As idéias da trilha sonora do filme Akira

José Eduardo Bozicanin é graduado e mestrando em Imagem em Som pela Universidade Federal de São Carlos.

Resumo
O filme de animação AKIRA comemora neste ano de 2008 a sua vintena de estréia. Abordarei neste texto, de uma forma bem sóbria e hipermidiática, alguns dos aspectos mais interessantes de sua banda sonora.

Introdução
O argumento do filme AKIRA é baseado e condensado do mangá japonês homônimo de Katsuhiro Otomo, que editado posteriormente ao filme nos EUA e também no Brasil rendeu seis volumes de cerca de 350 páginas cada. Isto posto, os habituais recortes metodológicos se fazem necessários para analisar esta obra adaptada e a inventividade de seus criadores.

Resolvi evitar uma análise generalista da trama e suas implicações roteirísticas para com a violência sexual, a sobre-naturalidade dos personagens, o assassinato e o consumo de drogas num ambiente cyberpunk de distopia noir. Evito desta forma as inflamadas discussões sobre o que seriam as influências (EASY RIDER, STAR WARS, X-MEN, BLADE RUNNER, etc. e etc.) e as longas especulações, quanto as cenas mais densas e de significações mais poéticas e abertas, de seu enredo.

Para quem admira o gênero de animação vale realmente a pena assistir AKIRA, tanto pelo fato deste filme representar um marco para a metodologia de produção de animações dos anos oitenta e dos anos posteriores, bem como na sua abordagem diferenciada para com o tratamento sonoro (o sincronismo labial feito com o processo de PRESCORING beira a perfeição).

A inventividade da trilha musical é outro ponto forte da animação. Além disso, agora podemos finalmente apreciar uma nova versão em 16×9 Widescreen Anamórfica com o som 5.1 restaurados diretamente da película para DVD; chega de ver AKIRA naquelas cópias mal conservadas e mofadas de vídeo-locadoras obscuras da cidade!

Talvez numa próxima participação para a RUA poderei discutir certos aspectos do roteiro de AKIRA; para agora abordarei sua bela banda sonora, e o que a liga a trama. Portanto começarei meus comentários apresentando uma brevíssima sinopse e os personagens primordiais, para depois me dedicar a escrever exclusivamente sobre a direção musical que AKIRA percorre em seus 124 minutos.

Sinopse
O espaço diegético do filme é Neo-Tóquio, uma cidade reconstruída depois de ter sido destruída na III Guerra Mundial (o velho fantasma que assombra o imaginário japonês!). Com o decorrer da trama e o lento desenrolar dos fatos ficamos sabendo que esta III Guerra Mundial foi supostamente iniciada pelo crescimento incontrolável – proporcionado por um programa governamental secreto de pesquisa – de poderes sobrenaturais de uma criança chamada AKIRA.

Estamos nos ano de 2019 que é o tempo real do enredo, 30 anos depois da III Guerra Mundial, e uma gangue de motoqueiros liderados por Kaneda é envolvida numa luta com a gangue rival (a dos Palhaços), num incidente o membro mais novo da gangue, Tetsuo, colide numa rodovia com uma criança misteriosa que havia escapado do programa de investigação psíquica secreta do governo.

Tetsuo é levado pelos responsáveis deste programa governamental, juntamente com a tal criança, e é sujeito às mais diversas experiências. O incidente com a criança bem como os testes realizados ‘acordam’ os poderes latentes de Tetsuo, com desastrosas conseqüências tanto a nível pessoal, bem como conflitos interpessoais com os seus amigos, e a nível mais amplo: Tetsuo descontrolado torna-se uma ameaça também para a cidade de Neo-Tóquio.

O objetivo dos heróis da animação, como se poderia supor, é salvar a cidade da destruição e controlar Tetsuo.

Personagens
* Shotaro Kaneda — O protagonista, Kaneda é um cyberpunk que modificou a sua moto para as suas próprias características. Kaneda é igualmente o líder de uma gangue de motoqueiros. Com o objetivo de salvar Kei (uma pseudo namorada), ele junta-se a um grupo de guerrilha anti-governamental que tenta encontrar o misterioso AKIRA.

* Tetsuo Shima — É o melhor amigo de Kaneda desde a escola primária. Sua relação com Kaneda é uma mistura de admiração com inveja. Tetsuo gostaria de um dia liderar a gangue. Depois de um acidente traumático ele se transforma no arqui-inimigo de Kaneda.

* Kei — É uma mulher que Kaneda conhece no seu percurso para encontrar Tetsuo. Ela é um membro da organização anti-governamental.

* Masaru, Kiyoko e Takashi — São crianças com capacidades psíquicas avançadas, são os três “números” da história, Takashi é o causador de todo do início do enredo. Kiyoko é o Número 25, Takashi é o Número 26, e Masaru é o Número 27.

* AKIRA — O mais poderoso dentre as crianças psíquicas, sua existência e paradeiro são os ‘mistérios’ do filme. Ele é o Número 28.

* Kai — É um membro da gangue Capsules, que costuma seguir Kaneda sem se envolver demasiadamente com o que quer que seja.

* Coronel — É o diretor do projeto AKIRA e a representação da força militar na trama.

Desenvolvimento
O primeiro dado que exponho sobre a problemática que envolve a trilha sonora de AKIRA é o de que o diretor Katsuhiro Otomo resolveu gravar as falas dos personagens antes do início da fase de animação propriamente dita, ou seja, ele optou por iniciar as gravações das vozes após a finalização do story-board, este processo tem o nome de PRESCORING.

Esta técnica adianta todo o processo de sonorização de um filme de animação e consiste essencialmente em (acabada a fase de montagem e cronometragem do story-board) encaminhar para a equipe de dublagem e sonorização as cenas em que será necessária maior acuidade de sincronia entre imagens e sons. Em geral, essas cenas são as que mostram close-ups e planos próximos de movimentos labiais dos protagonistas.

O que de fato acontecia na indústria de animação daquele tempo era justamente o oposto do PRESCORING; toda a animação era semi-finalizada e encaminhada para os dubladores, estes já contratados pela produtora para atuar as suas falas com a referência visual da animação quase pronta. Outro dado, é que o processo de dublagem realizou-se concomitantemente com a criação da música, ou pelo menos com o esboço fundamental da trilha.

Tudo isso resultou, quando assistimos ao filme em idioma japonês, numa precisão muito grande entre os movimentos labiais e a emissão dos fonemas, bem como num ritmo de intercalação: música<=>diálogo<=>silêncio<=>foley bem convincente e muito distante de desenhos ou mapas sonoros do tipo jogral-musicado. Uma experiência interessante é assistir AKIRA com áudio em japonês (com a técnica do PRESCORING) e depois com o áudio em inglês (com a posterior e tradicional técnica de dublagem) e se concentrar nas bocas das personagens, esquecendo-se das legendas.

Realmente é assustadora a diferença de sincronia e o empobrecimento visual da exposição dos diálogos em close-ups na outra língua, que não a original japonesa. O mesmo se dá nessa nova redublagem norte-americana do DVD restaurado. Obviamente temos que levar em conta (me desculpem pela piada) que entre a fonética inglesa e a japonesa há um Oceano Pacífico de diferenças.

Requisitou-se também que a trilha sonora fosse composta antes e que as eventuais correções acontecessem durante o processo de animação, o que teoricamente daria margem/tempo para as equipes notarem se a rítmica das músicas seriam coerentes com a proposta do filme. “AKIRA: Original Soundtrack” foi gravado pelo conjunto japonês Geinoh Yamashirogumi, cujo líder é o músico Shoji Yamashiro.

A sugestão enviada pelos produtores (e supervisionada pelo diretor de AKIRA) para o grupo comissionado de Shoji pedia a composição de trilhas que ao mesmo tempo conseguissem trazer elementos tecnológicos, étnicos e humanos do ano de 1988 que ainda fossem válidos e/ou existentes em 2019. O direcionamento tomado por Shoji e grupo foi o de não emular ou copiar nenhum estilo contemporâneo; ou pelo menos tornar a música inclassificável em gênero e/ou nacionalidade específica. Tal direção musical e pesquisas sugeriram uma miscigenação musical, e as preferências apontaram para a mistura de recursos tecnológicos MIDI com instrumentos estrangeiros e vozes humanas.

Optou-se pela pesquisa e escolha de sons étnicos pouco difundidos no circuito comercial da música oriental e ocidental, em especial os da música balinesa e javanesa (Indonésia) com seus sets de instrumentos (xilofones, gongos, flautas de bambu, jejogs, gangsas e etc.) e seus sistemas de afinação sui generis (sléndro, pélog, degung e madenda) advindos das formações musicais do Gamelão, e do Gamelão-Jegog (Bali); além do uso da própria voz humana e dos bem-sucedidos recursos MIDI da época. Entre eles estão os sistemas Roland D-50 e Synclavier System.

O Synclavier System é um sintetizador digital modular baseado em FM, gravador em disco-rígido e digital sampler lançado em 1975 e que detinha grande influência no meio musical da época, tanto por sua versatilidade quanto por seus timbres únicos. Ele já estava sendo usado por vários artistas ocidentais em álbuns de grande sucesso, dentre eles podemos citar: Michael Jackson, em particular em seu disco “Thriller” de 1982 e Frank Zappa que compôs o álbum “Jazz From Hell” (quase que inteiramente no Synclavier) em 1986 e foi o ganhador do prêmio Grammy de melhor performance de rock instrumental daquele ano.

Para quem se interessa por sintetizadores é de se checar no Youtube: Frank Zappa na música “G – Spot Tornado”, M. Jackson na famosa “Beat it”, Depeche Mode, Kraftwerk, Sting, Stevie Wonder, Duran Duran, A-HA. Vale também dar-se uma olhada na história do SYNCLAVIER e saber um pouco mais sobre sua produção, preço e inovações.

Voltando, a idéia de Shoji Yamashiro (o compositor e líder do grupo Geinoh Yamashirogumi) para a trilha do filme era a de se tentar racionalizar a composição das faixas para que se fosse necessário ajustes rítmicos/melódicos posteriores feitos no menor prazo possível e de forma mais eficiente. O que realmente aconteceu é que Shoji projetou, com a ajuda da tecnologia de seus sintetizadores e softwares, uma trilha sonora modular para AKIRA. Tais composições eram montadas em cima de temas intercambiáveis com afinações variáveis.

Enfatizo então que o compositor principal – Shoji – tinha muitas referências sonoras para destilar e era a ele requisitado uma larga pesquisa musical tanto étnica quanto tecnológica para que se conseguisse reprogramar seus equipamentos nas ‘novas’ afinações – processo conhecido como micro-tunning. Visto que, na época os sintetizadores não eram capazes de emular os sistemas de afinação de instrumentos mais incomuns, como os da música balinesa, da percussão cromática do Gamelão – Jegog e tampouco tinham recursos para abordar, de forma sutil, a espiritualizada música teatral Noh usada em AKIRA.

Podemos notar que em algumas cenas de AKIRA existe um forte tom epifânico (as seqüências finais de aparições e de flashbacks, por exemplo), fato bem interessante para uma animação tão marcada por violentas mortes e explosões.

Penso que tal tonalidade epifânica (entendo o termo epifânia por súbita sensação de compreensão da essência, do significado de algo ou do problema) se confirma, de fato, no aparecimento do infante AKIRA e na sua caracterização que beira o etéreo e/ou o efêmero.

Na realidade AKIRA encera-se com a intenção de deixar uma idéia de purificação, via expurgo, sendo que o espectador percebe tal intenção através de uma outra destruição total de Neo-Tóquio, semelhante a do início do filme. A trilha sonora ajuda no fechamento deste ciclo.

Conclusão
AKIRA detém-se em discutir as relações e intrigas entre indivíduos com poderes sobre-humanos (assunto já bem explorado em alguns 60’s e 70’s Comic Books norte-americanos), em particular os de capacidades psicocinéticas; mas boa parte da história não se concentra apenas neste tema, mas, sobretudo, nas pessoas envolvidas e suas implicações sociais e políticas.

Temos que ressaltar que Katsuhiro Otomo obviamente consultou boa parte dos trabalhos de Joseph Campbell (sobre O Mito do Herói, O Herói de Mil Faces e A Imagem Mítica) para desenvolver sua obra e carreira profissional, ele próprio atesta em várias de suas entrevistas que ficou fascinado e estudou as grandes obras e mitos cinematográficos de seu tempo.

Os bônus do novo DVD restaurado trazem um vasto material sobre os autores e do criador de AKIRA, além de making-ofs variados e bem interessantes.

Não existe um anime AKIRA, o filme foi criado através dos fatos ocorridos no mangá e no mangá AKIRA é um personagem que surge apenas no segundo volume; enquanto que no filme, AKIRA foi dissecado para pesquisa e os seus restos mortais permanecem armazenados em crio-conservação por baixo do Estádio Olímpico de Neo-Tóquio.

Esta mudança permitiu um recurso narrativo muito interessante para a trama do filme, autorizou o efeito epifânico supracitado e fez com que um dos protagonistas adquirisse desígnios de mito dentro da diegese. Em conseqüência isto atiçou a expectativa do público (principalmente a do que não conhecia AKIRA do mangá) em torno do que, ou quem, seria essa ‘entidade’ de nome AKIRA. A conformação de seitas religiosas que emergem no caos da cidade de Neo-Tóquio potencializa ainda mais esse recurso da narração.

Dizem que o comentário social de AKIRA não é particularmente profundo ou filosófico, no entanto como AKIRA é considerado um filme de animação de aventura e/ou ficção científica, é de se esperar, e entender, que não tenhamos grandes e eloqüentes momentos de reflexão; ou melhor, que estes sejam curtos para que tenhamos um desenrolar ágil da trama e esta se resolva satisfatoriamente. Destaco que a faixa etária a qual este filme de entretenimento, com pitadas de questionamentos sociais, busca atingir é a do público adolescente e adulto.

Acabo assim minha contribuição inicial para a RUA com este modesto texto sobre esta bacana animação oitentista japonesa que é AKIRA.

Apêndice
1) AKIRA foi o primeiro mangá japonês a ficar famoso no mundo todo, a partir de 1988. Foi também publicado nos EUA, sendo o primeiro a ser colorido por computador. O trabalho foi feito por Steve Oliff para o selo Epic Comics da Marvel. Foi reeditado em 2000 pela Dark Horse.

2) “Jazz from Hell” é um disco de rock instrumental de Frank Zappa lançado em 1986 pela Barking Pumpkin Records (em vinil) e pela Rykodisc (em CD). Todas as composições foram executadas por Zappa num Synclavier DMS com exceção de “St. Etienne”. Apesar de ser um disco instrumental as lojas Meyer Music – EUA venderam “Jazz from Hell” com um adesivo da RIAA com um Parental Advisory estampado.

Ficha Técnica
MPAA: Taxado “R” por apresentar violência e breve nudez.
Gênero: Cyberpunk, Ação, Ficção científica
Autoria: Katsuhiro Otomo
Dirigido por: Katsuhiro Otomo
Estúdio: Tokyo Movie Shinsha
Roteiro: Katsuhiro Otomo/Izo Hashimoto
Música original: Shoji Yamashiro
Diretor de fotografia: Katsuji Misawa
Edição e montagem: Takeshi Seyama
Idioma: Japonês
Japão 1988
• cor
• 124 min
Aspect Ratio:
1.85 : 1
Sound Mix:
70 mm 6-Canais (Cópias em 70 mm ) | DTS (relançamento) | Dolby (Cópias em 35 mm)

Fontes/Referências
. IMDB.
. DOCUMENTÁRIOS E MAKING-OFs SOBRE O FILME “AKIRA” – DVD COMEMORATIVO DOS 20 ANOS DE LANÇAMENTO.
. JOSEPH CAMPBELL – LIVRO: “O MITO DO HERÓI”.

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Este post tem 5 comentários

  1. Author Image
    Eric Richard

    Akira é um otimo filme para um anime principalmente por sua trilha sonora

  2. Author Image
    val

    e com certeza a melhor animação japonesa,de todos os tempos,digo mais, talves o melhor do mundo……..

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