Meia-Noite em Paris (Woody Allen, 2011)

Natália Vestri*

Cartaz nacional do filme "Meia Noite em Paris"

Não é segredo que Woody Allen saiba interpretar somente um tipo de personagem: o dele mesmo. Extremamente semelhantes, os personagens que são encarnados pelo diretor caminham através de uma comicidade ingênua, oscilando entre um pessimismo conformado e um otimismo incorrigível, sem a ambição de utilizá-los para surpreender o espectador. No entanto, o que acontece no novo longa-metragem de Woody Allen, Meia-Noite em Paris (2011), é um pouco diferente. Gil, o personagem principal, surpreende sem surpreender, por ser um velho conhecido do público, o próprio Woody Allen, em versão otimista, mas sem ser, contudo, interpretado pelo diretor. De forma destacada, Owen Wilson trabalha todos os gestos e características infantis de Woody Allen para poder adicionar ele mesmo um tom ainda mais inocente ao personagem que se encanta com a Cidade Luz. Apesar de seu perfil cativante, a força desse filme não vem dele, mas de outro personagem, que, embora não seja humano como Gil, revela uma força muito mais profunda e complexa: a própria Paris.

Quase citando Regen (1929)*, o início do filme afirma o palco dos eventos que serão introduzidos em seguida, apresentando Paris sem demora, através de uma série de cuidadosos planos que revelam cantos óbvios da cidade e outros nem tanto assim, seja na presença do sol ou na da chuva. Essa introdução, quase um poema visual, termina com uma conversa entre o casal formado por Gil e Inez (Rachel McAdams), que discutem não em Paris, mas em seus arredores, nos famosos jardins de Monet. Por um momento, o cartaz do filme se configura: um beijo apaixonado entre um jovem casal que vivencia o cultuado clima romântico parisiense. Não exatamente. Ao longo do filme, os outros personagens da trama questionam por que eles estão juntos e por que eles são um casal – sobretudo a mãe dela e, surpreendentemente, Ernest Hemingway –, mas as justificativas dadas pelos noivos não convencem o público e nem eles mesmos.

Enquanto Gil é um sonhador, cujas ambições buscam sonhos românticos e utópicos, Inez é uma mulher afetada, vinda de família rica, sem a menor disposição para compreender detalhes discretos em seu encanto. Constantemente irritada e insatisfeita com o comportamento do noivo, ela despreza-o para sair com um casal de amigos e com seus pais. Ele, no entanto, está disposto a vivenciar Paris em sua essência, em seus meandros e em suas sutilezas, o que o leva a conhecer a Paris de seus sonhos.


Roteirista que desejava ser escritor, Gil desenvolve um livro que conta a história de um vendedor de brechó, que encontra mais encanto nos tempos passados do que no seu próprio tempo, refletindo, de forma óbvia, os seus próprios desejos. Durante a escrita desse livro, falta-lhe coragem para apresentá-lo ao mundo, deixando-o, dessa forma, engavetado enquanto o reescreve por diversas vezes. Mas o que Gil não esperava era receber conselhos de um grupo tão especial. Levemente embriagado, caminhando perdido pela cidade em busca de seu hotel, Gil aprecia a situação, sentando na escadaria de uma Igreja, observando a jovem madrugada parisiense. Nesse momento, ouve-se doze badaladas que o fazem despertar para um verdadeiro sonho: um carro antigo, da década de 1920, sobe a rua e para a sua frente; dentro dele, franceses vestidos elegantemente com roupas típicas do período o convidam para fazer parte do grupo; ele reluta por educação, mas não demora a aceitar o convite. Rindo e bebendo champanhe, eles chegam a uma festa, na qual estão presentes Cole Porter, Zelda e Scott Fitzgerald e, daí por diante, a madrugada parisiense de Gil transforma-se em uma mistura de sarau cultural e de piada interna literária.

Apesar de vivenciar um ambiente tão rico intelectualmente, conhecendo escritores como Hemingway e Fitzgerald, pintores como Picasso, Matisse, Degas e Gaughin, além de outras influências, como Gertrude Stein – que lê e opina a respeito de seu romance –, Gil não deixa de construir uma relação com as artes que nada mais é do que distante e superficial, reproduzindo falas de grandes artistas como se fossem suas – um exemplo é a cena dele com a noiva e o casal de amigos no Museu D´Orsay, comentando a respeito de um quadro de Pablo Picasso.


Mas o encanto do personagem com a Geração Perdida e a sua genuína euforia ao vivenciar um período que parece muito mais interessante e borbulhante transferem o espectador para a mesma circunstância: lemos um romance de cada um desses grandes autores – ou talvez nem isso –, ouvimos falar seus nomes em adaptações de roteiro para o cinema, vimos seus quadros em livros didáticos ou em documentários na TV, lemos algum livro que analisava suas obras e tomamos opiniões de outros sobre o trabalho de terceiros como se fossem nossos pareceres. E, embora seja raro irmos além dessa “sabedoria fast-food”, desse conhecimento de sinopse do conjunto da obra, dessa noção de catálogo da Wikipédia, não deixamos de desejar, assim como Gil, viver em um momento que não é mais o nosso, um tempo no qual as transformações eram devastadoras, revolucionárias e pioneiras. Essa época, cuja efervescência mudou a História, nos trouxe para um hoje chato e tedioso, assim como todos os outros períodos fizeram com seus períodos seguintes. Carentes de revoluções, encaramos com nostalgia a idéia de que “sem a intensidade da paixão, a vida é, sem dúvida, uma cilada cujo limite é a comodidade, cuja verdade é o medo de ir demasiado longe”**.

* Link do Regen: http://www.youtube.com/watch?v=eNNI7knvh8o

** Ernest Hemingway, Paris é uma festa.

*Natália Vestri é graduada em Audiovisual no Centro Universitário Senac.

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