Begotten: o mito, a imagem e a carne

INTRODUÇÃO

Moderadores da linguagem, fotógrafos, anotadores de diários.
Vocês e suas memórias estão mortos, congelados.
Perdidos num presente que nunca para de passar.
Aqui vive o encantamento da matéria.
Uma língua eterna.

A imagem se mostra, treme, aparece para o espectador como imagem. Segundos de quase silêncio, um silencioso ruído que perturba, e então:

Como uma chama queimando a escuridão.
A vida é carne no osso se contorcendo sobre a terra.

Um rosto aparece na tela, um rosto praticamente disforme. A imagem não presenteia o espectador com impressões de realidade. O rosto se mexe, mas não é um rosto, é a imagem de um rosto que se mexe, a imagem está mais presente aqui que a representação do rosto. Na verdade também não se trata de uma imagem em movimento, são várias delas, cada uma com uma particularidade toda especial que salta aos olhos nos riscos e demais deteriorações da película. Na verdade são fotos, milhares delas, tentando representar o que não pode ser representado: a verdade. Não a verdade de engenheiros ou políticos, mas a verdade mítica, aquela mais perto da essência do humano tão somente por ser fruto da tentativa subjetiva de se desenhar algum aspecto do real. Desenhar através de mitos. Essa é a proposta, desenhar na película, fotograma a fotograma, através de mitos. E mais, permear essa imagem também de uma aura mítica. A partir disso, discutir, não através de argumentos e fatos, mas através de imagens e sons. Discutir o humano a partir da carne, e a partir desta, a morte. Esse é um possível caminho a ser trilhado ao nos depararmos com uma obra tão simples e ao mesmo tempo tão complexa como Begotten, do americano Edmund Elias Merhige. Simples por se tratar, apesar da narrativa hermética e intrincada, de um filme que discute o ser humano, valendo-se, para isso, de uma “metaforização” de caráter mítico; e complexa paradoxalmente também pelo mesmo motivo, e, para além disso, pelas incursões experimentais pelo universo da imagem.

A imagem em Begotten se mostra ao espectador tal como ela é, imagem. Por isso mesmo o resultado fílmico obtido por Merhige é tão impressionante. Dessa busca pela absorção da imagem como parte integrante e fundamental na construção do filme e das relações dessa construção com aspectos de trabalhos teóricos de Roland Barthes e Stan Brakhage, bem como um filme específico do segundo, será construído o presente ensaio.

1. DEUS SE MATANDO

Begotten é o primeiro filme realizado pelo norte-americano Edmund Elias Merhige, ligado, desde cedo, ao mundo das artes através de um grupo performático chamado Theatreofmaterial, criado por ele em 1985. Tal grupo foi fundamental na elaboração de seu primeiro projeto cinematográfico, dada a utilização dos integrantes do grupo nas filmagens e também por ser o filme pensado a partir de uma performance concebida anteriormente.

A narrativa em Begotten se baseia na construção de um mito de origem: no começo do filme “Deus” se mata (tal personagem é descrito nos créditos como “God Killing Himself”), de suas entranhas nasce a “Mãe Terra” que masturba o deus morto e se fecunda com o sêmen. Dessa concepção nasce o “Filho da Terra – Carne no osso”. Mãe e filho perdem-se no mundo e são encontrados por seres, descritos nos créditos finais simplesmente como “vida”, que violentam a “Mãe Terra” e esquartejam o “Filho da Terra”, plantando seus pedaços em seguida. O fim do filme mostra plantas germinando e crescendo, paralelamente a imagens da “Mãe Terra” e seu filho, sugerindo um ciclo que se reinicia

Perguntado numa entrevista sobre o significado do nome de seu filme, que poderia ser traduzido como algo do tipo “Criado”, Merhige disse:

Abaixo das imagens descartáveis da vida cotidiana, banal, há apenas o tribal, o indelével e o atemporal. Estas imagens são criadas. A existência é cíclica. Nascimento cria a vida, vida cria morte, morte cria renascimento

Eis, no exemplo acima, a importância dada à imagem pelo diretor. Merhige não apenas constrói um filme cuja narrativa traz uma aura mítica, como imprime na própria imagem, na própria película, essa aura, associando à criação dessa imagem o caráter, segundo ele, cíclico da existência. Assim, o filme traz não somente uma associação da imagem a um aspecto narrativo mítico, mas mais que isso, a tentativa de fusão entre narração e imagem através do mito construído pelo diretor.

Essa tentativa de fusão ocorre nos dois sentidos: de um lado a narrativa pede uma imagem que seja, segundo o próprio realizador, “um manuscrito do Mar Morto cinemático enterrado nas areias”, e do outro, a imagem pede uma narrativa que dê vazão a sua ânsia de ser apenas imagem. Tal afirmação pode parecer contraditória, mas a própria relação entre imagem e o caráter cíclico da existência, feita por Merhige, dá conta da explicação. Afinal, de que outro modo tal história (recuso o termo “estória” por acreditar na força do “real” que tais narrativas me proporcionam) poderia ser contada? As imagens que vemos em Begotten estão sempre chamando a atenção para o meio através do qual a narrativa se constrói, sem que, em decorrência disso, o caráter mítico apresentado soe inverossímil. Isso se dá, paradoxalmente, justamente pelo caráter da imagem como imagem. Ao olharmos para o filme, nos surpreendemos em momentos que são de pura contemplação. A imagem, em certos momentos, chega a ser tão granulada e super-exposta que quase não se vê o referencial. Ficamos então vagueando pelos grãos e pela luz da imagem fantástica conseguida por Merhige. Aí o filme nos capta, e junto aos sons, minimalistas e belos, algumas vezes tão belos que perturbam, somos inseridos como parte fundamental na história contada. Somos aqueles que daremos continuidade ao ciclo da existência transmitindo nossa carga mítica, agora acrescida da experiência viva que é Begotten, aos outros. Afinal, o filme é sobre nós, somos a carne no osso.

2. MÃE TERRA

A “Mãe Terra” do filme é a imagem que, construída a partir do suicídio do “deus” que é a base, o mito, concebe a partir de seu sêmen o “Filho da Terra” que é a própria película. Dessa estranha inversão de ordem, afinal o usual é todos crermos que a imagem se dá a partir do meio (película e luz), nasce o filme. O filme que se baseia em imagens anteriores à película, e não o contrário. Aqui, encontro em ideias de Roland Barthes sobre fotografia, um instrumental teórico a fim de argumentar em favor da ideia de imagem que constrói o filme, e não o oposto. Diz Barthes, em sua obra “A câmara clara”, na página 122:

O corpo amado é imortalizado pela mediação de um metal precioso, a prata (monumento de luxo) ao que acrescentaríamos a idéia de que esse metal, como todos os metais da alquimia, está vivo.”

Tal analogia pode ser estabelecida, embora Barthes não discorra muito sobre o assunto, atendo-se mais ao fascínio que a fotografia exerce sobre ele mesmo, com o cinema, e mais estreitamente com o filme aqui discutido. Digo estreitamente, pois, como discutido anteriormente, a imagem em Begotten é parte intrínseca ao que se pretende discutir no filme. Por se tratar de cinema, ou seja, imagem em movimento e sons, poderíamos pensar que o mito relatado ganha vida, como se o espectador estivesse presente. Entretanto a imagem que constrói a obra é trabalhada a tal ponto para obter um distanciamento entre o que foi captado durante as filmagens e o que é visto na tela que tal relação de “realismo provocando imersão” não se dá. A relação estabelecida a partir das imagens é a de distanciamento de uma narrativa de macro-estrutura, e aproximação a uma contemplação mais estética da obra, em que a imagem se revela como tal e, consequentemente, revela o meio, a película, que desse modo passa a ser “criada” pelas imagens, e não o contrário. Sobre a elaboração dessa imagem, cabe aqui uma breve descrição do processo de realização, retirado de artigo publicado na revista eletrônica “Carcasse” por Cid Vale Ferreira:

Merhige optou pela utilização de película reversível, própria para slides. Depois de revelá-la, refotografou-a quadro a quadro em 16mm preto-e-branco num maquinário que, criado exclusivamente para isso, expôs as imagens contra luzes fortes, obtendo um inédito efeito de granulação e velhice artificial, já que o diretor não queria que o filme parecesse “datar dos anos 20, nem mesmo do século XIX, mas, sim, como se fosse da época de Cristo, como se fosse um Manuscrito do Mar Morto cinemático enterrado nas areias”. O processo levava de oito a dez horas para cada minuto finalizado, num admirável tour de force.”

A película assim, como a fotografia para Barthes, está viva, e tem como pais, o mito e a imagem, o “Deus se matando” e a “Mãe Terra”.

3. CARNE NO OSSO

Das relações entre mito e imagem nasce um terceiro elemento, a carne. Aqui como representação da morte, visto que o aspecto cíclico do mito necessita de um término que seja também início. A carne, como a película, estabelece uma relação de proximidade com o que é real, táctil, e por isso mesmo tem na morte sua característica mais pungente. E realmente o filme é muito doloroso nesse sentido. As imagens têm, bem como na revelação de imagem como tal, na brutalidade do referente a sua força. O que se vê, quando conseguimos distinguir o que vemos, é cru, e chega a ser cruel. É a morte, não metafórica, mas carnal, brutal até. O “deus” quando se mata, o faz eviscerando-se com uma navalha, o martírio do “Filho da Terra” é impressionante, ele é todo sangue, visco e carne em todos os aspectos. A carne é o que o filme busca retratar. E nessa busca, o diretor assume como referência um filme de outro realizador, Stan Brakhage, ícone do cinema de vanguarda americano e mundial do fim do século passado. O filme em questão se chama Act of Seeing with One’s Own Eyes, de 1971, e consiste na filmagem de três dissecações de cadáveres anônimos. Neste ponto, cabe um breve comentário sobre o filme.

Brakhage diz em seu texto “Metáforas da Visão”, que o “absoluto realismo da imagem cinematográfica é uma não-realizada, logo potencial, magia”, ao defender, em linhas gerais, a quebra de um paradigma que vê o cinema como arte de representar a realidade, e buscar alternativas que valorizem mais as possibilidades das imagens em movimento. Notório por realizar intervenções diretas na película, em Act of Seeing with One’s Own Eyes, Brakhage praticamente “disseca” uma dissecação. Muitos planos próximos e planos detalhes dão conta de uma representação fiel, mais realista impossível, de tal ação. O que impressiona é a brutalidade das cenas, brutalidade advinda da quebra de ilusões que intimamente carregamos dentro de nós. A ilusão de que o corpo é um santuário sagrado, impenetrável e infalível, e por que não dizer, imortal. A dissecação mostrada por Brakhage mostra o corpo apenas como corpo, assim como seus outros filmes mostram, tal qual Merhige em Begotten, a imagem como imagem. No filme de Brakhage não é a morte que incomoda mais, e sim a infalibilidade da mesma. O que incomoda é a constatação de que nada mais somos do que carne no osso. Algo semelhante sentimos com Begotten.

No filme de Merhige, o personagem que representa o “Filho da Terra” também recebe a denominação de “Carne no osso”. Uma possível explicação para essa dupla identidade dentro da narrativa se dá ao seguirmos a linha de ideias que vem sendo apresentadas neste ensaio. Primeiramente, a esfera mítica do filme foi relacionada com a ideia do “deus se matando”, em seguida, uma análise sobre a forma do filme nos trouxe a ideia da “Mãe Terra” ao mesmo tempo em que já apontou para uma explicação sobre o filho, o “Filho da Terra”.

Em Begotten, a imagem gera o meio no qual é exibida, quem nasce dessa concepção mítica e imagética é a película. O “Filho da Terra” é a película, o substrato do real, o táctil, assim como também a carne é um substrato do real. Desse modo, o “Filho da Terra” deixa de ser uma metáfora para ser outra. Quando nasce, é película, pois o esforço da imagem em mostrá-lo como tal deu resultados, entretanto, dentro dessa imagem que se mostra como tal, há a representação da morte, fim de um ciclo e início de outro, através da exploração do corpo. E essa exploração do corpo é a “Carne nos ossos”. A partir dessa transformação de película em carne, o agora “Ex-Filho da Terra” representa a mudança, a conversão definitiva de imagem em carne, indo assim, o filme de Merhige, além do filme de Brakhage citado anteriormente, ao encontro, analogamente, de um pensamento de Barthes sobre a fotografia:

Uma espécie de vínculo umbilical liga a meu olhar o corpo da coisa fotografada: a luz, embora impalpável, é aqui um meio carnal, uma pele que partilho com aquele ou aquela que foi fotografado”

Expandindo o pensamento para o filme aqui analisado, temos esse vínculo que ligava Barthes à fotografia, aqui ligando o espectador a Begotten. Desse modo, a “pele” partilhada entre espectador e obra se torna presente na medida em que a relação “mítica-imagética” se desdobra para uma ampliação de sentidos, indo ao encontro da exploração do corpo através da carne, exigindo do espectador uma participação ativa na construção de sentidos para esse novo mito. Assim, mito se mata para gerar a imagem, a imagem gera a película, que se desenvolve e se transforma em carne, a carne é destruída e morre. Dessa morte nasce o mito, o ciclo se reinicia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Barthes, Roland. A câmara clara, 5° edição, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1984.

Brakhage, Stan. Metáforas da visão. In: I. XAVIER, A experiência do cinema. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1983.

Ferreira, Cid Vale. Begotten: Uma profana epifania da Criação, retirado de <http://www.carcasse.com/revista/phenomena/begotten/index.php>, acessado em 28/06/08, às 21:30.

<http://www.imdb.com/title/tt0101420/>, acessado em 28/06/08, às 22:00.

FILMOGRAFIA

Begotten, 1991, Edmund Elias Merhige.

Act of Seeing with One’s Own Eyes, 1971, Stan Brakhage. (Parte desse filme pode ser encontrada em <http://www.youtube.com/watch?v=DrU65rlruXM>)

Gabriel Costa Correia é graduando em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

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Este post tem 6 comentários

  1. Author Image
    EDUARDO

    Baixei Begotten e o assisti. É um filme único, uma obra prima enterrada nas entranhas desse estranho mundo digital,,, Vale a pena conferir, mas, este é um convite aos espíritos fortes,,,,

  2. Author Image
    Jean Kaligares.

    Realmente,como diz o amigo aqui;”É um filme único, uma obra prima enterrada nas entranhas desse estranho mundo digital”.Concordo plenamente!Não é um filme “normal”pois ele foge da compreensão humana,sem duvida alguma.ALTAMENTE RECOMENDÁVEL!

  3. Author Image
    Cristian

    Realmente, o filme mais parece um “pesadelo filmado” que um filme própriamente dito. Pena que uma boa parte do filme ñao seja tão intendivel (iventei uma palavra).

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    (GC)FELIX

    É UM FILME ÚNICO!…NUNCA TINHA VISTO UM FILME ASIM!
    Ñ É UM FILME BOM É
    ”O FILME BOM”!

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    Mateuscorralesfolletto

    Perturbador…

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    eric

    Eu assisti o filme sem ler qualquer crítica, ou seja livre de preconceitos no bom e mal sentido, a minha opinião é que não é possível compreender qualquer coisa do filme sem ler algo sobre ele antes. A forma em preto e branco sem definição faz com que não se compreenda grande parte da mensagem, o filme é extremamente lento em seu desenvolvimento, o que irrita, não agrada, não passa a mensagem. Mas o que se lê sobre o significado do filme é sempre bonito.

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