As Três Provocações de Tata Amaral em Um Céu de Estrelas

Cesar Augusto de Oliveira Casella é professor assistente na Universidade Federal do Acre (UFAC).

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Introdução

A função econômica dos filmes, seu valor de mercado, seu quantitativo de espectadores, via de regra, tem sido a perspectiva mais adotada para as análises filmográficas aqui no Brasil. Ainda mais quando as análises são de cunho jornalístico-informativo. Neste quadro, a retomada do cinema brasileiro, muitas vezes, só é compreendida e exaltada por estes aspectos: bilheteria, indicação ao Oscar, presença de atores e atrizes de fama nacional-global, prêmios em festivais europeus. Muitas partes importantes para a compreensão de um filme são perdidas, por conta desta opção e desta perspectiva. O objetivo, neste artigo, é justamente enfocar outros aspectos, abordar outras perspectivas, relevar outras funções de um filme. Importa-nos as inflexões as quais o filme nos obriga a fazer em nossa teoria crítica, em nossa vivência, em nosso conhecimento, seja acadêmico ou seja de mundo. Para que isto ocorra, o filme precisa ser complexo, seminal, provocativo. Precisa fugir às amarras da própria crítica econômico-informacional e do circulo vicioso do mercado exibidor. Um filme da ordem de Um Céu de Estrelas, da cineasta Tata Amaral.

O trailer do filme pode ser visto em:  http://mais.uol.com.br/view/55313.
O trailer do filme pode ser visto em: http://mais.uol.com.br/view/55313.

Do Grotesco e do Sublime

Dalva, uma cabeleireira do bairro da Mooca, São Paulo, decide romper seu relacionamento de 10 anos com Vítor, um metalúrgico, também do bairro. Em seguida, ganha um concurso de cabelo e uma passagem para concorrer as finalíssimas em Miami. Vê nesta viagem a possibilidade de se livrar do universo opressivo em que vive e decide ficar por lá, afastando-se da mãe e do ex-noivo. O filme começa quando Dalva está arrumando sua mala, para viajar no dia seguinte. Ainda não teve coragem de contar para a mãe. (Alprazolam) Toca a campainha. É Vítor quem chega.

A sinopse de Um Céu de Estrelas, apresentada no parágrafo anterior, é índice importante de uma das dimensões provocativas do filme de Tata Amaral. A dimensão narrativa. Estamos no terreno da tragédia. Entramos no meio da ação: In media res. E toda a ação representada no filme vai respeitar as unidades de tempo e lugar exigidas pela tragédia. Algo não usual em tempos de narrativas lineares, que privilegiam a estrutura início-desenvolvimento-final. Ou, em verdade, que optam pelo que consideram a estrutura mais palatável, desconfiando sempre da inteligência do espectador. Como notado pela crítica da época: “Uma tragédia paulistana” é a síntese da análise de Amir Labaki (1997). Para José Geraldo Couto (1997), no filme “tudo aponta para a tragédia. Mantendo a unidade de tempo (tudo acontece num único dia) e espaço (o interior da casa), a diretora filma com uma crueza quase insuportável”. Vítor e Dalva, assim, terão de resolver a tensão, que na verdade se constituiu fora do tempo de cena, neste único dia e neste único espaço, no tempo da tragédia.

Outro sinal desta opção narrativa, da construção de uma tragédia, está na falta de consciência, por parte dos personagens, do que vai acontecer a eles. O encadeamento das ações, o mal que se aproxima, em nenhum momento é pressentido por Dalva e Vítor. Não poderiam: a tragédia é sempre maior do que aqueles que nela estão envolvidos. No entanto, o que normalmente é estabelecido pelos Deuses, nas tragédias gregas, em Um Céu de Estrelas é obra do acaso. Para Jean-Claude Bernardet, um dos roteiristas do filme, este é um ponto fundamental, pois “o que o filme traz de novo é a inexistência da relação causa e efeito na construção do enredo. É o acaso que empurra os personagens sem que eles queiram ou percebam”. (ROCHA, 1997)

Tragédia, mas uma tragédia com matizes de drama. Cabe usar aqui um primeiro ponto de inflexão, dos três que usaremos. Vamos inflectir a crítica cinematográfica, fazendo-a tocar a crítica literária. Tentamos utilizar uma outra vertente de crítica, a literária, para entender a complexidade de Um Céu de Estrelas. Em seu Prefácio de Cromwell, que acabou conhecido como Do Grotesco e Do Sublime, Victor Hugo analisa a evolução dos modos narrativos, desde de uma era primitiva até a sua: a moderna, a romântica. O drama resulta desta evolução, pois ele é a “poesia completa”, unindo o sublime ao grotesco, dando ao homem a oportunidade de tomar a cena – no lugar das personagens míticas anteriores, isto é, temos agora Hamlet em lugar de Adão ou Aquiles – abandonando as unidades de tempo e lugar. O drama, utilizando os termos de Hugo, une o gênio da melancolia e da meditação com o demônio da análise e da controvérsia, e passa a ser o ideal narrativo, pois assim “a musa moderna verá as coisas com um olhar mais elevado e mais amplo. Sentirá que tudo na criação não é humanamente belo, que o feio existe ao lado do belo, o disforme perto do gracioso, o grotesco no reverso do sublime, o mal com o bem, a sombra com a luz”. (HUGO 1988, pág. 25)

Claramente estas categorias hugoninas de grotesco e de sublime estão fundidas nos personagens de Tata Amaral e Jean-Claude Bernardet: A mãe de Dalva é opressora da filha e oprimida pela vida, arrasta-se pela casa como um ser defeituoso, alquebrado pela existência. Vítor, brutal, assassino, demonstrando constantemente seus instintos animais, é ao mesmo tempo amorosamente ingênuo, quer dançar com Dalva em meio ao caos, sente que perde o pouco que imagina possuir. Dalva, vítima, agredida, violentada, ao mesmo tempo titubeia, ama Vítor, sente desejo, sente que trai a mãe por não ter contado que vai partir, sente culpa de tudo.

A importância do grotesco é o ponto de contato para atestar a interpenetração do drama na tragédia de Tata Amaral. Já que o filme mantém a unidade de tempo e lugar, próprias da tragédia. A lembrança de Amir Labaki (1997) de que o texto poderia ser de Plínio Marcos ou a crueza quase insuportável, aventada por José Geraldo Couto (1997), são marcas deste grotesco, este defendido por Hugo, deixadas nestes críticos pelo filme. Grotesco que está muito presente, cenicamente, no que eu gostaria de denominar metáfora dos fluídos. Nas cenas de Um Céu de Estrelas, sangue, lágrimas e esperma – fluídos vitais dos seres humanos – são apresentados com uma força de existência que geralmente recalcamos. Penso na cena da morte da mãe de Dalva e na cena da violação de Dalva, principalmente. Não somos só o sublime que imaginamos, somos também o grotesco que escondemos. Somos também os fluídos que possuímos em nosso corpo.

Temos assim um filme perturbador, narrativamente complexo, híbrido na sua infra-estrutura. Temos uma tragédia grega matizada de drama romântico, temos o acaso moderno substituindo as possibilidades divinas, temos o sublime da vida atentado pelo grotesco da vida. Um filme na contramão da trilha espetáculo-entretenimento-alienação. Temos a primeira provocação de Tata Amaral.

Leona Cavalli e Paulo Vespúcio Garcia em cena
Leona Cavalli e Paulo Vespúcio Garcia em cena

O Horror Econômico

Um Céu De Estrelas, em seu lançamento, foi festejado pela imprensa como um dos melhores longas da nova safra de filmes brasileiros dos anos 90, a safra batizada de retomada do cinema nacional. Foi também um filme muito premiado (Trieste/97, Biarritz/96, Boston/97, Havana/97), tanto pelos méritos da diretora quanto pelos da atriz principal, Alleyona Cavalli (hoje, Leona Cavalli). A história, retirada de um livro de Femando Bonassi, foi livremente adaptada por Jean-Claude Bernardet e Roberto Moreira com a colaboração de Márcio Ferrari. O longa de Tata Amaral é um filme de orçamento baixo – cerca de U$ 380 mil – e de ação claustrofóbica, cerrada no cenário único de uma casa da classe baixa paulistana. Foi consenso entre a crítica que orçamento tão baixo só foi possível por se ter encontrado uma história adequada a esse padrão.

Mas este padrão, este orçamento considerado baixo, que tantas vezes desembocou em produções de ficção barata – e ficção aqui não é sinônimo de ficção científica, mas representa toda produção de imaginação, de criação, isto é, qualquer filme não documental – no filme de Tata Amaral significa também uma sintonia com a realidade circundante.

Realidade circundante que se acopla ao filme. Há no prólogo em vídeo – assinado por Francisco César Filho, ou seja, duas vezes externo, ao filme e à diretora – com que se inicia o filme, uma amostra do ambiente em que se movem os personagens quando estão fora das cenas enfocadas, fora da ação compartilhada com o espectador. Estamos na Mooca. Bairro operário paulistano degradado pelo tempo. Bairro operário esquecido pela pretensa modernidade paulistana. Bairro operário marginalizado pelas autoridades e pela elite paulistana. Bairro degradado, pessoas degradadas. Bairro esquecido, pessoas esquecidas. Bairro marginalizado, pessoas marginalizadas.

Aqui temos um outro ponto de inflexão. E de digressão. A mão do acaso que carrega os personagens talvez pudesse ser a mão invisível do mercado que rege o neoliberalismo. O filme foi lançado nos áureos tempos do Plano Real, e seu sucesso e força se devem também ao fato de mostrar uma realidade que se queria escamotear de qualquer maneira. Em um livro como O Horror Econômico de Viviane Forrester, que deve seu sucesso ao fato de ter sido muito bem aceito como uma crítica ao modelo neoliberal globalizado – implementado oficialmente aqui justamente com o Plano Real e cujas conseqüências nefastas estamos vivendo plenamente em 2009, com a quebradeira mundial da ciranda irresponsável de especulação financeira -, podemos encontrar a explicitação de como, em um processo sutil e prolongado, o privado tomou conta do público, massas de pessoas começaram a ser consideradas incômodas (e que passaram a se considerar incômodas) e de como o questionamento das decisões baseadas na economia e em fatores de mercado – leia-se na rentabilidade das aplicações de alguns – passou a ser considerado crítica obsoleta, arcaica, em desuso.

O livro de Forrester tem como pilar a relação trabalho/emprego e objetiva mostrar a impossibilidade de se continuar pensando a humanidade nestes termos, sob risco de aceitarmos a exclusão inevitável de uma massa de trabalhadores, uma massa de pessoas, não aproveitável por um sistema extenuado e esgotado.

E, muito provavelmente, os operários da Mooca, os moradores da Mooca, Dalva e Vítor, conheceram, viveram ou vivem, algumas destas modernas aflições neoliberais cotidianamente. Vítor, desempregado contumaz, sem qualificação, produto direto do cansaço vital causado pela absorção do discurso neoliberal de que alguns são incapazes, perdedores, excluídos. Alguém que se entregou ao horror econômico. Dalva, uma cabeleireira, a outra ponta da corda: tem um trabalho que, em geral, não rende, não é entendido como trabalho, uma espécie de subemprego, um emprego informal. Alguém que tenta sobreviver ao horror econômico.

São vidas, a de Dalva e Vítor, como outras tantas “(…) vidas encurraladas, manietadas, torturadas, que se desfazem, tangentes a uma sociedade que se retrai. Entre esses despossuídos e seus contemporâneos, ergue-se uma espécie de vidraça cada vez menos transparente. E como são cada vez menos vistos, como alguns os querem ainda mais apagados, riscados, escamoteados dessa sociedade, eles são chamados de excluídos. Mas, ao contrário, eles estão lá, apertados, encarcerados, incluídos até a medula!” (FORRESTER 1997, pág. 15).

O filme de Tata Amaral torna de novo transparente a vidraça. Mostra um Brasil que o Brasil esquecia, ou tentava esquecer, na época. Esquecia tentando afogá-lo na euforia dos tempos de real, de moeda forte, de equiparação no valor com o dólar. Um Céu de Estrelas mostra, justamente, que os que imaginamos excluídos estão na verdade incluídos no nosso cotidiano. De novo, temos um filme perturbador, corajoso, que mostra que a ficção pode abrir possibilidades de questionamento ao existente, que o virtual pode arguir o real (aqui em um trocadilho impossível de ser evitado). Uma segunda provocação de Tata Amaral.

Hugo, Viviane Forrester e Sartre
Hugo, Viviane Forrester e Sartre

O Inferno São os Outros

“Depois de um prólogo em preto-e-branco que mostra o deteriorado bairro paulistano da Mooca, onde se ambienta a história, o filme mergulha num pesadelo vivido entre quatro paredes”. Esta descrição de José Geraldo Couto (1997) já reverbera o tom claustrofóbico do filme. E este foi um adjetivo que serviu muito para qualificar Um Céu de Estrelas. Também o notável trabalho com a câmera claramente serviu a este propósito, de conter, de aprisionar as personagens em uma ação progressivamente violenta e irracional. Para Amir Labaki (1997), no filme há “uma câmera incansável, que parece costurada aos personagens. O resultado é um ‘huis clos’ com rara vida cinematográfica e uma curva ascendente de tensão com poucos paralelos recentes”. Voltando ao texto de Couto (1997), reforçamos a descrição desta claustrofobia: “a diretora filma com uma crueza quase insuportável. Coloca sua câmera a poucos centímetros dos atores, que têm tão pouco espaço para se mover quanto, metaforicamente, os personagens que interpretam. O filme extrai sua força e poesia da tensão entre o impulso vital dos protagonistas e as paredes (físicas, sociais, morais) que os aprisionam”.

Em uma progressão vertiginosa, ao entrarmos na sala de cinema para ver Um Céu de Estrelas, somos lançados do externo para o interno, do bairro para dentro de uma casa, da rua para a sala de visitas de alguém, do social para o individual. Tudo vai acontecer entre quatro paredes.

A terceira e última inflexão: Sartre.

Em sua peça, Entre Quatro Paredes, Jean-Paul Sartre nos apresenta seu inferno moderno, em que os aparatos simbólicos tradicionais – os caldeirões, as fornalhas, o enxofre, os tridentes, a cor vermelha, o fogo – foram aposentados. Tem a forma de um salão do Segundo Império, espaço propício para a convivência convencional, de aparência social. O diabo é agora representado por um serviçal lacônico que conduz os clientes – é assim que ele denomina os condenados – aos seus aposentos eternos onde queimarão na luz de sua própria consciência. Três personagens ficarão neste salão e um obrigará ao outro a fazer análises de consciência e a julgar a si mesmo. Três personagens, um triângulo de pontas agudas. Assim, na peça de Sartre, o inferno é um espaço de conflito que desencadeia, em cada um dos condenados, forças ocultas, desejos escamoteados, verdades enterradas.

No filme de Tata Amaral, os personagens também são três. Coincidência assaz pertinente: temos também em Um Céu de Estrelas um triângulo de pontas agudas. E estes três personagens obrigam, entre si, que o outro aja. Cada personagem força o outro a se posicionar, a refletir sobre si mesmo. A mãe de Dalva é alvejada por Vítor por causa de suas ações, de suas falas, de suas posições. E toma posições emite falas, age em reação à decisão de Dalva de ir embora. Dalva é violentada, mas em parte porque desejou Vítor, ou porque não deixa de o desejar. Emociona-se e sofre com a mãe, somente depois que ela é alvejada. Vítor torna-se violento e cruel também porque imagina que protege Dalva de sua decisão de ir. Estão todos intimamente ligados. As suas vidas estão intrincadas. Desse modo, cada explosão, cada crueldade, cada violência, está assentada na relação com o outro.

Enfim, assim como o Garcin sartreano, Dalva poderia dizer: “Então, é isto o inferno. Eu não poderia acreditar… Vocês se lembram: enxofre, fornalhas, grelhas… Ah! Que piada. Não precisa de nada disso: o inferno são os Outros” (SARTRE 2005, pág. 125).

Se a primeira provocação é a complexidade e a densidade do filme, alcançada ao misturar tragédia e drama, e a segunda é mostrar que há a possibilidade da ficção desvelar a realidade, a mais aguda e poética provocação do filme de Tata Amaral talvez seja a terceira: presos entre quatro paredes, é impossível avistar um céu de estrelas.

Referências:

COUTO, José Geraldo – Pesadelo Entre Quatro Paredes, Folha de SP, Revista da Folha, edição São Paulo de 13 de Junho de 1997.

FORRESTER, Viviane – O Horror Econômico, São Paulo: Editora da Unesp, 1997.

HUGO, Victor – Prefácio de Cromwell ou Do Grotesco e do Sublime, São Paulo: Perspectiva, 1988.

LABAKI, Amir – Filme é Longa Descida aos Infernos, Folha de SP, Caderno Ilustrada, edição nacional de 9 de Junho de 1997.

ROCHA, Daniela – Um Céu de Estrelas, Folha de SP, Caderno Ilustrada, edição nacional de 13 de Junho de 1997.

SARTRE, Jean-Paul – Entre Quatro Paredes, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

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Este post tem um comentário

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    natalia

    Eu sou uruguaia, e vi o filme UM CEU DE ESTRELAS, nesse ano (2011) por televisao nacional de Uruguai, quando comenca o filme e um pouco dificil de entender mais depois sim, pode saber a historia, acho que tem cenas bastante marcantes, e uma coisa forte; muita gente acreditou que a Dalva era a verdadeira vila junto com o Vitor, porque ela nao aguenta tanta presao dele y e se vira uma assasina como ele, no final do filme, parece que tambem era bandida porque depois que ela ve sua mae morta, pega o Vitor e logo tenta matar ele. Por isso acho que e uma historia bastante confusa mais muito boa.

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