O Iluminado (Stanley Kubrick, 1980)

Por Marco Sartori*

A cena todo mundo conhece. Depois de abrir um buraco na porta do banheiro a golpes de machado, onde sua mulher tenta se esconder, o personagem de Jack Nicholson enfia sua cabeça na fenda e solta a frase: “Here’s Johnny!”. Sobrancelhas arqueadas, boca semi-aberta, fileiras de dentes claros à mostra, barba por fazer e o olhar capaz de congelar o mais destemido dos corações. Se apenas uma imagem no cinema sintetizasse toda a loucura, esta cena de O Iluminado (1980), de Stanley Kubrick, provavelmente a mais icônica do filme, seria escolhida como tal.

A história é baseada em um livro de Stephen King, de apenas três anos antes. Nicholson é Jack Torrance, um ex-alcoolatra que consegue um emprego de zelador durante o inverno no isolado hotel Overlook e arrasta sua mulher, Wendy (Shelley Duvall), e seu filho, Danny (Danny Lloyd), para o local. O garoto, por sua vez, tem um dom que mal conhece: uma espécie de telepatia, e logo pega afeição pelo cozinheiro do hotel, Dick Halloram (Scatman Crothers), que possui o mesmo dom. Quando todos vão embora e a família se encontra sozinha, o hotel começa a manifestar-se.

O diretor de 2001: Uma Odisséia no Espaço (1968) e Laranja Mecânica (1971), conhecido por seu perfeccionismo e por repetir seus takes à exaustão (chegando a mais de cem em alguns casos) partiu para um terreno ainda inexplorado por ele. O Iluminado é conhecido como um dos maiores filmes de terror da década de 80, mas é muito mais calcado no suspense psicológico do que no puro horror. Para isso, Kubrick recorreu a sua estética bastante característica, além de algumas idéias já conhecidas do gênero.

Para criar um clima de pesadelo, há várias inserções de cenas rápidas durante o filme. No início, ficamos sabendo das mortes que ocorrem no hotel, o que confere a ele um currículo sinistro. As irmãs assassinadas pelo antigo zelador aparecem em cortes rápidos na película, tempo suficiente para a imagem ficar marcada no nosso subconsciente. Volta e meia há também uma cena em que um mar de sangue escoa pra fora dos elevadores, tomando os corredores e tingindo as paredes de vermelho.

Kubrick também abusa da simetria das formas na imagem para causar o medo. A excelente escolha da locação e suas formas contribuem para essa sensação de duplicidade e ambiguidade. Há uma terrível opressão, ora ocasionada pela alta dimensão do teto do hall, ora pela baixa altura das estruturas do corredor, que enclausuram Danny em seu passeio no triciclo. Todas as composições de quartos, com abjures dispostos igualmente em ambos os lados da cama também dão esse tom. A própria imagem das irmãs, que apesar de terem dois anos de diferença, parecem gêmeas, com a mesma estatura e as mesmas peças de roupa corroboram para a sensação.. E também há a presença de espelhos durante o filme. Elementos recorrentes desde o princípio do cinema fantástico, o verdadeiro embate entre o ego e o alter-ego do ser humano, a linha tênue que separa a sanidade da loucura.

Em si só, o hotel é um personagem a parte. Logo no início somos levados a um tour pelos seus corredores, conhecemos alguns dos lugares onde os principais fatos irão ocorrer. E no decorrer da trama, mais o hotel se apresenta como uma forma orgânica, que ilude, oprime e enlouquece os personagens. O hall principal, os apertados corredores filmados numa câmera baixa que persegue Danny, na altura de seus olhos, o quarto 237, com o segredo mais assustador do filme, que abruptamente corre de um momento sensual para o mais pavoroso possível. O hotel está ali, instigando e colocando ódio numa mente enfraquecida por ressentimentos.

E também há a escolha do uso dos banheiros nos maiores momentos de tensão. Desde Psicose (1960), de Alfred Hitchcock, porões escuros e sótãos empoeirados não causam tanto temor quanto o visual asséptico dos banheiros nos filmes de horror. Existe essa desmistificação do lugar da casa onde normalmente nos limpamos de nossas sujeiras do dia-a-dia subvertendo-o para um espaço onde podem ocorrer os crimes mais hediondos. O local da casa onde praticamos nossos rituais de higiene, maculados pelo sangue e podridão, causam o choque no espectador. E no caso de O Iluminado, também é onde ocorrem as intrigas, onde a semente do mal é plantada mais funda na cabeça de Jack. A escolha das cores em duas dessas cenas denuncia os banheiros como algo diferente de nossa realidade, quase outra dimensão.

Se por um lado, já no início do filme, a telepatia de Danny é mostrada como um fato real e verossímil, a existência ou não de fantasmas não é tão clara. Os espíritos são muitas vezes insinuados, e quando aparecem, o espectador está apto a confundir a realidade com os devaneios dos personagens. Para Jack, eles aparecem em seus momentos de maior fraqueza e frustração, para Wendy, na histeria, e para Danny, mesmo que seja o tempo todo, não temos certeza, pois se trata de uma criança com uma imaginação extremamente fértil. Aos poucos, os fantasmas parecem ser mesmo uma manifestação real, mas as dúvidas ainda permanecem, se é realidade ou fantasia.

No meio de toda a tensão, a trama ainda abre espaço para discursar sobre a crise do patriarcado. Em sua escalada de loucura, aos poucos, enquanto o hotel vai corrompendo a mente de Jack, ele se volta mais contra sua família. A solidão ali representada, com só os três interagindo entre si, é só um dos pontos que levam à insanidade do personagem. Existe uma vingança devido ao fato de Jack se sentir culpado por um incidente com o filho e por sua mulher culpá-lo por isso. Na busca por curar esse rancor, se refugia no bar do hotel. E cada vez mais alimenta a vontade de por os parentes no devido lugar, mostrando quem comanda, como na cena em que observa, onipotente como um deus, a miniatura do labirinto, e essa imagem se revela na verdade a de sua mulher e seu filho no labirinto real.

A obra quando lançada gerou atrito entre Stephen King e Stanley Kubrick. Conta-se que era comum diretor ligar para autor no meio da madrugada, com perguntas como se ele acreditava em Deus. King já disse publicamente que detesta a adaptação. Muito provavelmente pelo fato de Kubrick ter dado prioridade a um horror mais subjetivo e, de sugestão e menos direto, e por ter deixado de lado algumas loucuras maiores do texto original, como os animais feitos de arbustos que ganham vida e a personalidade de Jack Torrance. No livro, em dados momentos somos levados a acreditar mais  na possessão do que na loucura do personagem. Mudanças essas que enriquecem a trama e comprovam Kubrick como um dos diretores mais geniais e autorais do cinema.

*Marco Aurélio Sartóri é formado em jornalismo na Faculdade Prudente Moraes e é graduando no curso de Imagem e Som.

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