Não Amarás (Krzysztof Kieslowski, 1988)

No poético de Krzysztof Kieslowski

Por Carine Lorensi*

Cartaz do filme na Polônia

Que o perfil simbólico e sutil do cineasta polonês, Krzysztof Kieslowski, gerou certa surpresa nos espectadores quando ele filmou Decálogo para a TV polonesa em fins da década de 80 é fato, pois para quem era acostumado a testemunhar seus filmes que permeiam o cotidiano, a política e a sociedade em uma Polônia comunista, foi surpreendido ao conhecer o lado místico de Kieslowski, quando ele resolveu unir essas temáticas a preceitos cristãos. Decálogo, porém, que seriam os Dez Mandamentos Cristãos, foi encaminhado de outra maneira pelo diretor polonês, o que resultou na desmistificação do propósito temático do qual era esperado nos curtas, pois em nenhum dos filmes há a presença de Deus nem como redentor e tampouco como condenador das ações praticadas pelos personagens, sendo essas ações certas ou erradas. Não são filmes com intuito de doutrinar e sim uma fantástica obra cinematográfica que emerge sobre os conceitos centrados nas relações humanas e seus aparatos. Entre os dez filmes que englobam o Decálogo, Não Amarás (em polonês Krótki film o milosci), o sexto episódio, consolida-se como o mais poético, silencioso e sensível dos filmes, pois a narrativa lenta com que Kieslowski encaminha o filme nos leva a adentrar ao psicológico dos personagens e, de certa maneira, a formar uma opinião relevante a respeito de suas atitudes, vinculando aos conceitos do certo e do errado. O espaço da narrativa fílmica é urbano sob a estação do outono, deixando assim um cenário sombrio e de abandono e que de certa forma se atribui às expectativas dos personagens, pois no filme há a presença do individualismo do personagem que vive em um mundo solitário e melancólico e que serve justamente como uma fuga da realidade. Ainda assim, há os que digam que esse filme não busca atrelagem no romantismo como escola literária, mas algumas cenas nos colocam na eminência de uma bonita história de amor.

O personagem principal do filme é Tomek (Olaf Lubaszenko), um rapaz solitário de 19 anos que ocupa seu tempo espionando com sua luneta a vizinha que mora no mesmo complexo habitual que ele, porém no prédio em frente. Durante o dia ele trabalha nos correios e à noite passa horas a se divertir, espiando inclusive a vida sexual de Magda (Grazyna Szapolowska), por quem se apaixona. Quando se vê obcecado por ela, Tomek arquiteta planos para fazer com que seus destinos se aproximem.  Durante o expediente nos correios, Tomek envia avisos falsos para que Magda compareça à agência e assim possa vê-la. Assistindo a essas cenas de invasão de privacidade e de jogos sujos dos quais Tomek é o sujeito, Kieslowski nos induz, em primeira instância, julgar o comportamento do rapaz, pois toda a história se desenvolve através da visão desse personagem, por isso somos encaminhados a assistir o filme através da luneta que o rapaz usa para espionar o apartamento da amada e desta forma nos coloca como uma espécie de testemunha das ações praticadas por ele. Certo dia, após um mal entendido na agência dos correios, Tomek se declara para Magda e assume não somente o seu amor como também o uso da luneta que faz de seu apartamento a fim de espioná-la. A partir dessa confissão, Magda inicia um jogo sujo com Tomek no intuito de feri-lo e é neste momento que Kieslowski, de certa forma, inverte as posições dos personagens. Após saber da espionagem do rapaz, Magda faz sexo com o namorado em seu apartamento para que Tomek a veja. Nesse momento começamos a perceber que as atitudes de Tomek não eram tão recriminatórias, pois de certa forma se igualam às atitudes das quais Magda agora é o sujeito.

Mais para o meio da narrativa, Tomek, no desespero de estar perto da amada, emprega-se como entregador de leite (na Polônia comunista nos anos 80 havia entregas de leite de porta em porta). Em certo momento os dois se encontram no corredor do apartamento dela e conversam. Tomek outra vez diz que a ama e Magda, como uma mulher madura, coloca-se a disposição do rapaz, porém ele rejeita, o que de certa forma surpreende não só a ela como também ao espectador que esperava um desfecho caloroso. O que se nota nesse diálogo entre os dois é a presença da expectativa do amor que não necessita de concretizações para satisfazer o amante, pois este se sente feliz em amar sem precisar ter a amada para si, caracterizando, dessa forma, o amor delicadamente romântico.

As oposições entre os dois acontecem desde o início do filme, porém de forma muito sutil. Na primeira cena de espionagem do personagem principal, acontece um pequeno movimento em zoom in e podemos perceber essa oposição entre eles, pois Tomek está no escuro do seu quarto bebendo café e Magda está sob a luz de seu apartamento bebendo leite, ou seja, o café e o leite se opõem,mas também se relacionam em uma mistura homogênea. Esse interesse do diretor em colocar os personagens de forma inversa na maioria dos momentos da narrativa fílmica evidencia a ideia de que pessoas diferentes também sejam capazes de se compreenderem. Assim sendo, fica claro que da mesma forma que Tomek e Magda são opostos, como o claro e o escuro, eles também se correlacionam como o café que tem sua propriedade homogênea com o leite. Na enigmática cena em que Magda chora sob o leite derramado fazendo com que Tomek se comova, Kieslowski nos deixa nítido que também trabalhou com o sentimento de solidão entre os dois personagens, envolvendo duas pessoas de mundos opostos em uma narrativa parcialmente muda, onde as ações, e principalmente as expressões sentimentais, substituem os diálogos, pois através desse silêncio proposital podemos perceber os contrastes sombrios e enigmáticos dos personagens e do espaço em que o enredo da trama nos envolve.

Não Amarás é um filme poético, delicado, silencioso e por vezes sensual. Kieslowski usou os recursos no jogo de câmeras para expandir o romantismo e o sentimentalismo. Neste filme, o diretor polonês desconstrói a expectativa de um final que seria trágico, conforme as características românticas que ocorrem no andamento da narrativa fílmica, pois Tomek tenta o suicídio por amor, mas sobrevive à tentativa e conquista Magda.  Ela, por sua vez, tenta compreender Tomek na lógica do amor e os dois finalmente têm a possibilidade de se encontrarem um no outro.

*Carine Lorensi é graduanda de Letras Bacharelado em Português da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

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