Diálogos entre cinema e literatura: a tradução isotópica de Vidas Secas

Por Alfredo Werney*

1- PLANO GERAL

A literatura brasileira despertou e ainda desperta a atenção de muitos de nossos cineastas, sobretudo daqueles que não defendem, com veemência, o purismo da linguagem cinematográfica. Diversas obras que foram basilares para a formação da literatura nacional – como Macunaíma, Menino de engenho, A hora e a vez de Augusto Matraga, Memórias Póstumas de Brás Cubas, A terceira margem do rio – transformaram-se em filmes de igual importância para o desenvolvimento do cinema em nosso país.

Não há como negar que as películas de Nelson Pereira dos Santos que se basearam na obra Graciliano Ramos – a saber, Vidas Secas (1963) e Memória do Cárcere (1984) – estão inclusas nas parcerias mais bem realizadas entre artistas brasileiros. Graciliano, escritor consolidado da literatura brasileira moderna, inaugura uma visão de sertão mais crítica e dialética em nossa tradição romanesca. Desvencilhando-se dos recorrentes clichês da visão pitoresca dos regionalistas típicos e do naturalismo da escrita realista, o autor alagoano empreende em sua obra uma visão de mundo mais polifônica, em que as personagens não são apenas porta-vozes de uma determinada ideologia do autor. Como nos mostrou Alfredo Bosi (1981), os romancistas de 30 procuraram navegar pelas discussões de cunho social e histórico e, dessa forma, romperam com o realismo do século XIX, impessoal e demasiado científico.

Dentre as obras cinematográficas que procuraram traduzir o universo de signos verbais de Graciliano em imagens e sons, podemos destacar Vidas Secas. Indubitavelmente, uma das realizações cinematográficas que mais deram notoriedade ao trabalho de Nelson Pereira. O cineasta paulista, desde a sua importante película Rio, 40 graus já demonstrava o seu veio neorrealista, através de uma linguagem mais direta e sem elementos desnecessários para a compreensão da narrativa, da pesquisa estética do cotidiano do brasileiro e do registro documental da realidade social e histórica.

O filme Vidas secas é considerado uma matriz para outras obras do cinema brasileiro. Sua linguagem, que questiona a decupagem clássica e se preocupa com uma estética que represente as contradições e os problemas sociais do Brasil, é repleta de inventividade e é avessa aos lugares-comuns presente em muitas obras do cinema narrativo hollywoodiano. O cinema novo, com Glauber Rocha como o grande maestro desta corrente estética, sempre delegou a Nelson Pereira um papel fundamental na construção da linguagem do cinema moderno brasileiro.

Podemos dizer que os projetos artísticos de Nelson Pereira e de Graciliano se afinam em diversos pontos, visto que se trata de artistas que procuraram interpretar o Brasil de uma maneira mais realista e dialética, através de uma estética que não apela para o pitoresco e que não se utiliza de um discurso grandiloquente. A depuração da linguagem, a apresentação da realidade cotidiana sem as marcas de uma imaginação transbordante, a construção de personagens comuns e sem heroísmos são pontos em comum na obra do escritor e do cineasta.

A análise do filme Vidas Secas se torna mais complexa e instigante pelo fato de não se tratar de uma mera adaptação, mas de uma obra que problematiza a estética do cinema clássico e propõe uma visão inovadora de cinema brasileiro. A partir do conceito de isotopia, presente na semiótica greimasiana e da idéia de tradução intersemiótica, de Roman Jakobson (posteriormente desenvolvida por Julio Plaza), pretendemos desenvolver uma breve análise do filme Vidas secas. Nosso enfoque é no processo de construção de sentido da obra cinematográfica. Interessa-nos, portanto, saber como os elementos da linguagem cinematográfica estão estruturados e como o cineasta os utilizou para realizar a transmutação de sentidos do sistema de signos verbal para o sistema visual/sonoro.

2-             ENTRE PLANOS: A RELAÇÃO ENTRE CINEMA E LITERATURA E O PROBLEMA DA TRADUÇÃO

“No cinema, ler filmes. E em casa, assistir a livros. Inversões? Não. Apenas uma realidade que nasce naturalmente, quando nos deparamos com adaptações da literatura em superproduções cinematográficas”.

(Cácio Xavier Pereira).

Muito se discute sobre as relações existentes entre o cinema e a literatura e não há como negar a contaminação de sentidos que uma arte efetua na outra no contexto atual. Porém, as discussões que envolvem signos verbais e signos audiovisuais, em sua maioria, não ultrapassam a idéia de “fidelidade” e “infidelidade” ao texto original. Não é raro ouvirmos, quando se trata de filmes baseados em obras da literatura: “Gostei mais do livro. O filme não é fiel à obra literária!”. É importante superarmos o conceito de adaptação como um processo de transposição meramente técnico e sem inventividade, para que possamos compreender melhor as relações entre essas duas linguagens artísticas.

O cinema, como apontam os estudos que se centram na imanência da linguagem fílmica, possui uma gramática própria. E diga-se: uma gramática independente da verbal. Se fizermos um paralelo entre o plano da expressão de um filme e o plano da expressão de um texto escrito, veremos que há muitas diferenças materiais entre eles. No cinema, a palavra se converte em planos, cortes, montagem, trilha sonora, luz, cenário, além de outros componentes fílmicos. Dessa forma, não podemos exigir de um cineasta que transponha para a tela todas as situações e traços estilísticos de uma obra literária, uma vez que o cineasta tem em suas mãos uma matéria de expressão bem diferente da linguagem verbal. Entretanto, é importante observarmos que há, tanto no cinema quanto na literatura (na verdade, na linguagem das artes em geral), uma semelhança na estruturação e na organização dos componentes de suas linguagens.

Acreditamos, portanto, que seja mais coerente utilizarmos o conceito de “tradução intersemiótica” para nos referirmos a uma obra literária que se transmutou em filme. Roman Jackobson, um dos primeiros estudiosos a criar categorias para a tradução, define a “tradução intersemiótica” como a interpretação de signos verbais em signos não-verbais (como é o caso da transposição de uma obra escrita para a linguagem audiovisual). Júlio Plaza (2001), em um estudo mais extenso e detalhado sobre o problema da tradução, compreende este tipo de tradução como:

[…] prática crítico-criativa na historicidade dos meios de produção e reprodução, como leitura, como metacriação, como ação sobre estruturas, eventos, como diálogo de signos, como síntese e reescritura da história. Quer dizer: como pensamento em signos, como trânsito de sentidos, como transcriação de formas na historicidade (p. 14).

O conceito de “adaptação para o cinema” parece sobrepor o signo verbal ao audiovisual, delegando um papel secundário à sétima arte. Trata-se de uma visão que não abarca as complexidades críticas, históricas e criativas de que nos fala Plaza. Quando falamos de “tradução intersemiótica”, não se trata, portanto, apenas de uma questão de nomenclatura: o que se almeja é afirmar que todo ato de traduzir é um processo de recriação, de expansão de significados. Recriar pressupõe, dessa maneira, alargar as possibilidades de leitura da obra literária, ao invés de tão-somente trazer para a tela uma narrativa pré-existente.

Nelson Pereira, com toda sua experiência na recriação de livros de nossa literatura, soube realizar um trabalho repleto de inventividade ao traduzir para o cinema Vidas Secas. O cineasta não se conformou em simplesmente criar uma narrativa que ilustrasse o livro, mas soube transportar as diversas isotopias ali presentes. Dessa maneira, há em sua obra o desejo de expandir o horizonte de leitura da obra do escritor nordestino. Com efeito, a película do cineasta de Tenda dos milagres trata-se de um empreendimento estético de grande fôlego, pois põe em discussão toda uma tradição cinematográfica que está ligada à ideia de uma narrativa fílmica contínua e de forte apelo emocional, sem rupturas e ousadias estéticas, como as representações naturalistas de algumas produções de Hollywood.

3-                 CONEXÕES INTERSEMIÓTICAS: NEORREALISMO, NELSON PEREIRA DOS SANTOS E O ROMANCE DE GRACILIANO RAMOS.

Não se pode afirmar que Nelson Pereira dos Santos é, no rigor do termo, um cineasta do neorrealismo, mas é inegável a influência desta corrente estética em seu cinema. Rio, 40 graus, ao mostrar em uma linguagem simples e direta o cotidiano do Rio de Janeiro, é um dos primeiros exemplos da influência do cinema italiano na obra do diretor paulista. O Neorrealismo, movimento estético surgido na Itália do pós-guerra, procurou construir um cinema que rompesse com o modelo de estúdio da cinematografia hollywoodiana e pudesse fazer com que as pessoas refletissem, de forma mais intensa e politizada, sobre os problemas sociais do seu país. Os filmes passaram a ser produzidos nas ruas, a realidade passou a ser fixada sem muitas manipulações, os personagens foram compostos de pessoas comuns, sem precisar recorrer às estrelas do cinema mundial, pelo menos em grande parte das produções.

Os filmes neorrealistas buscaram, dessa forma, um discurso mais depurado, avesso ao exagero retórico e ao espírito grandioso presente em gêneros fílmicos como o romance. A ideia central era valorizar cada momento da nossa realidade cotidiana, ao invés de extrair ficção dela. “A realidade está lá. Por que manipulá-la?” era uma das máximas de Roberto Rosselini, que influenciou toda uma geração de cineastas no mundo todo (incluindo, evidentemente, nosso cineasta de Vidas Secas). O “Cinema novo” com sua “estética da fome”, proposta por Glauber Rocha, reorganizou muitas ideias e técnicas do cinema italiano pós-guerra para expressar sua indignação contra o cinema massificador e acrítico. Além de tratar das questões políticas que envolvem o cinema, Glauber Rocha, em sua estética da fome, toca na questão da literatura:

O que fez do Cinema Novo um fenômeno de importância internacional foi justamente seu alto nível de compromisso com a verdade, foi seu próprio miserabilismo, que, antes escrito pela literatura de 30, foi agora fotografado pelo cinema de 60; e, se antes era escrito como denúncia social, hoje passou a ser discutido como problema político. (p. 02).

Nelson Pereira – que exerceu uma clara influência nas ideias do autor de Deus e o diabo da terra do sol – disse-nos, em entrevista, sobre o neorrealismo italiano: “foi o ponto de partida, a gente descobriu que podia fazer cinema no Brasil sem estúdios gigantescos, sem grandes capitais, com equipamento leve”.

Do ponto de vista da linguagem cinematográfica, muitos métodos mudaram com o surgimento da estética neorrealista. A montagem, por exemplo – que foi um processo por muito tempo propalado como o mais importante do discurso fílmico – já não ocupava mais um lugar central no discurso fílmico. A luz utilizada, em grande parte das obras, era natural. Em relação à dimensão sonora, predominava o uso do som direto em detrimento das orquestrações grandiosas de compositores como Max Steiner e Jerry Goldsmith. Efetivamente, todos estes elementos foram organizados com o intuito de se produzir o efeito de sentido de realismo e concretude. O filme Vidas Secas, como veremos posteriormente ao nos debruçarmos sobre seus componentes estéticos, foi pautado em um discurso que muito se aproxima dessa linguagem do cinema italiano pós-guerra.

Cabe, após essas descrições do cinema neorrealista, perguntarmos: o que tudo isso tem a ver com a escrita de Graciliano? O escritor alagoano surge em uma época da nossa literatura, como afirmara Antonio Candido (1992), cheia de neorromânticos e neobarrocos. Graciliano representa, dessa forma, a instauração de uma escrita menos carregada de metáforas e de excessos emocionais. Observa-se, em seu modus operandi, uma ruptura com um modelo de escrita empolada e floreada do Romantismo e de outras correntes que se pautam no dramatismo e no contraste (não queremos dizer com isso que um modo de escrita é superior ao outro). Antonio Candido (1992), sobre estas questões, nos disse:

Esse medo de encher lingüiça é um dos motivos da sua eminência, de escritor que só dizia o essencial e, quanto ao resto, preferia o silêncio. O silêncio devia ser para ele uma espécie de obsessão, tanto assim que quando corrigia ou retocava os seus textos nunca aumentava, só cortava, cortava sempre, numa espécie de fascinação abissal pelo nada – o nada do qual extraíra a sua matéria, isto é, as palavras que inventam as coisas, e ao qual parecia querer voltar nessa correção- destruição de quem nunca estava satisfeito. (p.144)

Graciliano Ramos foi, deveras, um escritor muito exigente com sua obra. Não admitia o desequilíbrio da forma. Porém, não se perdia em exercícios formais estéreis. Um dos pontos mais notáveis de sua obra é o equilíbrio entre o plano da expressão e o plano do conteúdo, ou seja, o que se diz e como se diz são dois processos equivalentes. Nesse sentido, verificamos mais uma aproximação com o cinema de Nelson Pereira, pois são dois artistas em que suas obras brotam do exercício da inteligência e do contínuo trabalho com a forma. Tanto na escrita de Graciliano como no cinema de Nelson, os componentes materiais (as palavras e os planos) “inventam as coisas”. Portanto, expressão e conteúdo, no modus operandi desses artistas, não são fenômenos diferentes.

4-                 PLANO DE DETALHE: UM OLHAR SOBRE OS COMPONENTES DA LINGUAGEM CINEMATOGRÁFICA.

Um breve olhar sobre os componentes cinematográficos de Vidas Secas nos proporcionará uma melhor visão de conjunto da narrativa fílmica. Sabemos, como nos mostrara A. J. Greimas, que “a significação pressupõe a existência da relação: é o aparecimento da relação entre os termos que é a condição necessária da significação” (1973, p. 28). A observação de elementos isolados, portanto, não deve ser entendida como algo estanque, pois o sentido emana não da soma das partes, mas do diálogo entre os elementos da narrativa.

São muitos os componentes que participam da construção de sentido de uma obra fílmica, visto que o cinema é uma arte que, em sua própria constituição, abrange variados discursos e formas artísticas. Dentre estes componentes estéticos que mais nos chamaram a atenção na obra de Nelson Pereira dos Santos destacamos: a economia de recursos, o uso estético do silêncio, a questão do desafeto e da falta de comunicação no processo de construção dos personagens, a utilização da perspectiva, e a transmutação de isotopias de um sistema de signos para o outro (da narrativa literária para a cinematográfica).

4.1- A ECONOMIA DE RECURSOS: UMA ESTÉTICA DO MENOS

Vidas Secas trata da escassez e da degradação humana. Há escassez de afeto, de comunicação, de alimentos, de água, de recursos, de conceitos, dentre outros. Nelson Pereira expressou estas ideias (ou seja, transportou esta isotopia para o cinema) através de uma estética que recusa tudo que não é essencial para a construção do discurso fílmico. Por este motivo, a linguagem do filme é seca (no sentido de ser direta: mostrar as coisas em si e não criar conceitos sobre estas), os planos são montados sem abusar de recursos metafóricos e de efeitos visuais desnecessários.

Em relação à câmera, podemos dizer que ela não se movimenta de maneira brusca e capta somente o indispensável para a compreensão da narrativa. Na maioria das vezes ela se encontra fixa, como se estivesse apenas fazendo um registro da realidade. Busca-se, dessa maneira, captar as imagens de modo documental, como uma forma de não exagerar (alguns diriam “mascarar”) a realidade do sertanejo nordestino. O efeito de sentido firmado pela câmera é, claramente, o de objetividade.

A camada de sons do filme anda no mesmo sentido. Nunca é decorativa, pois sempre está presente na película em virtude da expressão plástica da cena. Daí a economia de sons do ambiente e a supressão (quase que em sua totalidade) de música strictu senso. O elemento sonoro que prevalece na trilha sonora é o da roda da carroça: um ruído estridente e angustiante que se concatena muito bem à vida circular e repetitiva da família de retirantes.

No que se refere ao cenário do filme, vemos que ele é pobre e denuncia o desprezo humano. O sol é filmado em plano fechado e acusa a desertificação e o forte calor da região. As longas estradas que visualizamos parecem nos dizer que Fabiano e sua família andam em direção ao vazio, a lugar nenhum. Os galhos secos e retorcidos figurativizam o tema da ausência de afeto nas relações e o tema da fragilidade humana. Por este motivo, também, é que as falas das personagens são demasiado reduzidas.

Em resumo, podemos afirmar – tendo em vista todas as constantes estéticas que elencamos – que Vidas Secas é uma obra cinematográfica pautada por uma estética do menos, em que os excessos são recusados e se procura atingir uma expressão artística mais apolínea. Nesse sentido, o cineasta é muito sensível ao universo de Graciliano – um escritor que, nas palavras de Otto Maria Carpeaux (1999), “seria capaz de eliminar páginas inteiras, eliminar os seus romances, eliminar o próprio mundo” (p.445).

4.2- A CONSTRUÇÃO DAS PERSONAGENS

Os personagens de Vidas Secas são marcados pela incomunicabilidade e pelo aspecto rude. Este fato pode ser observado na própria estrutura da obra literária: capítulos isolados, quase que independentes um do outro e a utilização de poucos diálogos, como já se mencionou. Os personagens não são meros títeres nas mãos do escritor nordestino. Sendo assim, cada personagem (incluindo a cadela) possui uma consciência autônoma e formam, no conjunto da obra, uma verdadeira polifonia, para utilizarmos um termo bakhtiniano. Nomeia-se polifonia porque a voz do autor não é dominante. Ela se entrecruza com outras vozes, que são também de igual valor para o discurso literário. Neste trecho do livro, podemos verificar a construção de um contraponto entre duas vozes:

– Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta.

Conteve-se, notou que os meninos estavam perto, com certeza iam admirar-se ouvindo-o falar só. E, pensando bem, ele não era homem: era apenas um cabra ocupado em guardar coisas dos outros. Vermelho, queimado, tinha os olhos azuis, a barba e os cabelos ruivos; mas como vivia em terra alheia, cuidava de animais alheios, descobria-se, encolhia-se na presença dos brancos e julgava-se cabra.

Olhou em torno, com receio de que, fora os meninos, alguém tivesse percebido a frase imprudente. Corrigiu-a, murmurando: – Você é um bicho, Fabiano.

Isto para ele era motivo de orgulho. Sim senhor, um bicho, capaz de vencer dificuldades. (RAMOS, 2010. p. 19)

Nelson Pereira, sensível a essas questões, reconstrói através de planos sonoros e visuais as principais constantes estilísticas que perfazem os personagens. O lado desafetuoso, a desarmonia com o ambiente, o silêncio angustiante e a animalização dos personagens foram reconstruídos no filme. O discurso do diretor também não é dominante, ele deixa que a consciência de cada indivíduo que compõe a obra literária brote no decorrer do filme.

Fabiano, Sinhá Vitória, o menino mais novo e menino mais velho formam um painel da degradação e da desgraça humana. Retirantes e sem perspectiva, andam sem destino em busca de uma vida menos árida. A escassez de suas vidas chega a tal ponto, que há a necessidade de se eliminar um dos próprios personagens dessa saga, o papagaio (que, ao contrário do que se pensa dessa espécie, trata-se de um bicho também silencioso). Não há espaço em suas vidas para a demonstração de afeto e carinho. O trabalho com a profundidade de campo denuncia tal efeito: a família geralmente aparece em planos diferentes e um membro distante do outro.

O soldado amarelo representa o autoritarismo e o patriarcalismo inerentes às relações sociais do sertão nordestino. Franzino e covarde, sua força não é força do homem bruto do sertão, mas se trata apenas de um poder legitimado pelas instituições sociais. Pelo fato de ser um policial, ele se utiliza dessa força simbólica que se encontra na farda para humilhar os menos favorecidos e sublimar seu lado agressivo.

Baleia, certamente um dos personagens mais marcantes da literatura nacional, possui uma consciência independente e parece ser uma das personagens mais humanas e simpáticas da obra. No capítulo “Baleia”, fica evidente o processo de humanização:

Baleia encostava a cabecinha fatigada na pedra. A pedra estava fria, certamente Sinhá Vitória tinha deixado o fogo apagar-se muito cedo.

Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes. (Idem, p.91)

No que se refere à linguagem cinematográfica, a câmera contribui sobremaneira para tornar a cachorra uma personagem importante na narrativa. Ao enquadrá-la, a câmera movimenta-se de maneira mais intensa e imprime em sua composição uma linguagem menos rígida, efeito de sentido que torna patente a humanização da cadela.

Em geral, os personagens do filme traduzem muito bem a falta de harmonia, de afeto e de comunicação que se observa no livro de Graciliano. Não podemos deixar de mencionar os elementos da linguagem cinematográfica, que são de grande importância na construção de sentido das personagens: a maquiagem, o figurino, a fotografia, a ausência de música, além de outros recursos.

4.3- O USO ESTÉTICO DO SILÊNCIO

Em uma obra cinematográfica, a supressão dos sons não pode ser entendida como uma ausência de signos. No cinema contemporâneo, sobretudo naqueles que se baseiam em um discurso mais contido, observamos, cada vez mais, que o silêncio é trabalhado como um valioso componente da estética do filme.

Vários são os sentidos que o silêncio pode expressar em uma obra audiovisual: suspensão, ampliação de um drama, ocultação de informações, revelação de sentimentos, sensação de angústia, dentre outros. Daí que precisamos observar, de maneira minuciosa, as diferentes formas e funções desse componente musical de uma obra fílmica, para melhor compreendermos o discurso cinematográfico.

Ney Carrasco (1993), em seu estudo “Música e articulação fílmica”, elabora uma interessante argumentação sobre o uso dramático do silêncio. O pesquisador faz a seguinte divisão: o silêncio nas pistas de diálogos; o silêncio nas pistas de música e o silêncio nas pistas dos sons naturalistas. Carrasco afirma que a pausa nas pistas dos naturalistas é o tipo de silêncio mais peculiar e que pode gerar dois interessantes efeitos. Um deles é o silêncio absoluto, no qual ouvimos apenas os ruídos da sala de projeção. Outro efeito é a transferência das informações sonoras apenas para a música. Ou seja, o silêncio é suplantado pela presença dos sons musicais.

Em Vidas Secas predomina um silêncio nas pistas de diálogos, para expressar a escassez de comunicação entre os indivíduos. Há também a utilização do silêncio nas pistas dos sons naturalistas (ou seja, os ruídos do ambiente são retirados). Este último recurso nos leva a uma atmosfera de vagueza e de existência tediosa. A ausência de som natural do ambiente evidencia a ideia de que o mundo não tem mais significado para as personagens inseridas nele.

4.4- A PROFUNDIDADE DE CAMPO

Marcel Martin (1963), em sua importante obra “A linguagem cinematográfica”, afirma-nos que a profundidade de campo é uma das conquistas supremas da autonomia da linguagem do cinema (p. 147).  Diz-nos também que este aspecto da imagem cinematográfica implica uma concepção de realização e também uma concepção de cinema.

Um dos efeitos provocados pela profundidade de campo em um filme é a simultaneidade de ações que podem ocorrer em um mesmo plano. Martin (1963) alerta, porém, para o fato de que este efeito não pode desembocar na pura teatralidade. Isto é, a câmera não pode simplesmente se fixar em um ponto para captar diversas ações e perder sua capacidade de expressão. Vidas Secas é uma obra que consegue coadunar (de forma convincente) a expressividade da câmera com a profundidade de campo.

Nelson Pereira utiliza, em algumas cenas, os personagens de Vidas Secas em diferentes pontos de um mesmo plano. Dessa forma, o cineasta cria um rico efeito de profundidade. O sentido transmitido na cena é o de distanciamento entre as pessoas. O diretor nos revela, assim, a ausência de afeto nas relações familiares. Além disso, esta distância entre os indivíduos (o que expõe visualmente várias direções e caminhos) parece nos dizer que a família de sertanejos caminha ao léu, em busca do nada.

As sequências em que fica mais evidente o uso simbólico da profundidade de campo são as que a família caminha na estrada em busca de uma moradia. Sinhá Vitória, com sua mala na cabeça, é a personagem que se encontra mais próxima da câmera, possivelmente ressaltando o seu papel dominante nas relações familiares; Fabiano está um pouco mais distante da câmera; o menino mais velho vem logo atrás de seu pai e o menino mais novo ocupa a última posição no enquadramento.

5- A ISOTOPIA DAS LINGUAGENS

A isotopia – inicialmente um termo utilizado na físico-química e posteriormente transplantado para a semiótica por A. J. Greimas – refere-se aos procedimentos utilizados para dar unidade e homogeneidade ao discurso. Para José Luiz Fiorin, a isotopia se revela através de recursos como reiteração, redundância, repetição e a recorrência de traços semânticos. Trata-se do procedimento que dá coerência semântica ao texto.

Há entre o romance literário e o filme uma transmutação de isotopias. Em outras palavras: Nelson Pereira, sem deixar de lado a experimentação e a capacidade criadora da linguagem fílmica, soube “transportar” os diversos planos de sentido da obra de Graciliano para o cinema. Há diversas isotopias presentes no livro que também podem ser observadas no filme: o tema da escassez, da ausência de afeto, da exploração do homem do campo, da falta de sentido da existência humana, dentre outros.

Em relação ao plano da expressão de Vidas Secas, podemos verificar que existe uma harmonia entre a obra fílmica e a literária. O discurso dos sons e das imagens procura recriar procedimentos utilizados na escrita realista de Graciliano. Dentre as diversas operações formais do filme, podemos destacar: A ausência de música strictu sensu para enfatizar a linguagem seca de Graciliano; uso de poucos diálogos para evidenciar a incomunicabilidade entre os personagens; um maior movimento na montagem dos planos em que aparece Baleia para demonstrar a “humanização” do pequeno animal. Por fim, o distanciamento dos personagens no enquadramento (a profundidade de campo) para mostrar a falta de afeto entre as pessoas.

5-      ÚLTIMAS TOMADAS

Nelson Pereira dos Santos, ao invés de apenas transportar uma linguagem verbal para uma linguagem audiovisual, procurou realizar uma intensa pesquisa estética sobre as possibilidades de representação da arte cinematográfica. O cineasta soube recriar, com mestria, as diversas isotopias apresentadas no romance de Graciliano Ramos. Dentre os elementos utilizados para a realização de sua transcriação, destacamos a objetividade da câmera, a economia de recursos, a pouca utilização de diálogos, o uso estético do silêncio e o simbolismo extraído da profundidade de campo.

Vidas Secas, neste sentido, trata-se de uma obra cinematográfica que não pode ser rotulada como uma simples adaptação do romance de Graciliano, porque se utiliza de uma linguagem que aponta novas possibilidades de leitura da obra literária. Estamos diante de um filme que se propõe a realizar uma crítica, ao mesmo tempo, no campo social e estético. No campo social a obra discute e põe em xeque as estruturas mantenedoras da pobreza e do patriarcalismo da região Nordeste. No campo da estética, questiona a decupagem do cinema clássico e os padrões da narrativa tradicional hollywoodiana. Nelson Pereira dos Santos consegue se desvencilhar, portanto, dos exercícios formais estéreis (que não nos dizem nada) e dos discursos políticos sectários que empobrecem a arte – problemas inerentes ao cinema brasileiro que foram criticados por Glauber Rocha, de forma peremptória, em sua “Estética da fome”.

* Alfredo Werney é músico e arte-educador, mestrando em Literatura pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI).

REFERÊNCIAS

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1981.

CANDIDO, Antonio. Ficção e Confissão. São Paulo: Editora 34, 1992.

CARRASCO, Ney. Música e articulação fílmica. São Paulo: USP. Dissertação de mestrado, 1993.

CARPEAUX, Otto M. Visão de Graciliano. In: Ensaios reunidos. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999. p. 443-449.

FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Editora Contexto, 2011.

GREIMAS, A. J. ; COURTÉS, J. Dicionário de semiótica. São Paulo: Contexto, 2008.

GREIMAS, Algirdas J. Semântica estrutural. Tradução de Haquira Osakabe e Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix: Edusp. 1973.

MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. Belo-Horizonte: Editora Itatiaia, 1963.

PEREIRA, Cácio Xavier. Primeiras e outras estórias: uma tradução intersemiótica da literatura para o cinema. Dissertação de Mestrado. Universidade Estadual de Montes Claros – MG, 2011.

PLAZA, Julio. Tradução Intersemiótica. São Paulo: Editora Perspectiva, 2003.

RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 114 edição. Rio de Janeiro: Editora Record, 2010.

ROCHA, Glauber. Estética da fome. (mimeografado), sem data.

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