A simetria do bravo guerreiro

Terça-feira, 20/05/1969

 

Já se disse que “O bravo guerreiro” é o intelectual pequeno burguês, hesitante e impotente, na sua tentativa de oposição ao sistema, que considera injusto. Já se disse que “O bravo guerreiro” é a explicitação das contradições de um tipo de personagem. Que é a revelação das estruturas de poder de uma determinada sociedade: que é o raio X de uma política de conchavos, onde o poder econômico transmite suas decisões a seus representantes, que legalmente executam as tarefas do poder em nome do povo, (“seus compromissos com o povo são abstratos, nossos compromissos econômicos são concretos”… palavras de um senador-personagem). Já se disse que “O bravo guerreiro” acompanha claramente o projeto de lei que se opõe aos interesses da Associação Industrial (órgão existente na fita) e que o governador–personagem respondeu ao deputado do projeto: “A economia (ou os que comandam a economia) tem suas leis, que nada tem a ver com estas leis humanitárias”. O bravo guerreiro já disse que a luta dele é contra os poderosos; que a luta [ ] é a favor do povo que não está no poder (”quem de vocês se reconhecem no poder”). O bravo guerreiro já disse que os poderosos não escutam o povo porque eles não falam a língua dele e o bravo guerreiro já disse que ele sim fala a língua dos poderosos, mas ele traiu os poderosos em nome do povo assim como os poderosos traíram o povo em nome dos seus interesses. Mas o bravo guerreiro já viu também que a sua traição não tem sentido e não leva a nada se for só sua. Por isto o bravo guerreiro fala diretamente com o povo “de amigo para amigo”, e procura convencê-lo: procura mostrar-lhe que está com ele e em nome dele lutará até o fim contra os poderosos. Conclama o povo a “usar as mesmas armas dos poderosos numa luta sem tréguas contra eles para estabelecer a justiça”. Mas o bravo guerreiro já viu, também, que o povo não o escuta “porque prefere evitar a angústia de ver sua própria imagem e se contenta em dizer que Deus quer assim” (palavras do bravo guerreiro e do senador-personagem). O senador-personagem disse que “a fome, a miséria e a corrupção são flores do mal do subdesenvolvimento e que o povo é frágil; deve-se conduzi-lo a bom porto sem que ele perceba a profundidade do mar que atravessa”. E o bravo guerreiro terminou o seu discurso e percebeu que nada mais sabia fazer com suas mãos do que gesticular. Depois, o suicídio. E o filme terminou o seu discurso. Um filme que é um discurso. Um filme sobre o discurso. Um filme que se estrutura, se articula e se desenvolve em torno do discurso. Um filme que revela a estrutura do discurso. Um filme rigoroso como um discurso, político, em que cautelosamente se justapõe e se contrapõe os elementos, construindo precisamente uma peça rígida, que se pretende inatacável: que se apresenta frio, matemático, científico, mas que é fruto de um envolvimento total de quem o pronuncia. “O bravo guerreiro” estoura por dentro, mas disciplina a sua explosão: a sensibilidade se concentra na elaboração de uma estrutura, na realização total dessa estrutura, e atinge o poético através do rigor. De início, o filme discursa ─ conta fatos linearmente montados em função do diálogo ─ o diálogo centraliza o fato. E caminha criando um espaço-tempo cada vez mais fechado em torno da sentença falada, em torno do universo unidimensional da língua, construindo-se o discurso final dentro de uma só coordenada, fundindo-se texto e contexto.

Já citei que o bravo guerreiro é o intelectual em crise diante do subdesenvolvimento. Isto o liga a “Terra em transe” e a “O desafio”. Não se liga de forma direta, mas simetricamente. Nesses filmes, a crise leva a uma reflexão desesperada, que se solta em busca de uma definição dentro de uma subjetividade: os filmes se estruturam em torno de contradições mediatizadas e impulsionadas pelas reflexões do personagem-projeção do autor. Em “O B G” não há mediações, caminhamos linearmente ruma à crise. As angústias do autor são proibidas de gritar na tela. “Em terra em transe”, principalmente, o discurso corre solto, procurando dentro de estruturas poéticas atingir o político. O filme explode. “ O bravo guerreiro” é um filme implosivo, que não dá lugar a explosões barrocas. A lucidez obriga a reconhecer o incontestável: o bravo guerreiro assume a política como uma solução e uma justificação para a sua existência; o fracasso político não se antecipa a suas angústias, mas apenas deflagra o seu retorno ao desespero, fruto da sua própria fraqueza. Em “Terra em transe” discursa. “O bravo guerreiro” explica o porquê do discurso e da auto-destruição.

Refletindo e alimentado esta proposição, esta postura diante da crise, a “câmara contemplativa” (segundo a denominação de uma estética “participante”) e o despojamento dominam “O bravo guerreiro” e concretizam a sua simetria em relação a uma tendência predominante no cinema-novo.

Ismail Xavier

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