Bernardo Bertolucci e o autor no cinema

Por Ivan Amaral dos Reis *

Uma análise das relações de autoria em Os Sonhadores, Último Tango em Paris e O Conformista.

O autor no cinema é uma ideia que se consolida através do olhar do público, mas talvez tenha sempre existido na imaginação. A autoria cria uma relação entre obra e sujeito que, no cinema, traduziu a dimensão que se procurava para a vida, onde a criação pode fazê-la deslocar-se do lugar comum. As gerações de cineastas que seguem após os anos cinquenta vivem com mais intensidade a ideia de autoria que, ainda hoje, se situa no filme e no espectador.

A revista Cahiers du Cinéma, na qual figuravam como críticos alguns dos futuros cineastas da nouvelle-vague, colabora de forma decisiva para a instauração de um discurso sobre o autor no cinema.  Em um artigo intitulado “Uma certa tendência do cinema francês”,  Truffaut critica alguns filmes e adaptações de romances da época como sendo demasiadamente literárias e não cinematográficas. Ele define que o verdadeiro autor é alguém capaz de trazer algo genuinamente pessoal ao tema, em vez de apenas reproduzi-lo na tela. Este se torna o primeiro de uma série de artigos que geram a “política dos autores” que, para além das críticas de Truffaut, lançam um olhar ao cinema americano.

Os filmes de Hitchcock, Hawks e Nicholas Ray são exibidos na França do pós-guerra permitindo aos críticos da Cahiers perceber um olhar diferenciado em Hollywood.  A crítica buscava diferenciar estes diretores dos demais, destacando a independência da qualidade de suas obras do roteiro. Os críticos da Cahiers empregavam-se na defesa de que o cinema é uma arte que, como a literatura, realiza-se a partir da visão de um autor. O filme, contudo, interpretado em seu senso próprio de escrita, deveria distanciar-se da narrativa literária. Havia assim a preocupação em se tornar clara a diferença entre um autter e um metteur en scéne. Este último seria o diretor que, subordinado aos interesses do produtor, não defendia suas ideias e tampouco imprimia um estilo.  O cinema de estúdio, que distanciava o diretor da criação e do diálogo com o público, resumia-se a uma prática mercadológica da qual a produção europeia já começava a se diferenciar. O autor no cinema, portanto, não apenas assume um ideal romântico, mas concretiza também um papel político. A “política dos autores”, desta forma, renova a maneira de pensar e fazer cinema, não apenas por ter criado um espaço comum, mesmo que restrito, entre o campo da realização e da crítica, mas por defender a autonomia do diretor que passou a assumir sua voz no filme.

Bernardo Bertolucci estreia no cinema com o filme La Commare Secca em 1962, após fazer assistência de direção em Accatone, de Pasolini, época em que a ideia do autor já consagra o diretor e seu estilo.O filme Os Sonhadores (2003), sua última obra, reflete um processo iniciado anteriormente com Último Tango em Paris (1972) e O Conformista (1970). A relação amorosa em tempos de crise é o tema em comum que desenvolvem as três narrativas.  Em busca de um olhar sobre o passado histórico (O Conformista e Os Sonhadores) e sobre o presente (Último Tango em Paris), as tramas trabalham o triângulo amoroso em diferentes contextos, evidenciando os personagens no mundo através da relação com o outro.

Em campo e contra-campo vemos a luz que sai do projetor e a tela iluminada, a plateia iluminada pela tela onde estão Isabelle e Théo e logo atrás, Matthew, que olha para eles. Somos assim apresentados à atmosfera sedutora em que acontece a cinefilia. Os Sonhadores tem como pano de fundo o ano de 1968 e a juventude da época que promovia a agitação do meio cultural e político. O filme, já no início, apresenta-nos um episódio real em que se protesta contra o afastamento de Henri Langlois, co-fundador da cinemateca francesa, através de imagens de arquivo montadas, paralelamente, com a encenação da trama que vem sendo construída. O momento histórico, no entanto, traduz-se no enredo muito mais pela experiência vivida pelos três personagens que estão na manifestação por amor ao cinema.

Matthew, em meio à multidão, olha para Isabelle que está acorrentada no portão de entrada da cinemateca francesa. Ela o encara e ele finge que não a tinha visto. Isabelle pede para que tire o cigarro de sua boca e pergunta de onde ele é dizendo que ela e seu irmão, Théo, sempre o haviam visto sozinho.  Matthew responde que é americano e que ainda não conheceu ninguém em Paris. Isabelle lhe diz que ele é limpo demais para alguém que gosta tanto de cinema e isso serve de pretexto para apresentar seu irmão gêmeo, alertando-o para sentir seu cheiro enquanto ele se aproxima.  Matthew se apresenta, mas ao contrário do que se espera, Théo não lhe estende a mão e comenta que o tem visto em todas as sessões de Nicholas Ray.  Ele então lhe desafia perguntando “…sabe o que Godard disse sobre ele?” “Não”, reponde Matthew. “Nicholas Ray é cinema.” A polícia começa a entrar em choque com os manifestantes, mas em meio à confusão Théo e Isabelle desviam-se do caminho e Matthew segue com eles pela rua. O enredo inicia e nos remete a um imaginário atual sobre a época, onde se define, sobretudo, o lugar que os personagens ocupam no mundo, suas nacionalidades e a maneira de se comportarem. O encontro simboliza a coexistência de duas culturas, a americana e a francesa, que em determinado momento procuram aceitar-se.

Matthew volta ao hotel em que está hospedado e começa a escrever uma carta para a mãe confidenciando a experiência que teve, atitude que retoma ao longo do filme enquanto fala ao espectador: a voz em off do personagem assume a função de eixo narrativo como um comentário sobre o que ele vivencia. No entanto, tem-se nele a impressão de certa falta de autonomia em decurso da descoberta do mundo que não conhece em Paris, do qual é impelido a participar.  Matthew é acordado por Théo que o convida para jantar no apartamento deles. A cena corta para Matthew sendo empurrado para o elevador que começa a subir, em contra-campo os irmãos vão pela escada dizendo “somos contagiosos”. Em plano-sequência ele sai do elevador e entra no apartamento onde vive uma família burguesa abastada.  O jantar ocorre em meio à austeridade do pai e rebeldia dos filhos, em um desencontro dentro do núcleo que parece não comover Matthew no primeiro momento.  Ao final do jantar, forçado pelo desentendimento de Théo com o pai, eles ficam a sós. Isabelle apaga as luzes e acende velas, assumindo este como o ambiente ideal para eles, mas, agora, Matthew surpreende-se com o beijo de boa noite de Isabelle na boca do irmão e na sua também. A cena evidencia o recomeço do jogo do triângulo amoroso, que poderia ter sido quebrado pela presença dos pais ou, como anteriormente, pela presença da polícia na manifestação.

A sedução acaba surtindo efeito e Matthew, que passa a noite no apartamento, é suscitado pelo interesse de abrir a porta do quarto: em câmera subjetiva vemos os irmãos nus na mesma cama. Matthew, em contra-campo, fica perplexo e a relação que entre eles poderia sofrer um impasse, no entanto, é aí que começa de verdade, movida pelo interesse na descoberta do outro, do cinema, do desconhecido da cinefilia. Matthew é acordado agora por Isabelle que lambe seus olhos. Ela tenta lhe tirar o lençol, mas ele retruca dizendo que não está vestido, então, como numa sequência da mesma ação, ela reproduz a cena de um filme em que Greta Garbo anda pelo quarto olhando para um homem e, em montagem paralela, vemos as imagens originais do filme. Matthew representa o homem decifrando o jogo. Isabelle sai e Matthew a observa, da janela, entrar no banheiro onde está o irmão nu. Os pais já não estão presentes no apartamento por motivo de uma viagem, o que permite aos irmãos convidarem Matthew para se mudar para lá, enquanto se lavam no banheiro. A proximidade com o corpo nu, no entanto, parece não o intimidar porque ele já os havia visto da janela de seu quarto. Matthew acaba aceitando o convite motivado pelo jogo com o qual sempre se identificou.

O jogo continua com a condição de pagarem uma prenda caso nenhum deles decifre o filme. Na primeira tentativa Théo não se lembra de um filme com Marlene Dietrich e Isabelle o obriga a repetir algo que ela o viu fazer outro dia. Théo então se masturba em frente à fotografia de Marlene Dietrich e em frente a Matthew, desvelando o olhar de voyeur e o evidenciando como parte do jogo.  Aos poucos, os irmãos vão incluindo Matthew em uma relação em que sua participação física é cada vez mais requisitada, como forma de compartilhar a vida que sonham, de modo que eles o obrigam a reproduzir a cena do filme Bande à Parte em que, correndo pelo Louvre, conseguem quebrar o recorde do tempo dos personagens. Em montagem paralela com o filme original, a trama sabe que ambas as imagens têm um espectador que as atualizam. A narrativa, em sua metalinguagem, se aproxima cada vez mais da possível experiência do espectador com os filmes antigos para podê-lo incluir no jogo.  Mas esta montagem paralela chega ao fim quando Matthew não acerta o nome do filme Scarface que Théo representa e a prenda para ele é transar com Isabelle.  Matthew quase fora de si é forçado a pagar a prenda, quando revela que os viu nus na mesma cama. Isabelle baixa suas calças e descobre uma foto sua embaixo do pênis, momento tragicômico e profundamente questionador do fetiche, pois só depois da catarse é que pode-se substituir a imagem do corpo pelo corpo real.  Matthew desmaia e acorda, olha para Théo e o reconhece como Isabelle, mas volta a si e transa com a irmã gêmea sem saber que a desvirgina. O sangue de Isabelle torna-se então o elemento revelador da motivação do encontro, do jogo, da encenação. O espectador descobre então que a imagem dos irmãos nus na cama não representava o incesto, dependendo de seu ponto de vista.

Théo e Isabelle querem o encontro como um processo de libertação da convenção burguesa do comportamento e das relações. O sonho entre eles se dá em querer ser para o outro o que um filme deve ser para a plateia que, por habitar o mesmo espaço que ocupa a tela, coloca-se diante do real imaginado em um momento único e transformador: o da criação.  Matthew os retruca argumentando que eles não podem crescer se continuarem a se comportar desta maneira, pois é preciso estabelecer a privacidade entre a vida de ambos. Ele então convida Isabelle para sair apenas com ele e eles vão ao cinema. O filme desta vez é em cinescope e a imagem da tela é ainda maior. Matthew conduz Isabelle para sentarem-se ao fundo como fazem os namorados. A relação entre os espaços do espectador e do filme é então reafirmada junto à necessidade de se compreender os papéis da vida real.  Matthew quer conduzi-los por meio de um ideal moralizante onde o público deve comportar-se de acordo com o que se espera dele. Quando chegam de volta ao apartamento, Théo tem uma garota no quarto que deixou suas luvas pretas no hall de entrada. Isabelle calça as luvas e interpreta a estátua Vênus de Millo para Matthew na porta de entrada de seu quarto antes de transarem. A música do quarto de Théo, porém, desperta seu ciúme e ela tenta repreender, em vão, o irmão batendo à sua porta, o apartamento então acaba obedecendo à lógica da privacidade assim como a conduta de cada um naquele momento. O desejo entre eles, no entanto, alimenta-se no lugar comum que ocupam desde o momento em que se conheceram.

Isabelle acende velas novamente e faz uma cabana de tecido colorido na sala, onde eles entram, bebem vinho e, ao que tudo indica, fazem um ménage a trois. A imagem dos três nus revela-se para nós através do olhar dos pais que chegam ao apartamento para deixar dinheiro para os filhos. Desta vez, o desejo se consuma entre os irmãos e o olhar dos pais assume um contra-campo onde se configura o espectador. No entanto, podemos sentir estar de um lado ou do outro, imaginando o que pensarão os pais e o que de fato pensamos nós. Eles então deixam o cheque em cima da mesa e apagam as velas, prenunciando o fim do jogo. O cheque torna-se então a única evidência da presença deles e, desta forma, não se sabe o que pensam, o que sentem, ou mesmo o que procuram. Isabelle acorda e descobre o cheque, decide então se matar e aos outros também, pois a vida já reduzida dentro do núcleo espacial do apartamento não se sustentaria sendo julgada pelos pais.  A manifestação recomeça na rua e, intercedendo de novo o encontro, uma pedra jogada quebra a janela e cai dentro da sala. Isabelle tem tempo de retornar à cozinha a mangueira que levava gás a eles, sem que percebam. Eles saem para a manifestação, e como no começo da trama, seguem juntos. O objetivo de Théo, entretanto, se revela contrário ao de Matthew, que não quer a violência, mas também não assume uma posição diante da polícia. Enquanto ele retrocede e desaparece em meio aos manifestantes, os irmãos, mais à frente, a enfrentam e, sem temer qualquer consequência, permanecem juntos.

Em Último Tango em Paris é o conflito interior dos personagens que conduz a trama em um drama que ascende ao plano universal como reflexão da relação amorosa em tempos de crise do casamento e dos valores burgueses. A crise, todavia, revela-se aqui tanto no casamento quanto na relação libertária, onde o triângulo amoroso se dá como antítese e densifica o conflito dos personagens com o mundo. O anti-romantismo da trama revela um erotismo provocador, uma vez que a liberação sexual é motivada pela desilusão amorosa, mas esta é ferida que nunca cicatriza, e tende cada vez mais ao individualismo. Há, na trama, um estado de permanente utopia, em que cada um vislumbra seu próprio eu e procura sozinho seguir adiante mesmo sem saber para onde.

Paul é o americano em Paris, um homem de meia idade que anda pela rua e se incomoda profundamente com o barulho dos trens que passam, tapando os ouvidos com as mãos. Ao seu lado passa uma jovem que o olha, mas ele finge que não a vê e ela segue adiante. Jeanne tem vinte anos e é noiva de um jovem cineasta. Ela quer alugar um apartamento e viver uma vida nova, mas não sabe exatamente por onde começar. A mulher de Paul acabara de se suicidar, em uma trágica desilusão amorosa representada apenas pelo sangue retirado da banheira e pelo corpo velado na cama.  Paul não aguenta mais viver no prédio onde mora, quando sente-se atraído por Jeanne. Ela, sem saber que estava sendo seguida, encontra um apartamento abandonado em um prédio cuja zeladora misteriosa sabe muito pouco sobre os moradores que entram e saem a toda a hora. Quando entra no apartamento surpreende-se ao notar que Paul já estava lá dentro. Sem conversarem muito ou mesmo seduzirem-se, Paul rasga a roupa de Jeanne, eles transam rapidamente e vão embora. A relação possível entre eles revela, desde o primeiro encontro, o acaso que guia suas atitudes motivado pelo escapismo da condição em que vivem o presente. Jeanne, logo em seguida, tem um encontro numa estação de trem com Tom, seu noivo, que chega com uma equipe de filmagem e começa a fazer um filme sobre a relação já desgastada entre eles, agora mediada pela câmera. As imagens do filme de Tom e o suicídio da mulher de Paul sugerem a motivação do conflito: o desgaste da relação amorosa se dá como consequência da idealização do casamento. Entre Jeanne e Paul concretiza-se então a possibilidade da relação física no apartamento abandonado onde o vazio dos cômodos parece refletir a eles próprios.

“A gente não tem nenhum nome aqui” é o que responde Paul quando Jeanne o indaga sobre como chamá-lo. Paul leva alguns móveis para o apartamento e sugere que eles se encontrem lá sem ninguém saber absolutamente nada um do outro, nem do mundo. O filme de Tom, no entanto, investe no passado de Jeanne e, ambientando a casa de campo de sua família, passa a revelar momentos de sua infância, a empregada racista que ainda habita a casa, os móveis escuros, os álbuns de fotografia, Jeanne conta algumas de suas memórias. Tom dispensa, arrogantemente, sua equipe e ela continua a atuar para ele sem a câmera.  Eles andam pelo jardim e Jeanne diz que precisa ir embora para o trabalho, Tom insiste que ela conte sobre o coronel. A cena corta para o apartamento onde Jeanne continua e revela a Paul que seu pai era um coronel que morreu na guerra e ela o considerava como um Deus. Paul, por sua vez, não queria falar do passado, nem de datas nem de nomes, mas acaba revelando as amarguras de sua infância.  A história do passado de cada um é então levada ao apartamento como que para um lugar último onde pode ser compartilhada, sem o olhar do outro ou da câmera, que exige uma narrativa.  Em oposição ao filme de Tom, o apartamento serve para desvelar a idealização romântica do passado, que reduz a compreensão da vida à necessidade de ser contar uma bela história, em metalinguagem à própria trama que quase não desenvolve história alguma. Os personagens existem apenas no momento presente fugindo de qualquer enredo que sustente suas escolhas ou mesmo solicite uma reflexão sobre suas trajetórias. O que se percebe é que a crise que vivem cresce à medida que o mundo “lá fora” exige que saiam do apartamento e contem uma história sobre si mesmos.

Um trem chega à estação do metrô onde Jeanne e Tom encontram-se novamente. Ela diz que está tudo acabado entre eles, que não aguenta mais ser usada como imagem de seu filme, enquanto ele não para de querer enquadrá-la do outro lado da estação.  Tom vai ao seu encontro, eles simulam uma briga, mas acabam se abraçando. As cenas em lugares públicos passam a interessar cada vez mais a eles. Como parte da esfera do encontro casual, se tornam noivos casuais representando eles mesmos no mundo. Jeanne volta ao apartamento e encontra Paul como fora combinado, pois ele está sempre à sua espera. Mas, ao contrário do que Jeanne espera, ele a manda pegar manteiga na cozinha, predizendo uma cena que havia planejado a quatro paredes. Paul, enquanto a penetra por trás, condena a educação moral cristã da família lhe obrigando a repetir as palavras que diz. O sexo anal revela o clímax do erotismo que se busca na trama. Em contraponto à idealização romântica, o estupro é aceito e assume-se como parte da relação entre eles. Jeanne coloca um disco na vitrola que toca música pop e o mostra à Paul. Corta para os noivos num barco onde Tom declara que quer se casar com ela, encenando para a equipe que os filma, ele põe uma bóia salva-vidas em seu corpo, ela tira e diz que não quer se casar. Jeanne e Tom então desconstroem a imagem do casamento à medida que tentam compreendê-lo fazendo o filme.  Jeanne comunica sua mãe que vai se casar em duas semanas, enquanto desce pelo elevador do prédio onde realmente mora.

A câmera dispara, o vestido de noiva de Jeanne é ajustado em seu corpo e Tom lhe pergunta como ela vê o casamento. “O vejo em todos os lugares, na rua, nas casas, nos cartazes publicitários”, responde ela. O casal do momento atual está sempre feliz no cartaz da propaganda, junto a um carro, antes ou depois do casamento, é o que conclui. “Para o jovem pop, casamento pop!”, acrescenta Tom. A cena torna-se a representação do próprio tema, mas em frente à câmera de Tom a imagem é viva, questiona a si própria, e apresenta uma opinião sobre o presente que transborda os próprios personagens.  Tom sai pela rua exaltando a atuação de Jeanne enquanto sua equipe de filmagem vai embora e ela também. Jeanne volta para Paul, vestida de noiva e toda molhada. Enquanto eles sobem pelo elevador ela levanta o vestido e mostra seu corpo. Em analogia ao elevador que os leva ao apartamento, o prazer também os conduz a algum lugar, mas não se sabe ao certo para onde. O apartamento perde o sentido que tinha quando Jeanne encontra um rato morto na cama. “Isto é o fim!”, ela diz. Não mais é o casamento nem a relação casual, o que ela quer é um lugar ideal para viver.

O apartamento é abandonado por Paul, Jeanne liga para Tom e diz que encontrou o lugar que procurava. Tom não gosta do lugar, o acha velho demais, e a encenação entre eles parece também não mais satisfazê-los. Jeanne anda pela rua quando reencontra Paul. “É o fim”, ela diz. Paul se apresenta, conta quem é, sua idade e diz que sempre há um recomeço. Ele a leva para um salão de tango, mas o lugar parece mais entediar a Jeanne. Os casais dançam a competição final de tango, Jeanne e Paul então entregam-se à música em meio a eles e representam, pela última vez, o que querem viver. A mudança em suas vidas, no entanto, não acontece em dança alguma, Jeanne comunica a Paul que é o fim e foge. Paul a segue pela rua e ela chega ao prédio onde ela mora. Enquanto ela sobe de elevador ele vai pela escada e consegue entrar em sua casa. Jeanne corre até uma gaveta, ele se aproxima e pergunta seu nome. Ela responde e atira nele ao mesmo tempo. Paul morre na varanda olhando para a cidade e  Jeanne, segurando a arma, inventa uma história para contar.

O passado histórico em O Conformista situa-se como leitura social e sentimental do fascismo, simbolizando a memória de um país.  Aqui embarcamos em outra tragédia de um triângulo amoroso na qual se evidencia o conflito do personagem principal. A narrativa trabalha todo o desenrolar da trama em flash-backs que revelam a memória de Marcello Clerici, um executor do regime fascista que, em meio a um casamento com uma mulher que não suporta, é requisitado para matar seu ex-professor de faculdade, a quem tanto admirava. Entre o passado e o presente, sua vida acaba tornando-se uma promessa sem sentido onde permanece obediente à moral burguesa e ao fascismo, em meio à tentativa de compreender um pouco a si próprio e aos seus desejos.

O carro é guiado por seu comparsa, que o leva para uma estrada onde é planejada a emboscada para o professor. Marcello recorda quase toda sua vida, e a sucessão dos fatos apenas confirmam sua desilusão em relação ao mundo. Ele se casa com Giulia e, ao mesmo tempo, começa a trabalhar para o regime fascista sem uma motivação clara. Como confessa a seu amigo, ele apenas quer  ser como todo mundo e viver a normalidade. O amigo cego é locutor em uma emissora de rádio, e revela-se também um bom ouvinte. Sua presença, em alguns momentos na trama, catalisa em Marcello uma exteriorização necessária ao personagem. Marcello visita Giulia que o comunica que eles só podem se casar se antes ele se confessar para o padre. Ele não é religioso, mas acaba concordando, pois Giulia diz que quase ninguém é crente, nem ela, nem mesmo os padres, porém é necessário se confessar para que o padre os permita casar. Marcello então diz ao padre que cometeu todos os pecados. A sua memória nos revela que, quando criança, na saída da escola, depois de ser zombado por outros garotos, ele pega carona com um desconhecido que o leva para uma casa abandonada.  O homem tem uma arma e a coloca em cima da cama. Marcello, subitamente, pega a arma e o mata. O padre se interessa mais pelos detalhes, se houve ato sexual e como foi, o que choca Marcello.  O conflito encontra-se, então, onde não se sabe se o que mais o constrange é ter matado o homem ou quase ter consumado com ele uma relação homossexual.

Marcello descobre o telefone do professor Quadri em Paris e, já em lua de mel na cidade, consegue convencê-lo a em um encontro. O casal chega ao apartamento e é recebido por Ana, a mulher do professor, por quem Marcello se apaixona subitamente. Ana demonstra interesse neles e se aproxima rapidamente de Giulia, de quem se torna amiga. O professor recebe Marcello em seu escritório com certa desconfiança e pergunta o porquê de ele ter ido visitá-lo. Marcello fecha uma janela e parte do ambiente permanece iluminado por outra, ele e o professor ficam às escuras. Ele relembra que o professor costumava fazer isso em sala de aula e que o que mais se recorda dele é sua voz. Em analogia ao mito da caverna de Platão, ele se posiciona em frente à janela projetando sua sombra na parede. O professor entende a mensagem e relaciona os prisioneiros da caverna aos italianos, mas não percebe que, quando Marcello diz que virou um fascista, não apenas projeta uma imagem, mas revela sua condição. Marcello reconhece em Ana a imagem de uma prostituta que conhecera; ela, por sua vez, envolve-se com ele com uma atração sexual que não controla e que também sente por Giulia.  O triângulo amoroso envolve-se então em um jogo de sedução onde parecem não enxergar o outro além da imagem que projetam.

O professor marca uma viagem para o interior e convida Marcello que se recusa e tenta convencer Ana a não ir com ele. A paixão por Ana representa a possibilidade de livrar-se da esposa depois da execução do professor, salvar-se de seu casamento ao menos, posto que ninguém pode salvar-se do fascismo. As contradições do personagem o reduzem cada vez mais à condição de conformar-se com o que o impede de ser ele mesmo, pois a força maior da sociedade não está no indivíduo e sim no poder que age sobre ele, o corrompe e o faz aceitar a normalidade de um mundo de poucas escolhas. Apesar do senso crítico com que se refere à sociedade, Marcello busca expurgar sempre a mesma cena, em que reconhece a anormalidade do outro e o elimina.  A caminho da estrada, do contrário que havia planejado, ele fica sabendo que Ana está no carro junto com o professor.  A última esperança que tinha se desfaz, mas não há sentimento, apenas consentimento. A emboscada tem sucesso, o professor pára o carro diante de um falso acidente e é apunhalado mais de vinte vezes enquanto Ana assiste horrorizada. Ela sai do carro e antes de ser assassinada corre para o carro de Marcello que está logo atrás. Ela grita demonstrando seu horror quando o reconhece, mas tudo o que há no olhar de Marcello é o vazio, a cegueira que o define, pois já é tarde demais para querer ver.

O rádio anuncia que Benito Mussolini foi expulso: a ditadura fascista chega então ao fim. Marcello reza com sua filha antes de dormir quando sua mulher o surpreende dizendo que Italo telefonou. O amigo cego quer então reencontrá-lo, Giulia revela que tem medo que lhe aconteça alguma coisa e pede para que não vá. Ela o revela que Ana lhe disse que trabalhava para a polícia secreta e que ficou assustada com o assassinato deles, mas não se importa com a verdade se o que fez foi importante para sua carreira. Assim que Marcello sai, a luz cai e volta rapidamente, Giulia é chamada por sua filha que tem medo do escuro. A passagem do tempo na trama demonstra, nos dois personagens, que a compreensão do passado é limitada pela ignorância do presente. A relação dos deles com seu tempo se dá, afinal, pela conformação consigo e com o mundo, em que se perpetua, sobretudo, a falta do outro, pois não há quem os liberte do mito da caverna. Marcello encontra o amigo cego na rua e, caminhando juntos em meio ao clima de comemoração nas ruas, encontram dois homens que evidenciam serem homossexuais. Marcello projeta em um deles a imagem de Lino, o motorista que ele matara e o acusa também de ter matado os Quadri. Chamando-o de fascista, o homem acaba fugindo. O momento nos revela que ele pode acusar o outro da anormalidade que se apresenta, o regime acabou, o fascista e o gay podem ser a mesma pessoa. O amigo cego é deixado sozinho e levado pela multidão de uma passeata que segue e deixa a rua deserta. Marcello senta-se na calçada ao lado de uma pequena fogueira, mas atrás de si há um beco onde um outro homem, nu e deitado em uma cama, gira uma vitrola que toca música. Marcello olha para trás, a luz do fogo ilumina seu rosto, ele tenta enxergar alguém.

Os filmes chegam ao fim quando a trama sugere um deslocamento do olhar onde, entre o passado e o futuro, entre o que está atrás e à frente, há o espectador. Na última cena de O Conformista, Marcello olha, à sua frente, a cidade deserta e não compreende o mundo sem o fascismo. Atrás de si o beco sem saída metaforiza seu passado e a questão que tentara ignorar. A imagem de seu rosto entre a luz e a sombra sugere-nos o mistério: coloca-se ao espectador o questionamento de como ver o personagem. Em Último Tango em Paris, do corpo de Paul encolhido na varanda recuamos em travelling para dentro do apartamento até Jeanne, que segura a arma. Ela então ensaia para si a versão que pretende contar aos outros sobre o que aconteceu em seu passado e na própria trama. O que se revela aqui é a consciência que assume a personagem, diante da câmera e diante da vida, em relação à representação de si mesma. Em Os Sonhadores a relação entre ver e ser visto atinge o clímax dentro do contexto que aborda, quando, pela primeira vez, a morte assume a união dos personagens, e o que os separa é a vida.

Nas três narrativas há o rompimento do triângulo amoroso – o encontro não se dá como possibilidade de mudança e sim como afirmação do conflito dos personagens que não conseguem mudar o outro nem a si mesmos. Em O Conformista, o fascismo determina a condição moral dos personagens e o assassinato revela-se como um acaso, entre a culpa do mundo e do indivíduo, que se repete em Último Tango em Paris, onde os apartamentos definem uma oposição entre o lugar qualquer e o privado.  Em Os Sonhadores a busca é reversa: os personagens querem redefinir o lugar que habitam.  O apartamento delimita os espaços que velam a relação entre os irmãos, mas ela é desvelada, logo ao início, pelo olhar voyeur de Matthew. O erotismo da trama é então conduzido pelos irmãos quando ele se muda para o apartamento, o olhar dos pais não se faz mais presente mas é substituído por outro, o do espectador. Matthew então inclui-se no jogo à medida que participa não mais como espectador mas como parte deles: “Um de nós!” exaltam os irmãos. O espectador fica do lado fora, afirma-se seu lugar quando o olhar voyeur dos pais revela o espaço de utopia, a criação da cabana dentro do apartamento. A morte torna-se a única saída para permanecerem juntos, mas ela é interrompida pela vida real e suas contradições, pela reação ao contra-campo. Na última cena há o deslocamento dos personagens que separam-se ao afirmarem seus pontos de vista e, ao meio, um olhar que não se desloca; o espectador permanece absorto, estático e, provavelmente, mal compreendido.

Na obra mais recente do autor, a relação campo e contra-campo determina uma oposição de forças que se torna grave ao espectador. No último plano do filme a polícia avança ferozmente em direção aos manifestantes e o ultrapassa em contra-campo até restar na imagem a rua deserta.  A música ‘Rien de Rien’ ¹ reforça ainda a ideia de que o espectador foi mesmo esmagado. A imagem e o som sugerem sua total imobilidade. Imaginamos então o que terá sido um momento histórico afirmar-se contra todos nós, ainda em época recente, restando-nos apenas ocupar o lado oposto à tela. O desfecho parece, portanto, reduzir a relação entre espectador e filme a uma questão espacial. Ora, mas desde quando a relação com o cinema se estabelece apenas em campo e contra-campo? O autor no cinema evidencia na tela o que está na vida, ao lado, mais perto do que se imagina. É esta a razão que permite emergir a crítica, tal qual a dos Cahiers, que influenciam o olhar para os filmes de fora da sala. E não apenas a crítica, como também o espectador emerge do fundo de si, não necessariamente para se opor a tela, mas para reconhecer um outro ponto de vista.

¹ ‘Rien de Rien’ canção francesa de Edith Piaf que, em português, significa ‘Nada de Nada’.

* Ivan Amaral dos Reis é graduando do sétimo semestre do curso de Bacharelado em Audiovisual do Senac.

REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. “A morte do Autor” in O Rumor da Língua. São Paulo, Martins Fontes, 2004.

BERNADET, Jean-Claude. O autor no cinema. São Paulo, Brasiliense, 1994.

BUSCOMBE, Edward. “Idéias de autoria” in: RAMOS, Fernão Pessoa (org.). Teoria Contemporânea do Cinema. V.1. São Paulo, Senac, 2004.

FOCAULT, Michel. “O que é um autor?” in Ditos e Escritos III. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2006.

MACHADO,  Arlindo. O Sujeito na Tela. São Paulo, Paulus, 2007.

Ivan Amaral é graduando do sétimo semestre do curso de Bacharelado em Audiovisual do Senac.

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    Fernando Reis

    Me lembro do tempo em que havia o cinema Belas Artes e eu não perdia um filme de autor.
    O cinema novo foi para mim e o pessoal da mina geração um elo com a liberdade, reprimida pela ditadura militar. Eu amava profundamente o cinema. Meu sonho era carregar uma câmera, como Glauber com uma idéia na cabeça. Mas não fiz isso. Não pude. Hoje ainda amo o cinema…participo do cine clube Paraíso aqui em Minas.
    Meus parabéns pelo seu texto, me alegra muito ver a sua produção e desenvoltura, faça cinema e seja feliz.

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