se salvaram da loucura graças à capacidade de expressá-la na arte.

Na verdade, é possível que parte da crítica de cinema no Brasil não tenha recebido bem a Anticristo também por um déficit de formação intelectual. Eu mesmo confesso que, por não ter lido muita coisa de ocultismo e bruxaria, deixei de entender melhor algumas coisas ali. Não digo que o crítico deva ter lido tudo, visto tudo. Mas é estranho ouvir de críticos aparentemente cultos que o filme não tenha qualquer embasamento, sendo simples ato de confissão de uma mente perturbada. Não dava, pelo menos, para ver ali uma filiação a um “Repulsa ao sexo” de Polanski e a um “Cenas de um casamento” de Bergman?

Wanderson Lima é poeta e ensaísta. Professor de literatura da Universidade Estadual do Piauí – UESPI e doutorando em Literatura Comparada pela UFRN. É co-editor da revista dEsenrEdoS (http://www.desenredos.com.br/) e mantém o blog O Fazedor (http://blogdowandersonlima.blogspot.com/).

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Este post tem 4 comentários

  1. Author Image
    Ricardo Bittar Sanghes

    Oi Wanderson.
    Legal o texto.

    De quais críticos você fala? Quais revistas e jornais?

    Abraço

    Ricarso
    Unisul

  2. Author Image
    Wanderson Lima

    Caro Ricarso, obrigado pela atenção e disponibilidade para o diálogo! Só como exemplo, vê o que o Leonardo Amaral disse do filme na excelente Filmes Polvo. Ele chega a escrever isto: “…Antichrist não suscita qualquer discussão estética, poética, filosófica, humana: um diretor que mal pensa onde posicionar sua câmera (o filme exemplifica isso muito bem)”. Sinceramente! Quando uma das revistas mais sérias de cinema do país permite um crítico garatujar coisas desse naipe, algo vai muito errado. Um crítico não deve se esconder por trás de imprecações: se não gosta, deve justificar – ou ainda, deve calar e fazer do seu silêncio uma crítica. Xingar, nesses casos, é apelação infantil. Mas,veja bem, este texto do Amaral foi a regra e não a exceção. E por isso eu generalizei. Umas das poucas exceções dessa postura foi o inteligente texto do Fábio Andrade, na Cinética.

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    Vanessa F.

    Acabei de ver o filme pela tv a cabo… Tinha lido uma critica interessante da VEJA sobre a Obra e fiquei esperando que ela fosse lançada para que eu pudesse atisiti-la no cinema… Mas infelizmente, isso não ocorreu… Nem mesmo em Campinas… Nem mesmo em DVD consegui encontra-lo. Gostei muito! E me assustei quando resolvi ler algumas criticas ao filme… A maioria, extremamente negativa.

    As profundidades humanas nem sempre são belas… Entre o caos organizado da arte e a mentalidade pouco educada de nosso país, existe um grosso manto de hipocrisia e falta de discernimento… Enfim… Parabens pelo post… e pelo blog…

    Obrigada.

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