Arte e jogos eletrônicos: Uma introdução ao conceito de estética aplicado ao jogar digital

Fabrizio Augusto Poltronieri é doutorando em Comunicação e Semiótica (PUC-SP) e professor no curso de Design de Games da Universidade Anhembi Morumbi. Integra o grupo +zero (http://www.maiszero.org). Pode ser contactado pelo email fabriziopoltronieri@gmail.com

“O que nos parece natural é unicamente o habitual do há muito
adquirido, que fez esquecer o inabitual, donde provém”

Martin Heidegger, em “A origem da obra de arte”

1. Introdução

De todas as classificações taxionômicas encontradas no conjunto dos jogos digitais, uma chama a atenção por parecer deslocada – e até mesmo marginalizada – em meio a uma produção que encontra-se, ou procura es­tar, cada vez mais próxima das grandes indústrias mo­der­nas do entretenimento, principalmente a cine­ma­to­grá­fica. Tal categoria atende pelo nome de game art. Esta denominação revela-se pro­ble­má­tica prin­ci­pal­mente quando coloca-se em pauta ques­tões conceituais e epistemológicas tratadas no longo percurso trilhado pela estética, ou filosofia da arte.

É notório o esforço no desenvolvimento de teorias e tecnologias que possibilitam jogar certa luz conceitual e pragmática no universo dos jogos digitais, em especial com relação a seus aspectos narrativos – campo que vem sendo impulsionado centralmente por hibridizações de teorias advindas das áreas da literatura, do teatro e do cinema -, e tecnológicos – onde as denominadas ciências exa­tas buscam algoritmos mais eficientes para a geração e aná­lise de condutas de personagens controladas pelo apa­rato computacional (NPCs) e métodos para otimizar os ciclos do pro­cessamento e das renderizações gráficas, entre ou­tros aspectos não menos relevantes.

Enquanto tais segmentos de pesquisa avançam na tentativa de conceder legibilidade aos intrincados e con­temporâneos fenômenos que são representados pelos jo­gos digitais, as pesquisas sobre o valor estético destes ainda encontra-se no terreno do senso comum. Até mes­mo nos circuitos acadêmicos a discussão estética sobre os jogos digitais é conduzida, muitas vezes, com uma superficialidade que surpreende e incomoda. Os aspectos estéticos deste tipo de estrutura de linguagem absolutamente híbrida acabam sendo reduzidos ao juízo individual de gosto: Por exemplo, se os gráficos que dão forma ao jogo digital são ou não “belos”.

Outro fator complicador é a constante atribuição do adjetivo “experimental” a esta categoria de jogos di­gi­ta­is, como se o rótulo “arte” valide ou justifique qualquer coisa sem um exame detalhado de sua estrutura, partindo de algumas categorias es­téti­cas e filosóficas. Esta deformação conceitual é indese­ja­da por permitir que se abrigue sob o cunho de “es­té­ti­co” ou “artístico” qualquer proposta que simplesmente não se encaixe em outra categoria ou que tenha sido simplesmente mal compreendida.

Distorção também frequente é a descompromissada associação de um grande valor estético ao que se ocupa em recriar, na forma de simulacro, o mundo real, ob­je­tu­al, representado pela natureza. A intenção de muitos jogos digitais produzidos nos últimos anos é retornar ao ideal renascentista expresso pelo termo “janela para o mundo”, na medida em que cada vez mais indi­fe­ren­cia-se o duplo computacional, ficcional, de sua re­fe­rên­cia real. Este tipo de discurso, embora distinto dos acima apresentados, também costuma conferir um ca­rá­ter “artístico” ou “estético” a determinados jogos.

Torna-se possível perceber o constrangimento con­cei­tu­al que expressa-se na falta de clareza argumentativa e teórica impressa à nascente, mas já poderosa, linguagem dos jogos digitais.

A respeito da busca incansável pela idealização de sistemas com vistas à reprodução perfeita da realidade – o que cha­ma­mos de “janela para o mundo”, pois em um estágio técnico avançado não haveria diferença em observar uma janela aberta, uma paisagem pintada em um quadro ou um monitor de computador – Leonardo da Vinci, o maior artista e pensador do alto renas­ci­men­to, já atrelava o sentimento de belo à natureza, por esta conter “formas perfeitas”. Cabia ao artista do re­nas­cimento revelar tal beleza em suas obras. A arte, nesta visão, sujeita-se ao mundo natural, sendo deste mimese – cópia – e transplante.

Até o renascimento, a pintura, a escultura e a arquitetura ocupavam um plano menor na hierarquia das artes, situação herdada da cultura grega platônica. Da Vinci reivindica para estas a condição de atividades não meramente mecânicas, mas sim intelectuais, posição até então somente atribuída à poesia e à música. Para Da Vinci a pintura era a mais elevada síntese de conhecimentos, constituindo em si uma filosofia [Argan, 2008].

A beleza encontrada na arte ma­ni­festava-se a partir de sua inteira cumplici­da­de com o real, com as perfeitas formas, cores, tex­tu­ras e perspectivas naturais. É interessante, entretanto, per­ce­ber e apontar para o fato de que os elementos que tor­nam possível esta duplicação pertencem não ao mun­do da natureza, mas ao da linguagem – o mundo humano. A tecnologia da perspectiva, por exemplo, é criada pela cultura – pro­ces­so acumulativo, de cultivo, da linguagem e, por de­cor­rência, da civilização – para tentar dar conta, de ma­nei­ra pictórica, do real.

Figura 1 - Jogo Crysis, produzido pela EA. O objetivo do game é reproduzir visualmente de maneira fiel o mundo real. Fonte: http://scr3.golem.de/screenshots/0603/crytek-crysis/crysis_05.jpg
Figura 1 – Jogo Crysis, produzido pela EA. O objetivo do game é reproduzir visualmente de maneira fiel o mundo real. Fonte: <http://scr3.golem.de/screenshots/0603/crytek-crysis/crysis_05.jpg>

Entretanto, por ser linguagem já há um afastamento inexorável, que deve ser percebido, do real. A observação de que muitos dos jogos eletrônicos hoje produzidos através das tec­no­lo­gias de modelagem tridimensional, tentam ser exa­ta­mente as “janelas para o mundo” renascentistas, revela, en­tre algumas questões, a submissão de nossa cultura visual – considerando tanto o ocidente quanto o oriente – a uma concepção cujo auge ocorreu há 500 anos. Claro que o processo cultural é um procedimento acu­mu­lativo, e não de simples descarte de momentos his­tó­ricos, o que valida o uso contemporâneo de estruturas do pensamento concebidas em outras épocas. Porém, é no­tável a impermeabilidade dos jogos digitais aos cor­tes epistemológicos criados, principalmente, pelos mo­vi­mentos modernos e contemporâneos no campo da ar­te e do design, que pontuaram todo o século XX.

A tarefa de pensar filosoficamente os jogos digitais – nascente campo da produção humana – a partir de conceitos provenientes da estética é longo, mas necessário. O presente texto, claro, não tem a intenção de esgotar todas as possibilidades envolvidas, mas sim de apontar alguns caminhos para futuras teorias a respeito de uma estética dos jogos digitais.

2. Realidade, ficção, jogos e arte

Quando nos referimos ao mundo real, objetual, fazemos no sentido de estabelecer uma distinção precisa entre rea­li­dade e ficção. Ora, parece-nos claro que, assim como a arte, os jogos digitais pertencem ao domínio da fic­ção por serem, nuclearmente, produtos complexos das linguagens humanas. Não são a realidade, e dai advém o grande poder de sedução por eles exercido.

As argumentações de que os processos narrativos – que bus­cam uma imersão completa no ambiente dos jogos digitais – transportam o interator para um uni­ver­so “real”, criado pela aplicação computacional, não re­sis­tem à uma teoria consistente do real, como a formu­la­da pelo filósofo medieval Duns Scot (1266-1308), que mais tarde foi incorporada ao sistema filosófico de Charles Sanders Peirce (1839-1914).

Real, para estes filósofos, é o que se recusa a rea­li­zar a vontade de um outro. Em outras palavras, o real é algo dotado de von­­tade própria, que oferece resistência. É, portanto, um alter e nossa experiência com o real é marcada pe­la constante necessidade de mediação entre nossas von­tades individuais e os limites que o real – o outro – impõem. Como exemplo, podemos citar o tempo e as va­riações climáticas naturais. Quando chove, o desejo individual de que a chuva cesse em nada influi para que o sol volte a brilhar, pois o tempo é real, dotado de vontade própria, e a vontade de um outro em nada o abala. Esta é a característica mais marcante do real: ser dotado de alteridade, de vontade própria.

Agora, vamos analisar o que é ficção. Se o plano do real demonstra a total falibilidade de nosso desejo em impor determinações a outrem, o campo da ficção ca­rac­teriza-se pela liberdade irrestrita, pois livre é o que não tem sobre si outro que determine suas ações. A linguagem traz essa possibilidade, já que um pintor pode dar forma, em uma tela, a um oceano ama­re­lo; um escritor, em seu conto, pode fazer chover ou ne­var, assim como um game designer, ou programador, po­de moldar um universo inteiro com leis por ele con­ce­bidas. Nada determina a cor do oceano em uma pin­tu­ra, o clima em um conto ou a gravidade em um jogo digital a não ser a pulsão criativa de quem estrutura as linguagens empregadas nestes sistemas. Este terreno absolutamente livre é o da ficção, e a es­té­ti­ca ocupa-se dele.

O ambiente de um jogo digital, por mais que este pretenda ser uma simulação do real, sempre estará fa­da­do à incom­ple­tu­de da linguagem e ao desejo do in­te­ra­tor que, a qual­quer momento, pode simplesmente des­ligar o console ou o computador e voltar-se a outra ati­vidade. Como, no mundo real, desligar a chuva ou o sol?

Aristóteles (384-322 a.C.) já distinguia entre os seres naturais, originários de causas necessárias que independem de nossa vontade, e os produtos da arte, frutos de um conjunto de atividades práticas. Estes últimos são absolutamente dependentes do desejo humano para existirem. De acordo com a concepção aristotélica, a arte é artificial por definição, existindo para aprimorar o natural. A natureza possui um movimento próprio, independente, enquanto a arte necessita de algo que a informe, de um movimento exterior – fruto de um desejo – que introduza forma à matéria amorfa. Esta práxis é uma estrutura correlata à ficção, pois com as técnicas corretas impõem-se à matéria desinformada qualquer forma que corresponda ao pulso criador humano.

Portanto, deste ponto de vista filosófico, os jogos digitais, independente do estilo do jogo, estariam localizados no campo da arte, tornando a classificação game art sem sentido, pois a práxis informadora artística está presente em todos os jogos digitais, que habitam o campo da pura ficção.

O real não é condição sine qua non para a estruturação da linguagem dos jogos digitais, sendo o universo amplo de possibilidades a serem articuladas, a partir de um universo contingente, o grande impulso para a criação de games. O real é independente da linguagem, não é ela que o estrutura. O animal real denominado cavalo, por exemplo, já existia antes da generalização do uso das palavras que o designam nas línguas humanas. Já os mecanismos artísticos, assim como os observados nos jogos digitais, são decorrentes do uso formador da linguagem. Observamos que a linguagem não determina o real, não podendo, por consequência lógica, dar forma a algo que não seja apenas ficção, como a arte ou os jogos digitais.

Entretanto, mesmo o olhar mais desavisado é capaz de perceber níveis de complexidade nos produtos criados pela linguagem, sendo a arte o terreno fértil da linguagem por excelência.  Do ponto de vista da produção desta, algo é mais sofisticado não apenas se é produzido de maneira tecnicamente superior, mas sim se consegue causar um sentimento de assombro, ocasionado pela grandeza e magnitude da estrutura criada com relação às meras coisas, que não são capazes de causar o sentimento peculiar que a experiência da arte traz a tona, de maneira intensa e arrebatadora.

Este sentimento, identificado com a idéia de sublime, é construído conceitualmente por uma série de filósofos importantes para a compreensão estética, como Kant (1724-1804) e Schopenhauer (1788-1860). Diz-nos este último [2001] que a partir da contemplação – definida como a experiência de contato entre a consciência individual, subjetiva, e a idéia, que também é uma manifestação mental, contida na coisa artística – o sujeito desaparece, em virtude do esplendor ao qual sua percepção é submetida, para em seguida ter seu espírito elevado pela experiência de intercâmbio que a arte, através do sublime, proporciona. Quando este fenômeno ocorre, estamos diante do produto do gênio, em seus níveis mais elevados [idem]. Neste ponto a arte difere-se das outras formas de ficção menores.

Isto posto, podem os jogos digitais causarem tal sensação de espanto espontâneo? Tal sentimento de sublime? Ou estarão condenados apenas às proezas do espírito técnico? Uma possível estética dos jogos digitais parece ser necessária para tratar adequadamente – filosoficamente – deste terreno.

Tendo em conta o caráter ameaçador e, por consequência, assombroso que as tecnologias computacionais trazem em seu cerne – por serem incompreendidas em sua essência pela maioria dos seus usuários – Costa [1995] cunha o emblemático termo “sublime tecnológico”, baseado não somente nas características enigmáticas do hardware dos aparelhos, mas principalmente em seus produtos, “imagens sintéticas”, como o autor denomina os produtos da linguagem criados a partir do uso de dispositivos digitais. Para lançar certa luz a este terreno, nos parecer ser essencial identificar o modo de ser da estética e quais são as principais problemáticas envolvidas neste campo.

3. Estética e realidade

A estética preenche o espaço de uma filosofia da arte – tópico que será retomado e aprofundado adiante -, representando uma série de preocupações não só com o fazer artístico – mais especificamente ligado ao que Aristóteles chamou de poética -, mas também com os processos cognitivos, sociais, culturais e históricos que acompanham os fenômenos ligados a arte, cobrindo todo o amplo espectro desta atividade que define e situa o homem e seu entorno. Embora a palavra estética nem sempre tenha sido utilizada para identificar o campo de estudos contemporâneos a que esta se refere, a preocupação em dar legibilidade intelectual à vasta seara fenomênica criada pela arte está presente desde a mais remota antiguidade, embora sua constituição como ciência independente, com método próprio, seja recente [Bayer:1998].

Diante das colocações levantadas até este ponto, um questionamento é ine­vi­tável: Por que, tendo como horizonte infinitas pos­si­bi­lidades livres permitidas pela não determinação do re­al, in­sis­te-se no desenvolvimento maciço de jogos di­gi­tais que pretendem recriar o que já está estabelecido pelas leis do real? É uma questão complexa, com mui­tas variáveis e longe de ter uma resposta única, mas cu­jo esclarecimento atravessa, certamente, questões esté­ti­­cas que tentaremos explorar.

A respeito da relação entre ficção, arte e rea­li­da­de, Platão (427-347 a.C.) aponta para o aspecto re­pre­sentativo da pintura e da escultura, evidenciando o ca­rá­ter de mimese destas. Diante da beleza real encontrada na natureza, que fora copiada diretamente da perfeição encontrada nas essências imutáveis pelo Demiurgo [Nunes, 2002:39], Platão desqualifica a pintura e a escultura como formas de expressão por estarem muito abaixo do real conhecimento que a na­tureza proporciona. Para ele, a atividade dos que pintam e esculpem é inconsistente e ilusória, sendo por isso supérflua. A imitação produzida pela linguagem da arte reproduz somente a aparência exterior do que é retratado, perdendo na representação o espírito animado que encontramos na natureza. O filósofo já havia apontado – como uma das problemá­ti­cas centrais da ar­te – a necessidade de questionar a essência e va­li­da­de da mimese quando comparada com o que é real. Questão filosófica e estética que até ho­je permanece e da qual os jogos digitais são her­dei­ros.

Entretanto, ao imitar o pintor ou escultor não simplesmente reproduz o dado real, mas realiza uma operação de montagem sintática, típica forma estruturante da linguagem. O artista reordena partes do que encontra no mundo natural, transportando-as para o universo humano da cultura. Neste procedimento idealiza-se um modelo, um padrão de perfeição que a arte tende a buscar. A beleza da arte está não na simples cópia, mas na idealização de formas perfeitas a serem alcançadas. Daí a arte ser o modo exemplar de formalização que a linguagem deve obstinadamente seguir. É o que Argan [2008] chama de “valor de exemplaridade”, ou seja, a capacidade da arte produzir modelos para todas as outras atividades humanas. Conclui-se que a arte tem em si um valor operativo, cujo objeto é o mundo humano:

(…) ser exemplar [para Argan] significava a capacidade de chegar a formalizações que servissem de modelo para as demais atividades. Ora, sendo assim tornava-se impossível concordar com uma concepção que compreendia a obra de arte como derivação de “uma exigência expressiva, de uma vontade de forma que decerto modo é imanente a toda uma época” [Naves, 2008].

Em contraponto às concepções platônicas, Aristóteles acreditava que o ato de copiar é essencial aos animais e ao homem, sendo algo natural para estes. As formulações aristotélicas nos mostram que através da imitação adquirimos nossos primeiros conhecimentos, sendo o ato da cópia ainda uma fonte de prazer. Aristóteles parte da formulação lógica de que a imitação pressupõe a imaginação e a comparação. Nunes [op. Cit.:40] nos diz que “no homem, a tendência imitativa está associada à própria Razão, a qual se manifesta na arte, que é o modo correto, racional de fazer e produzir”.

Se a imitação parte da imaginação, como nos diz Aristóteles, a produção da arte está realmente liberta do real, servindo-se deste somente como forma inicial, para logo em seguida estar livre para um jogo lúdico de associações, já que imaginar é a capacidade que o homem possui, através da linguagem, de preencher as lacunas deixadas por discursos incompletos ou por deficiências em nossa forma de perceber e existir no mundo [Flusser, 2002]. É assim que o filósofo aceita de bom grado a arte como aparência, idéia que seria absolutamente rejeitada por seu mestre Platão. A partir da aceitação de que a arte possa ser aparência, Aristóteles a livra do compromisso com o real e a coloca no meio do caminho entre a ilusão completa. Este meio termo, entre existência e inexistência, é chamado de verossimilhança [idem].

Campo das possibilidades, a verossimilhança contém dados do real, mas sua grande força enquanto motor criativo é o espaço imaginativo que esta abre, estando associada a um constante estado de devir. A arte, portanto, nunca pode ser exaurida, pois bebe nesta fonte constante de possibilidades, de produção e de interpretação, já que quem contempla uma obra também participa de sua construção [Eco, 1976].

As culturas ocidentais são frutos destas discussões, que surgiram na Grécia antiga, sendo os jogos digitais um modo de atualizar este imenso campo de possibilidades, muitas vezes contraditórias. É necessário balizar e valorizar o debate a res­peito dos valores estéticos e das múltiplas interfaces com a ar­te, todos encontrados nos jogos digitais, produtos de linguagem completamente imersos nas intrincadas for­mas pelas quais a cultura se mostra nas sociedades con­­tem­porâneas.

O conceito de imaginação abordado revela como os jogos digitais surgiram não como meras cópias do real, mas como produtos advindos de procedimentos imaginativos. Os primeiros jogos digitais, como Pong, de 1972, revelam este espaço que, de alguma forma, se perdeu no decorrer da evolução técnica a que os dispositivos digitais estão constantemente submetidos. Ao jogador era solicitada uma enorme carga de imaginação para crer que um ponto quadrado branco, em uma tela negra, era uma bola de ping-pong – submetida a leis da física que não estavam presentes no jogo digital -, e que dois retângulos, cujos movimentos eram livres, representavam raquetes. O poder de síntese destes jogos transformava-os em amplos espaços abertos para que a ressignificação se desse de forma contínua, requisitada sempre pela sedução que a linguagem nascente dos jogos digitais exercia. Este espaço tornava-se factível através da tensão constante entre o visto e o imaginado.

Figura 2 - Pong, de 1972, produzido pela Atari. Podemos perceber o grande esforço imaginativo que era requisitado ao jogador para que fosse possível obter o efeito de verossimilhança. Existia uma tensão entre o visto e o imaginado. (<a href=Ultram) Fonte: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/f/f8/Pong.png” width=”567″ height=”424″ />
Figura 2 – Pong, de 1972, produzido pela Atari. Podemos perceber o grande esforço imaginativo que era requisitado ao jogador para que fosse possível obter o efeito de verossimilhança. Existia uma tensão entre o visto e o imaginado. Fonte: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/f/f8/Pong.png>

4. O modo de ser da estética

Para tornar mais claro o uso que fazemos do conceito de estética, faz-se necessário um aprofundamento maior no espaço filosófico recoberto pelo termo.

Confundida com o belo, a estética trata-se de

algo muito diferente das teorias da arte, às quais correspondia uma práxis e, portanto, pretendiam estabelecer normas e diretrizes para a produção artística. A estética é uma filosofia da arte, o estudo, sob um ponto de vista teórico, de uma atividade da mente: a estética, de fato, se situa entre a lógica, ou filosofia do conhecimento, e a moral, ou filosofia da ação. É também, notoriamente, a ciência do “belo”, mas o belo é o resultado de uma escolha, e a escolha é um ato crítico ou racional, cujo ponto de chegada é o conceito. Não se pode, contudo, dar uma definição absoluta do belo; como é a arte que o realiza, só se pode defini-lo enquanto realizado pela arte. [Argan, op. Cit.: 22]

Refazendo o caminho que nos permite chegar a tal concepção, foi Sócrates (470-399 a.C) quem primeiro indagou sobre a essência – o que uma coisa é como é [Heidegger, 2008:11] – do que é possível a arte representar. Porém, como vimos, coube a seu discípulo Platão elevar a produção artística a categoria de objeto possível de investigação teórica, questionando sobre “o seu valor, sua razão de ser e o seu lugar na existência humana” [Nunes, op. Cit.: 8]. Um conjunto teórico mais bem definido só surge, entretando, com Aristóteles, que organiza idéias e conceitos teóricos em sua obra chamada “Poética”.

Entretanto, é somente no séc. XVIII que surge a estética como ramo especializado do saber filosófico, fundado por Alexander Gottlieb Baumgarten (1714-1762) através da publicação, em 1750, da obra “Estética ou teoria das artes liberais” [ibidem: 10]. A estética amplia o campo da produção simbólica de linguagem, aproximando a arte do campo conceitual, mas não desprezando sua vocação empírica. A partir destas concepções, percebemos que a produção artística tende sempre para um ideal inalcançável e que este é o verdadeiro modo de ser do homem [Argan, op. Cit.: 11]. Atingir um utópico ideal estético perfeito significaria alcançar um nível de passividade máximo, de relaxamento da tensão essencial encontrada na arte. Significaria, portanto, o final da própria arte.

Dai nosso entendimento de que as tentativas para sufocar o espaço destinado à imaginação nos jogos digitais, por meio de gráficos cada vez mais sofisticados e que se pretendem perfeitos, culmina no próprio esgotamento das possibilidades narrativas destes e na eliminação da tensão que é um dos grandes pilares propulsores da sedução exercida pelos jogos digitais.

O caminho trilhado pela arte moderna e pelas formas contemporâneas de linguagem revela que os conceitos visuais adotados, ou pretendidos, na maciça maioria dos jogos digitais produzidos atualmente estão em descompasso com os aspectos iconográficos, sociais, culturais e filosóficos da arte, o que torna a discussão sobre uma estética dos games problemática, por se estar em franco solo do juízo de gosto, determinado pelo imaginário imposto pela indústria do entretenimento e pelo discurso da técnica por esta mesma, desvinculada, artificialmente, da arte.

É necessário perceber que, ao estabelecer a arte como o domínio principal de tensionamento da linguagem, da criação ficcional, a estética concede ao artista o poder da linguagem: o dom da criação, onde a linguagem da arte explica-se unicamente por ela mesma. Uma poderosa e irrestrita meta-linguagem. O objeto da arte passa a não derivar de mais nada externo a ele, sendo a arte um fim em si mesma. Não presta mais contas ao real, mas cria sua própria realidade, seus próprios conceitos de beleza. Passa, como indica Argan [idem] a ser uma experiência primária, dedicada à sua própria produção. Sem o peso do real, a linguagem pode ser pura poética, puro livre estado de invenção.

A etimologia da palavra estética – derivada da palavra grega aisthesis (sensibilidade) – indica uma ligação com o que é produzido pelo sensível, e não pela razão. O belo passa a não estar mais nas coisas, no mundo natural, mas no trato sensível com elas. Pelo tratamento e profundidade que dispensa à compreensão da produção e fruição do que é sensível, as reflexões estéticas constroem-se em constante dialogia entre a filosofia e a arte, confundindo-se inevitavelmente com a história de ambas.

A estética, devido à vasta dimensão que cobre, não se apresenta como área do conhecimento isolada ou restrita. Ao contrário, seus valores penetram os campos da moral – portanto dos costumes e hábitos -, da política e da técnica. A reflexão estética está no centro das discussões humanas, o que se aplica também aos frutos das tecnologias – técnicas aplicadas – humanas, caso dos jogos digitais, filhos do que Flusser [2002] apropriadamente nomeia como “texto científico aplicado”.

Na verdade, técnica e arte têm uma origem comum. Ambas as palavras derivam do termo grego tékne, que designava todo e qualquer meio apto a obtenção de determinado fim [Nunes, op. Cit.]. Entretanto, o produto da arte diferencia-se por seu caráter eminentemente projetual, que lhe confere a importância de indicar linhas guias para a sociedade, ao mesmo tempo em que nega a pré-existência destas guias, estabelecendo um importante jogo com o acaso que confere ao corpo social a possibilidade de se autodeterminar [Naves, op. Cit.].

Conclusão

Como visto, estamos diante de um vasto campo de estudos, que remonta ao auge da civilização e da filosofia grega, e que nos chega na forma de linguagens absolutamente híbridas e sedutoras, onde os códigos verbais, sonoros e imagéticos se confundem de um modo nunca antes experimentado.

Mais do que tratar da beleza em seus aspectos de gosto, a estética ocupa-se de uma ética que nos parece faltar na atual produção dos jogos digitais, principalmente por estes não contemplarem dados estéticos que permitam reflexões por parte de quem joga. Falta aos jogos digitais este poder de causar reflexão porque falta tensão a estes. Tensão como espaço imaginativo, de construção de linguagens. A esfera lúdica, de elaboração de possibilidades, encontra-se restrita por uma doutrina do belo, ditada pelos padrões forçados que a indústria impõem, e que pouco são discutidos ou avaliados. Se a avaliação destes padrões é pequena, a proposição de alternativas encontra-se totalmente marginalizada, em parte por estarmos presos ainda a um padrão de sociedade da técnica moderna, compartimentada, que dá ao discurso tecnológico um valor superior aos conceitos filosóficos que estão na base de toda técnica.

Deste modo, uma atenção mais apurada, em direção às proposições que o campo dos estudos estéticos vem realizando ao longo dos séculos, pode impulsionar novas formas, mais contextualizadas, de entender a profunda relação entre arte, técnica e jogos digitais, onde, talvez, possamos identificar o belo conceito de jogo que Schiller [1995:83] observou no trato do homem com a estética:

o homem joga somente quando é homem no pleno sentido da palavra e somente é homem pleno quando joga […] com o agradável, com o bom, com a perfeição, o homem é apenas sério; com a beleza, no entanto, ele joga (grifo do autor).

Referências bibliográficas

ARGAN, G. C. Arte Moderna. Do iluminismo aos movimentos contemporâneos. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

BAYER, R. Historia de la estetica. Cidade do México: Fonde de cultura económica, 1998.

COSTA, M. O sublime tecnológico. São Paulo: Experimento, 1995.

ECO, U. Obra aberta. Forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 1976.

FLUSSER, V. Filosofia da caixa preta. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.

HEIDEGGER, M. A origem da obra de arte. Lisboa: Edições 70, 2008.

NAVES, R. Prefácio in ARGAN, G. C. Arte Moderna. Do iluminismo aos movimentos contemporâneos. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

NUNES, B. Introdução à filosofia da arte. São Paulo: Ática, 2002.

SCHILLER, F. A educação estética do homem. Numa série de cartas. São Paulo: Iluminuras, 1995.

SCHOPENHAUER, A. Metafísica do belo. São Paulo: Unesp, 2001.

Author Image

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

More Posts

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

Este post tem 7 comentários

  1. Author Image
    Aluno do Fabrizio

    Finalmente li o texto… Não tinha lido antes porque sempre esquecia…
    Basicamente o que vimos na aula hoje, só que mais detalhado e profundo.
    Eu não sei se as pessoas estão prontas pra entender e discutir sobre esse assunto… Parece até que têm medo de se depararem com o inesperado, o que não lhes é familiar… Para muitos um jogo bom é um jogo “renascentista”. É fácil, é uma fórmula que dá certo com os jogadores atuais. A técnica acaba sendo o alvo de apreciação e todos saem felizes. Sem questionamentos.

  2. Author Image
    Alguém

    Muito bom o texto! A submissão dos jogos digitais aos avanços tecnológicos e de hardware é explícita pela indústria, com a criação de “canais” para veiculação de jogos mais “simples” como a Live da Micorsoft e WiiWare da Nintendo.

    E ao passearmos pela internet ficamos estarrecidos com a rotulação que jogos que, por simplesmente não se enquadrarem nos padrões, ou mesmo terem uma pitada de criticismo social são denominados Game Art.

    Realmente é necessário desenvolver os campos de estudo dos jogos digitais, e confio que o Brasil possa contribuir com esse desenvolvimento.

  3. Author Image
    uuuu

    eu so quero saber a definição de jogos eletronicos

  4. Author Image
    uuuu

    q coisa exagerada, mas foi muito bom

  5. Author Image
    bob

    ameeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeei!!!! valeu

  6. Author Image

    Parabéns Dr. Fabrizio, um ótimo artigo que inclusive irei usar como material de apoio aos meus colegas universitários. Obrigado.

Deixe uma resposta