William Wilson: Da Literatura para o Cinema

Carine Lorensi*


Resumo:

Este trabalho verifica sobretudo, como se estabelece a construção do personagem no conto e no filme, de que maneira o escritor americano apresentou, no conto, a concretização do efeito da duplicidade e do sósia no personagem principal e a maneira como essa temática foi abordada pelo diretor francês no filme.

Introdução:

As relações entre literatura e outras formas de expressões artísticas, atualmente, correspondem a uma referência aos estudos acadêmicos, mas também no âmbito do senso comum. Tem sido cada vez mais comum que textos literários sejam adaptados para diversas mídias visuais, mas especialmente para o cinema, para o vídeo e para a televisão. Dessa maneira, essa pesquisa consiste em problematizar, através da análise comparativa, as relações existentes entre o conto William Wilson, de Edgar Allan Poe, e a adaptação cinematográfica William Wilson, de Louis Malle, apresentando os elementos intertextuais que aproximam e relacionam a obra cinematográfica da literária, focando, especialmente, o recurso literário da duplicidade em ambas as obras. Estabelece, também, os pontos de contato existentes entre o conto e o filme, descrevendo como acontece esse contato e quais são os elementos que constroem esses pontos.
Nesse sentido, esse artigo propõe o desenvolvimento de análise fílmico-textual sob forma de pesquisas bibliográficas a partir de uma estratégia comparatista, pois se embasa na“literatura comparada como forma de investigação que se situa ‘entre’ os objetos que analisa, colocando-os em relação e explorando os nexos entre eles, além de suas especificidades” (CARVALHAL, 1998, p. 74). Busca, portanto, relacionar o texto literário com o registro cinematográfico, adotando uma visão crítica sob o conto de Poe e a adaptação de Malle, focando o expediente do “duplo” como ponto privilegiado na análise nas duas narrativas. Esse artigo será desenvolvido acrescido da análise fílmico-textual.

Pressupostos Teóricos:

O conto William Wilson de Edgar Allan Poe, assim como a maioria de seus contos, apresenta a temática do mistério e do suspense, sendo esse o principal estilo da escrita de Poe.
A epígrafe com que Poe abre o conto não deixa dúvidas sobre a temática acima descrita: “Whatsayof it? What say of conscience grim, that spectre in my path?”3
A palavra “conscience” não está destacada na epígrafe por mero acaso, pois no conto é explícito o desafio do personagem em busca do seu eu e da sua identidade, a qual ele pensa estar sendo usurpada por seu sósia.
O conto William Wilson apresenta um personagem que vive um conflito psicológico, mas sem ter consciência disso. Ele vive o drama de ser perseguido por outro eu (seu duplo) que o reprime e pune nas situações cruéis em que causa dor e humilhação aos demais personagens. Esses aspectos indicam que William Wilson apresenta um distúrbio psíquico em seu processo de auto-identificação, partindo-se em dois: o que faz a maldade e o que a condena.
Pelo título do conto já se estabelecem relações que direcionam a suposições analíticas dentro do texto em relação a esse eu/outro. Sendo o texto escrito em língua inglesa, evidencia-se no nome do protagonista um jogo de palavras: William = Will I am (Will eu sou) e Wilson = Wil’son (filho de Will), o que implica a sugestão do duplo, do dois e da imitação, elementos recorrentes no texto. Além disso, emerge uma referência familiar hierárquica: o pai corrige as falhas do filho, da mesma forma que faz um filho rebelde que busca se livrar da repreensão de seu pai. Texto e filme apontam o aspecto não só da imitação, mas também da fuga desesperada desse eu que é reprimido e corrigido por um “sósia”.
No filme homônimo, o diretor Louis Malle cria diálogos e explora as ações do personagem, ao passo que o conto apresenta o personagem por meio do narrador em primeira pessoa. Através de um jogo de câmeras, o diretor recria e enfatiza o ambiente sombrio, misterioso e de suspense que carrega o filme e dessa mesma maneira ele gradativamente vai construindo o personagem principal.
De acordo com Cunha (2007, p. 27), “É pela sucessão de imagens, sejam elas com ou sem movimento interno, que se constrói o narrar”. A narrativa fílmica inicia com a introdução do conto de Poe, em que o narrador-protagonista usa de uma metáfora para se auto definir psicologicamente: “(…) e entre as minhas esperanças e o céu, paira, eternamente, uma espessa nuvem negra, sinistra e ilimitada.” (POE, 1984, p. 108). O diretor parte desse conceito e inicia seu filme mostrando a dispersão de nuvens negras. A câmera focaliza essa imagem por alguns segundos e na sequência escutam-se nitidamente os passos de alguém que corre por algum lugar com respiração ofegante. O ruído desses passos vai se misturando aos sinos da catedral, que soam com força. Nesse momento a câmera se coloca em dois focos distintos: primeiramente no foco subjetivo, substituindo os olhos do personagem e apresentando o cenário onde a narrativa está acontecendo. Logo depois, na sequência, a câmera se posiciona no foco campo, contra-campo, substituindo ora os olhos do personagem, ora os olhos do telespectador.
O filme então traz flashes de outro acontecimento mesclado com os focos distintos da câmera e com o som dos sinos, neste momento mais aguçado. Um homem cai em queda livre da torre da catedral enquanto os sinos ressoam sem parar: “O sino é o símbolo da união entre o céu e a terra.” (LURKER, 1997, p. 677). Vale lembrar que o corpo está em queda livre, obviamente de modo vertical, ou seja, do céu para a terra.
Toda essa introdução, através das imagens e da simbologia, apresenta a proposta de leitura do conto de Poe por Malle em seu filme e desafia o espectador a perceber a dimensão social do espaço, a criação da atmosfera, a característica do personagem através dessa dimensão do espaço, elementos literários reconstruídos na linguagem do cinema. Além disso, esta abertura, sob a forma de uma prolepse, sugere um possível desfecho trágico que não fica explícito no início, mas que se correlaciona com a expectativa de um telespectador curioso.
Mas adiante, no decorrer do filme, o personagem entra na catedral e se confessa com o padre. O diálogo da confissão se constrói pelas descrições que o personagem faz no texto literário. A partir desse momento, tanto o texto literário quanto o fílmico se evidenciam de certa forma, pois os dois se submetem a uma analepse, porém, no texto fílmico, o personagem confessa ao padre toda sua trajetória de vida até o presente momento, ao passo que, no texto literário, o personagem descreve ao leitor o lugar onde passou a infância, o que evidencia que o espaço físico descrito pelo narrador do texto literário influenciou o senso psicológico do protagonista. É este senso psicológico resultante que é apresentado no texto fílmico, pela voz do próprio personagem. “Texto e filme se equivalem, porém por elementos diferentes” (SOUTO, 2000, p. 79), ou seja, enquanto no texto fílmico tem o padre como ouvinte da confissão do personagem, no texto literário tem o leitor como ouvinte dessa confissão.
No filme, Malle nos mostra o passado e o cotidiano de um garoto interno que é dominado por atitudes cruéis e que assim age com os demais. É dessa maneira, como foi dito anteriormente, que o diretor francês usou as descrições do espaço físico para construir o personagem, isto é, o personagem do filme (e porque não dizer também do texto) é construído a partir das dimensões de espaço.
Chega-se ao ponto principal e pertinente do tema dessa análise, porque é neste momento que o protagonista dos dois textos conhece o seu suposto sósia, que lhe imita em tudo, inclusive no nome e sobrenome. Esse sósia que nada mais é do que a sua própria consciência, que o reprime e condena, pois, segundo Freud, o duplo nos acompanha desde os primórdios da psique humana, todos nós temos uma parte de nós mesmos que estranhamos e relutamos a reconhecer.
Há evidências na história de que esse sósia não pode ser real e sim fruto da imaginação do personagem. Dois fatos muito relevantes que evidenciam a suposta insanidade do personagem, além de outros existentes, podem ser explicitados para corroborar a afirmação: em nenhum momento é mencionado que esse sósia se relaciona com os outros colegas da escola, essa relação é apenas com o personagem; e o sósia imita o personagem em tudo exceto na voz, pois essa é baixa e rouca. Seria essa voz baixa e rouca a própria voz do personagem na tentativa de se autocorrigir dos erros.
As descrições feitas pelo personagem do texto literário e a interpretação do personagem do texto fílmico permitem perceber, de uma maneira mais específica, o comportamento do personagem em busca de sua identidade, a exemplo de como descreve Gasperin, mas a respeito de sua leitura fílmico-textual sobre Shakespeare. As tentativas de fuga do personagem são sempre em vão, pois cada vez mais ele, estranhamente, se reconhece no outro. A sua busca por se afastar definitivamente do outro encaminha a narrativa para o final, quando William Wilson perde a referência do outro e ruma para a dissolução de si próprio, mostrando que é só na diferença que a verdadeira identidade pode se instaurar. Isso se evidencia na transcrição do trecho final do texto literário: “(…) aproximei-me dele cheio de terror e vi caminhar para mim a minha própria imagem, com o rosto extremamente salpicado de sangue, avançando a passos lentos e vacilantes” (POE, 1839, p. 125).
No texto literário, a confirmação da identidade se dá através de um espelho, no encontro com o seu eu, e no texto fílmico essa confirmação acontece através de um duelo sangrento de espadas. Nos dois contextos, literário e fílmico, o personagem tem esse encontro final consigo mesmo e esse William Wilson, na agonia da morte, já não fala com a voz rouca e baixa, mas com uma voz murmurante. No texto literário registra-se: “Você venceu, e eu pereço. Mas daqui para o futuro você também estará morto. Morreu para o mundo, para o céu e para a esperança! Existia em mim. Olhe bem agora para a minha morte, nessa imagem – que é a sua – você verá seu próprio suicídio.” (POE, 1839, p. 125); e no texto fílmico: “Wilson, você não deveria ter me matado, sem mim você não existe. Acabou o mundo, acabou a esperança. Eu morro, você morre também” (Malle, 1968).
Esta breve análise comparativa evidencia semelhanças ou diferenças entre o texto escrito e o texto fílmico, partindo-se de um mesmo tema, ou seja, como tal repertório literário é adaptado no cinema através da leitura do diretor, que lança mão de pressupostos simbólicos aliados à interpretação literária.

Considerações preliminares:

Esse trabalho comparativo resultou na elaboração de um artigo, que se estabelece a partir de vínculos com a área da Literatura Comparada.
No conto, narrado em primeira pessoa, é a narração do personagem que direciona as ações que ele desempenha no filme, é através das descrições do espaço e de seu senso psicológico que esse personagem narrador se desenvolve dentro da história. Todas as descrições são somatórias dentro da narrativa, pois de acordo com Barthes (1972, p.37), “A descrição não tem marca preditiva, sua estrutura é puramente somatória”.
Dessa maneira, podemos agregar as somas dessas descrições que o personagem nos apresenta como o principal fator para o desenvolvimento narrativo textual.
Já no filme tendo a apresentação de diálogos, é a forma como o personagem se desenvolve dentro da narrativa fílmica, ou seja, é através das ações resultantes desses diálogos que a história acontece. Não há uma somatória de descrições e sim uma somatória de ações que implicam no desfecho do filme.
Portanto, conclui-se a partir dessa análise fílmico-textual que a maneira como se construiu o personagem no texto difere da maneira como se construiu o personagem no filme, porque no conto o personagem se construiu através das descrições e do diálogo em primeira pessoa e no filme o personagem se construiu através das ações do personagem e do espaço.

*Carine Lorensi é aluna do curso de Letras Bacharelado em Português da UFSM, Santa Maria-RS – Brasil, email: carinelorensi@yahoo.com.br

¹ Conto de Edgar Allan Poe, publicado no ano de 1839.
2 Filme francês de 1968, com direção de Louis Malle e com Alain Delon no elenco.William Wilson faz parte da trilogia de “Histórias Extraordinárias” (em francês Histoires Extraordinaires) que é baseada nos contos de terror de Edgar Allan Poe.Sinopse: O filme William Wilson, segundo da trilogia, é sobre um homem que, durante toda sua vida, foi atormentado pelo seu duplo.
3 “Que dirá ela? Que dirá a terrível consciência, aquele espectro em meu caminho?”

Referências Bibliográficas:
CARVALHAL, Tania Franco. Literatura Comparada. 3ª ed. São Paulo: Ed. Ática, 1998.
CUNHA, Renato. Cinematizações. Brasília: Círculo de Brasília, 2007.
GASPERIN, Adriane. Shakespeare, literatura e cinema: estudo comparatista. São Miguel do Oeste: UNOESC, 2002. [Relatório de Pesquisa; Art. 170/UNOESC-SMO; Orient. Andrea do Roccio Souto]
LURKER, Manfred. Dicionário de simbologia. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
SOUTO, Andrea do Roccio. Édipo rei, do palco à tela: reescrituras. Porto Alegre: UFRGS, 2000. [Dissertação de Mestrado; UFRGS; Orient. Prof. Dr. Ubiratan Paiva de Oliveira]
POE, Edgar Allan.Os melhores contos de Edgar Allan Poe, São Paulo: Ed.Círculo do Livro S.A, 1984.
WILLIAM WILSON, Histórias Extraordinárias (Fr.:HistoiresExtraordinaires), Filme, Direção de Louis Malle, França, 1968.
BARTHES, Roland. Literatura e Semiologia. 3ª ed. Petrópolis-RJ: Ed. Vozes Ltda, 1972.

Author Image

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

More Posts

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

Deixe uma resposta