“Bob Esponja Calça Quadrada, Que Bob? Que Calça?” O Desenho Animado como Problema Conceitual.

Por Francisco Cleiton Vieira Silva do Rego*

Nota Introdutória

Em qualquer estudo científico, o objeto de análise é tomado logo em sua característica conceitual, para que assim se possa compreendê-lo dentro dos limites metodológicos escolhidos. Partindo da aplicabilidade do desenho animado como objeto de pesquisa válido nas ciências sociais – além da comunicação social e assemelhados –, este trabalho procura investigar a animação enquanto problema conceitual, que se apresenta ao se estudar o desenho animado, seja na sua dimensão técnica, simbólica, visual ou estética. Através da análise do desenho animado Bob Esponja Calça Quadrada (SpongeBob SquarePants, 1999), do criador Stephen Hillenburg, este trabalho busca estudar a dimensão conceitual do desenho animado em si, que se apresenta enquanto técnica, enquanto jogo simbólico, e enquanto apresentação visual/estética, formada ao longo da história.

Em “Bob Esponja Calça Quadrada, que Bob? Que Calça?” (Who Bob, What Pant?, 2008), quinquagésimo oitavo episódio da quinta temporada, Bob Esponja perde a memória e se sente perdido. No decorrer do episódio, o personagem passa por diferentes acidentes que prejudicam outras pessoas, e por fim acaba por ocasionar a sua amnésia. Por meio dessa metáfora de “quem sou eu?”, exemplificaremos o que é o desenho animado, se é somente um conjunto de desenhos estáticos animados ou se envolve características simbólicas.

Dessa forma, perceberemos ao longo do paper que o desenho animado é percebido enquanto técnica, enquanto carga simbólica – tanto no sentido cultural como mercadológico e institucional – e enquanto aplicabilidade audiovisual. Mostrando assim a dimensão conceitual de Bob Esponja Calça Quadrada.

1. Técnica e conteúdo animado através da História.

Quando falamos em desenho animado, observamos que o desenho em si se apresenta em diferentes idades históricas, perpassando pelas pinturas rupestres do Paleolítico, pelas artes plásticas do Renascimento, e culminando na animação do desenho no Cinema, nos idos de 1900, que, embora tenha começado com um modesto uso de linhas e fundo unicolor (Fantasmagorie, 1908), foi se desenvolvendo em técnicas de produção especializadas, gerando assim um mercado próprio, autônomo. Para alguns autores, inclusive, a animação cinematográfica pode ser percebida como arte – assim como as pinturas das artes plásticas –, pois o criador faria uso de conceitos estéticos e de suas percepções pessoais acerca da realidade na produção animada, utilizando assim elementos das artes plásticas na própria concepção do desenho, tanto na história contada nele como na técnica utilizada (Lucena Junior apud Cruz, 2006). Com a entrada do desenho no cinema, se desenvolveu um mercado de produção de animação, que possibilitou o desenvolvimento da técnica e da narrativa específica do desenho animado, passando de apêndice nas salas de cinema, para protagonista de um mercado.

Fantasmagorie (1908). Imagem retirada da animação.

 

A animação passou por status quo diferenciados ao longo da história, de apêndice do cinema servindo de prévia antes dos filmes começarem, passando por diversão infantil, ao final da década de 1930, e chegando hoje a um produto que pode ter públicos diferenciados em idades e culturas. A história da animação, segundo Paula Ribeiro Cruz (2006, p.23-24), pode ser dividida em cinco momentos importantes, quando se desenvolverá a narrativa, a linguagem e a técnica utilizada na produção de desenhos animados:

1) a invenção dos aparatos técnico-científicos que possibilitaram seu [da animação] surgimento, no fim do século XIX; 2) sua consagração como arte autônoma e as origens da industrialização, durante o período do cinema mudo, no início do século XX; 3) a revolução técnica e estética que dominou a era de ouro do cartoon, nas décadas de 1930 e 1940 versus a resistência do experimentalismo; 4) o mercado televisivo e a produção independente, dos anos 1950 aos 1980; e 5) a reconfiguração do processo produtivo, com a introdução das novas tecnologias, a partir de 1980.

Em 1645, o jesuíta Athanasius Kircher cria um dispositivo para catequização, que se tornaria mais tarde chamado de Lanterna Mágica, pelo qual era possível projetar a imagem de um desenho pintado sobre vidro, em uma determinada superfície (Lucena Junior apud Cruz, 2006). A imagem ainda não estava animada, mas esse dispositivo era o começo do desenvolvimento técnico que daria início à produção de animação. Segundo Cruz (2006), em 1824, Peter Mark Roget descobriu que se a sucessão de imagens percebidas pela retina do olho humano fosse rápida o suficiente, era possível que o observador tivesse a ilusão de movimento, mesmo que as imagens estivem, na realidade, paradas. Essa e outras descobertas e inovações possibilitaram o aperfeiçoamento da técnica de projeção de desenhos animados.

Em 1892, com o Teatro Óptico, o francês Èmile Reynaud, aprimora o praxinoscópio – dispositivo melhorado da Lanterna Mágica, em que imagens eram dispostas em espelhos dentro de um cilindro, onde se dava a ilusão de movimentação da imagem parada –, incluindo mais duas lanternas no cilindro, possibilitando maior brilho e nitidez da imagem projetada. Posteriormente, os Irmãos Lumière ultrapassavam o Teatro Óptico com o cinematógrafo, aparato moderno que seria capaz tanto de captar como de projetar imagens. Com todo esse avanço técnico que o procedeu, o francês Èmile Cohl (1857-1938) pôde projetar o primeiro e genuíno desenho animado moderno da história, o Fantasmagorie, criado em 1908 por ele, em Paris (Boutin, 2006; Cruz, 2006). Ainda mudo, a criação de Cohl, inserida no estilo do Movimento dos Incoerentes[1], apresentava um modesto uso de linhas brancas para dar forma aos seus personagens, sob um fundo plano unicolor todo em preto, criando assim, segundo Lucena Junior (apud Cruz, 2006) uma estrutura narrativa e um código estético, inédito até então nos termos animados do cinema.

Paula Cruz (2006) trabalha com a noção de que animação cinematográfica pode ser tomada como arte e, como tal, ficaria autônoma a partir de Èmile Cohl e Winsor McCay, pois juntos introduzem conceitos estéticos, noções de peso, tridimensionalidade através da perspectiva, além de conceitos fundamentais da animação que utilizariam em Fantasmagorie (1908) e Little Nemo (1911), como comprimir, esticar, aceleração e desaceleração, temporalização e personalidade. No entanto, independentemente da discussão conceitual de que animação seria arte ou não – debate que não objetivamos aqui –, Cohl e McCay iniciam a autonomia da animação em relação a qualquer outra produção visual, que seria especializada pelos estúdios de animação dos Estados Unidos, principalmente pela companhia de Walt Disney.

Contudo, a indústria de animação ganha forma nos anos de 1920, com os primeiros estúdios nos Estados Unidos, que irão dar início à padronização de técnicas de produção e de características de ficção que envolve a formatação dos personagens e da própria narrativa do desenho. Um dos primeiros estúdios surgiu em Nova Iorque, ainda em 1914, o Barré-Nolan Studio do franco-canadense Raoul Barrée e de Bill Nolan. Neste estúdio, Barré conseguiu criar uma técnica de perfuração do papel do desenho, em que solucionava o problema da necessidade de animar o cenário estático, quadro a quadro, todas às vezes que o personagem mudava de posição, conseguindo repetir o cenário e mudando apenas os personagens. No entanto, nesse período, foi o estúdio de John Randolph Bray, o Bray Productions (1914) que dominava o mercado estadunidense. O ilustrador estadunidense Bray introduziu procedimentos administrativos a animação, observava-se uma série de métodos desde a criação do desenho até a administração dos direitos autorais, que possibilitou a criação de um sistema de linha de montagem para a animação, surgindo assim uma verdadeira indústria da animação. Além disso, a rotoscopia e a padronização do uso do acetato – folha de celuloide transparente – possibilitaram uma mudança significativa na estrutura de produção da animação, uma vez que o acetato permitiu utilizar os cenários estáticos dos filmes animados quantas vezes se quisesse, pois a animação dos personagens era desenhada numa folha transparente diferente da folha em que estava o cenário, sendo um superposto ao outro. Já a rotoscopia permitiu uma maior realidade das animações, comparando-os ao cinema de açãoviva[2] (Lucena Junior apud Cruz, 2006).

Com a entrada da Disney na indústria da animação, outra reviravolta na produção ocorreu. Essa companhia conseguiu incrementar um conjunto de técnicas que modificaram o modo de fazer animação, não só em relação à técnica, mas também através da linha de montagem e da percepção do sentido da animação em si. Entre esse desenvolvimento está à sincronização do som e da imagem, criando em 1928 a primeira animação sonorizada, o Steamboat Wille, para no mesmo ano nos apresentar o personagem Mickey Mouse, em Planes Crazy, em uma rede de cenas satíricas – conteúdo padrão para a animação no momento, onde havia a conjunção de tipos diferenciados de piadas (Boutin, 2006; Glaber, 2009; Pereira, 2010). Já em 1932, o filme Flowers and Trees foi o primeiro desenho colorido, com o incremento da nova técnica Technicolor. Em 1933, os personagens dos desenhos começam a se apresentar com personalidades diferenciadas em Os Três Porquinhos (Disney) que também inaugurava as práticas de layout[3] e do storyboard[4] no processo de produção, processo que seria tomado por toda a indústria de cinema tanto de animação como de açãoviva. Com a junção desses avanços, o desenho Playful Pluto (1934) mostrava o primeiro personagem com a capacidade de pensar, consagrando assim a animação de personalidade (Lucena Junior apud Cruz, 2006).

Mesmo que o cinema tenha sido um campo importante para o desenvolvimento da técnica e da estética das animações, é com a TV, a partir dos anos de 1940, que o desenho animado é produzido em forte escala industrial, exigindo de seus criadores estratégias narrativas que amparassem na história e na personalidade, ao lado da preocupação com a técnica, que poderia viabilizar ou não a produção de desenhos animados, para que pudessem ter sucesso em relação à concorrência cada vez mais acirrada no mercado estadunidense.

Após o crescente sucesso do desenho animado nas telas de cinema, principalmente entre os mais jovens, as produções foram incentivadas e ganharam projeção de mercado. Com a chegada da TV nos lares, o incentivo para a criação de desenhos que estivessem no dia-a-dia da família foi significativo, levando a indústria de desenho do cinema a se voltar para a TV. E a primeira a despontar nesse mercado, até então quase inexplorado, foi a Hanna-Barbera Productions, com a sua primeira série Jambo e Ruivão (The Ruff and Reddy Show, 1957) ao lado das séries de grande sucesso como Dom Pixote (The Huckberry Hound Show, 1958) e Pepe Legal (The Quick Draw McGraw Show, 1959), passando a ocupar a programação prime time[5] na TV estadunidense, para em 1960 criar um dos seus maiores sucessos, Os Flinstones, que os levou a alavancar a produção, licenciando personagens para a produção de outros produtos como alimentos e brinquedos (Pereira, 2010, p.72). Dentro da competição do mercado de animação para a TV – especializada inicialmente pela Hanna-Barbera – a produção alavancou de tal forma que, dos desenhos produzidos na década de 1950 pelos EUA, nove séries foram exibidas no Brasil; e já na década de 1960 passam para cento e nove. (Pereira, 2010).

Entretanto, mesmo com a concorrência acirrada na indústria da animação, a companhia Walt Disney teve participação decisiva, capacitando até aqueles que se tornariam seus concorrentes, como William Hanna e Joseph Barbera. Desde quando teve seu primeiro estúdio de animação em Kansas City, onde criou Alice Comedies, inspirado no conto de fadas Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, diferentemente dos outros estúdios de animação, Walt Disney produzia e administrava seu próprio trabalho, sua companhia realizava todas as fases da elaboração – criação, produção, marketing, etc. – de um desenho animado (Pereira, 2010; Gabler, 2009).

Dentre outros exemplos, a Hanna-Barbera Productions e a Walt Disney Company nos mostram como se deu o crescimento da indústria de desenho animado nos Estados Unidos, sendo tidos como os criadores/desenvolvedores da versão moderna de desenho animado inserida no mercado internacional. No entanto, quase que paralelamente, os desenhos produzidos no Japão também se apresentam para o mercado em disputa crescente. Tendo o contato com o estilo Disney de animação, que era baseado na movimentação tanto dos personagens como do cenário (principio da realidade na animação), os desenhistas japoneses também fizeram parte importante do mercado de animação.

Segundo Pereira (2010), o maior expoente da animação japonesa pode ser considerado Osamu Tezuka que inovou ao adaptar as histórias em quadrinhos para as animações – criando cerca de setecentos mangás –, ou como se convencionou chamar no Ocidente, os animes, como Astro Boy (1963), que é considerado pela indústria de animação o precursor do gênero no Japão. Tezuka lançava a história em mangá (história em quadrinho) e em anime no Japão, para posteriormente exportar o desenho para os Estados Unidos. Criaria depois Ribon No Kishi (A Princesa e o Cavaleiro, 1953-1956), Black Jack, Adolf e Phoenix (Pássaro de Fogo, 1956-1989), um marco de audiência na TV brasileira entre 1973 e 1984 (Pereira, 2010).

No início dos anos 1960, no Brasil, a TV Paulista exibia o desenho Samurai Kid, um dos primeiros a mostrar a cultura japonesa como milenar, com seus ninjas e habilidades marciais. Nesse momento da formação da TV brasileira, os desenhos animados também chegavam, a partir de produtores independentes, incrementando a programação da TV. Além desse, outros animes como Ás do Espaço, Speed Racer, Tarô Kid e Homem de Aço (Pereira, 2010) também marcaram o início do Japão na animação do Brasil. No entanto, o desenho japonês que impulsionou a TV no Brasil para os animes foi o desenho dos anos 1990, Os Cavaleiros do Zodíaco, que rendeu para a Rede Manchete índices de audiência sem precedentes. Segundo Pereira, Os Cavaleiros do Zodíaco impulsionou uma massa de consumidores a submergirem tanto nesse desenho em si, como nos outros desenhos japonês, criando o mercado dos produtos licenciados desse desenho e abrindo o mercado no Brasil para este desenho e a para a própria cultura japonesa.

Como o desenho animado ganha proporções muito altas com a sua entrada no meio televisivo, diferentes companhias surgem já específicas para esse mercado, sendo o sucesso na TV que leva a animação para o cinema posteriormente. Nesse sentido, a Nickelodeon Studios é fundada primeiramente como canal de TV por assinatura para crianças em 1979, o primeiro do gênero, produzindo tanto programas de açãoviva como animações. Em 1991, lança seus primeiros desenhos animados, como Doug, Rugrats, os anjinhos e The Ren and Stimpy Show, que geram grande audiência e concorrem de forma direta com os desenhos das outras companhias. Devido ao sucesso de Rugrats na TV, a Nickelodeon consegue um estrondoso sucesso de audiência com o filme animado levado aos cinemas, se fazendo o primeiro estúdio a conseguir tanto sucesso quanto os estúdios Disney no cinema. Os desenhos da Nickelodeon se sobressaem por gerar um universo onde seus personagens, mesmo sendo crianças ou adultos fisicamente falando, detêm características de personalidade que não podem ser delimitadas, mas que podem se passar por crianças e em outros momentos por adultos, subvertendo a ordem inclusive de gênero, de acordo com a necessidade da narrativa.

As animações da Nickelodeon participaram da reconfiguração da produção técnica e estética descrita por Lucena Junior (apud Cruz, 2006), que se dá a partir da década de 1980, quando ocorreu uma reestruturação do processo de produção, na qual as novas tecnologias e a produção independente ganharam espaço na indústria, aliado aliadas à produção de animadoras mulheres e do maior uso de cores.

É na reconfiguração estética que os estúdios de animação da Nickelodeon se inserem, onde passam a produzir não somente açãoviva, mas animações capazes de concorrer de forma direta com os desenhos feitos pela Disney e outras concorrentes. Nesse sentido, o desenho animado de maior sucesso da Nick desde a sua criação, Bob Esponja Calça Quadrada (SpongeBob SquarePants), criado em 1999 por Stephen Hillenburg para a Nickelodeon Studios, apresenta essas novas disposições do mercado de animação, como o uso intenso de cores, aliando ora a noção de realidade da Disney de movimentação dos desenhos que se equiparasse com as dos homens, ora o uso do cenário estático.

Em entrevista, Stephen Hillenburg e os produtores do desenho nos mostram como se dá o processo de criação de um sitcom animado, desde a ideia inicial para se criar o Bob Esponja, até a aceitação dos estúdios da Nickelodeon em produzir o desenho. Logo após a faculdade, trabalhando no Instituto Oceânico de Dana Point, na Califórnia, Hillenburg – a pedido do diretor do Instituto Harry Helling – começa a pensar um desenho animado que fosse capaz de mostrar às crianças o mundo submarino. Inicialmente surge uma história em quadrinho chamada por ele de The Interdital Zone (1989)[6], onde se mostrava uma esponja do mar que nada se parecia com o atual Bob Esponja. Segundo Hillenburg, ele desejava criar um desenho que fosse capaz de demonstrar a vida marinha que se tinha contato nas praias da Califórnia, como os caranguejos, lulas e, inclusive, as esponjas naturais do mar – ser vivo que fica preso aos corais e suga nutrientes presentes na água –, é daí que surge a ideia de criar uma história em que uma esponja fosse personagem principal. De início, Hillenburg pensa na esponja do mar para a construção da personagem, no entanto, percebe o atrativo da esponja de cozinha para as crianças, desejando demostrar uma personagem inocente dentro de um universo nada parecido com o dessa personagem (Hillenburg, 2003).

Depois de The Interdital Zone (1989), onde vemos o protótipo do que viria a ser o Bob Esponja, Hillenburg faz uso de diversos storyboards para chegar ao personagem de Bob Esponja e ao mundo da Fenda do Bikini que conhecemos hoje. Segundo Boutin (2006: 46), no caso do desenho animado Bob Esponja, “as imagens são desenhadas a mão, escaneadas e no computador recebem toda a pós-produção, como a colorização, a animação e a inserção de áudio”. Nesse caso, mesmo que Bob Esponja não seja um desenho de TV em 3D, poderíamos dizer que há a junção do novo estilo de fazer animação, com as novas tecnologias de computação gráficas – onde tem sua consagração com Toy Story, o primeiro desenho em 3D, produzido pela Pixar em 1995 –, que são capazes de aprofundar a estética e dar uma maior realidade ao desenho e o antigo jeito de fazer desenho animado, na habilidade do desenhista representá-lo no celuloide.

Primeiro desenho de Bob Esponja (1998). Imagem extraída do documentário “The Origin of SpongeBob SquarePants”

Além da característica técnica do desenho animado – sem dúvida importante para a composição de uma animação –, outras características – de conteúdo, de linguagem e de expressividade das informações, por exemplo – são construídas e formam cada desenho animado criado no mercado. Nesse sentido, a seguir, trataremos da linguagem presente nos desenhos animados e da sua especificidade narrativa, centrando o desenho animado Bob Esponja Calça Quadrada na nossa discussão.

2. O problema conceitual da animação.

Diante de uma diversidade de técnicas de produção, do uso feito da animação ao longo da história – como curta-metragem, longa-metragem, TV e marketing ou de expressão artística –, e das próprias conceituações geradas por organizações e entidades, respondendo a interesses de produção, os conceitos de desenho animado se tornaram variados. Segundo Philip Kelly Denslow (1992) não se deve ficar preso à limitação teórica de conceituar animação somente como um conjunto de desenhos estáticos que recebem a ilusão de movimento. Antes do surgimento dos desenhos animados, o cinema de ação-viva também era considerado uma forma de animação (Aumont et al., 1995). Para o autor, os diferentes conceitos estão submersos em diversos meios, técnicas e objetivos de produção.

Junto à finalidade da produção, a animação também se forma devido aos materiais empregados tanto no tratamento dado ao conteúdo (Denslow, 1992), como na técnica por meio da qual o desenho ganha forma. Segundo Cruz (2006), além da animação de desenhos, também se encontram animação de bonecos, pinturas, esculturas e figuras digitai. Nesse sentido, as técnicas utilizadas nesses materiais dão origem a categorias diversas de animação, como a animação tradicional – rotoscopia – a animação digital, de recorte, a limitada, a captura de movimento, a stop motion e outras mais. No entanto, longe de esgotar essa discussão, a animação tomada por análise aqui neste trabalho, se refere a um conjunto de desenhos estáticos que recebem a ilusão de movimento (Denslow, 1992), que com o auxílio de diversos elementos técnicos, linguísticos e sociais próprios e de outros gêneros – como o cinema, os Contos de Fadas (desenho infantil) e a TV –, tem seu conteúdo narrativo formado, possibilitando assim diferentes especificidades, ora em diálogo, ora em separado, em uma mesma animação.

Dessa forma, os conceitos de animação cinematográfica podem ser vistos de forma dicotômica em duas vertentes, segundo Pilling (apud Cruz, 2006) são a animação tradicional e a animação abstrata. Na animação tradicional, muito próxima do cinema de ação-viva, o desenho animado é tomado por algo que conta uma história através da movimentação dos desenhos. Produzida em celuloide, este tipo de animação contém o que é chamado no meio de “animação de personalidade”. Estes seriam os desenhos comerciais. Já a animação abstrata diz respeito à animação como “arte gráfica em movimento”, dialogando com a experimentação de técnicas e formas diferenciadas de narrativas – filmes e curtas sem muito amparo comercial –, como os Fantasmagorie (Èmile Cohl, 1908), Vincent (Tim Burton, 1982), Alma (Rodrigo Blaas, 2009), La Dama y la Muerte (Javier Recio García, 2009) e o francês A Quoi Ça Sert L’amour (Louis Clichy, 1962).

Apesar de Pilling tratar dessas vertentes conceituais dentro da animação cinematográfica, tais vertentes também podem ser percebidas na face do desenho da TV, onde é perceptível o uso maciço de “animação de personalidade”, e por vezes da inovação técnica, através da economia de mercado que direciona a produção para o mais rentável. Dessa forma, os desenhos animados da TV se diferenciam dos demais desenhos do cinema a partir do seu formato narrativo e no tocante as estratégias midiáticas próprias da TV, que serão acopladas a produção do desenho, o caracterizando dessa forma. Com isso, o desenho animado é, neste trabalho, tomado como um gênero televisivo e, portanto, perceberemos a impressão de linguagem e de veiculação essencial a TV.

Cada gênero televisivo detém o que poderíamos chamar de um substrato social específico, de acordo com o público almejado. Conforme os telespectadores almejados, a técnica se direcionará para este ou aquele caminho, quer dizer, para a finalização do conteúdo simbólico que será visto pelo televidente. A técnica empregada na produção diferencia os gêneros da TV quanto a forma, mas não o diferencia em relação ao conteúdo simbólico. Isto é, a essência de cada desenho se encontra neste substrato social que é a formatação de um conteúdo para sua veiculação através de um meio técnico. Assim, o desenho animado da TV se centra inicialmente na sua produção para as crianças, desde os anos de 1930 e 1940, com os cartoons – um estilo de desenho animado consagrado pelos estúdios Disney desde Planes Crazy (1930) e  tido pelo senso comum como a forma geral de determinação do desenho animado, mesmo que não tome todas as características desse estilo de animação (Crafton, 2005) – no cinema e depois na TV. O desenho animado como gênero televisivo centra-se na sua especificidade infantil desde o início, mesmo que atualmente exista certo número de desenhos para o público adulto – como, por exemplo, Os Simpsons (1989), South Park (1997) e as animações pornográficas –, os de formato infantil ainda prevalecem nas programações das emissoras de TV. Isso se deve tanto a maior fatia do público de produtos animados serem crianças, como pela popularidade que este formato ganhou até mesmo entre adultos e jovens.

De forma simples, percebemos a atuação de personagens antropomórficos[7], a presença de especificidades narrativas, o campo do conflito bastante explorado através da dicotomia “bem” e “mal” e a fantasia, um dos pontos mais característicos do universo infantil (Bettelheim, 2007; Pacheco, 1995). Com o uso da fantasia, os desenhos animados da TV e do cinema se encontram-se livres para usar esse universo, pegando de empréstimo caracteres antes pertencentes aos contos de fadas. Já nos desenhos próprios para o publico adulto, a fantasia não é característica recorrente, antes se situam explicitamente em determinada cultura ou hábito – não que o desenho infantil seja impedido de se situar culturalmente por causa da fantasia.

O desenho animado que fora iniciado como infantil, mas atualmente é produto de reconhecimento também do público adulto, Bob Esponja Calça Quadrada faz uso do fantástico, diferindo em várias dimensões da realidade social. O ambiente da história se passa numa cidade no fundo do mar chamada de “Fenda do Bikini”, e mesmo que nem todos os personagens sejam marinhos, eles de alguma forma respiram. O personagem principal título do desenho – uma esponja – mora dentro de um abacaxi gigante de dois andares, todo mobiliado, e tem como vizinhos um polvo – Lula Molusco – e uma estrela do mar – Patrick Estrela. Além destes vizinhos, outros personagens são fixos, como o patrão de Bob Esponja – Siriguejo – e sua amiga, uma esquila um esquilo fêmea – Sandy – que mantém uma espécie de “redoma” de vidro sobre a cabeça que lhe permite respirar na água.

Mesmo ambientado no fundo do mar, o desenho – através do uso corrente de cores contrastantes e formas volumétricas – possui praias, casas com TVs e banheiros, algo que inegavelmente subverte toda a lógica do “real”, mas que reproduz alguns ambientes e permite a realização de práticas que fazem parte do nosso mundo cotidiano, aproximando assim o telespectador do universo simbólico do desenho. Bob Esponja trabalha como cozinheiro em um restaurante, chamado Siri Cascudo, e adora trabalhar; inclusive, devido tanto a sua ingenuidade quanto a falta de idoneidade dos outros personagens, ele é explorado, tanto pelo patrão, e eventualmente, por outros personagens do desenho.

De acordo com as categorias de animação sugeridas por Paul Wells (apud Cruz, 2006), o desenho animado Bob Esponja faz uso dialógico tanto da animação ortodoxa como da experimental, correspondendo assim a uma animação mais desenvolvimentista, oscilando entre as vertentes tradicional e abstrata da animação conceitual. A animação ortodoxa – animação tradicional – corresponde ao desenho feito em celuloide, “em que cada quadro é desenhado a mão, e a narrativa é estruturada sobre as noções de configuração, continuidade, forma narrativa, evolução de contexto, unidade de estilo, ausência (…) [do autor] e dinâmica de diálogo.” Na animação experimental – animação abstrata –, diferentemente da ortodoxa,

[a animação] é feita com outros materiais, com diferentes impulsos criativos e interesses estéticos, fora do contexto da produção de massa, estruturada sobre noções como abstração, não-continuidade, forma interpretativa, evolução de materialidade, multiplicidade de estilos, presença (…) [do autor] e dinâmica de musicalidade (Wells apud Cruz, 2006).

Já a categoria desenvolvimentista apresenta o diálogo entre elementos da animação ortodoxa e experimental, sendo o de tipo desenvolvimentista a animação mais comum atualmente. Dentro dessa categoria, relacionando elementos antes contrários, Bob Esponja é produzido através do uso de storyboard, onde cada quadro é desenhado à mão sobre celuloide. Hillenburg, criador do desenho, elabora o processo de roteirização juntamente com o storyboard, aí são apresentados todos os elementos do episódio, como se desenvolverá a narrativa, a trilha sonora e os demais sons utilizados, isto é, o próprio episódio é desenhado a mão. Juntamente com o storyboard, a transcrição (transcript), onde estão os diálogos, as expressões e as ações dos personagens escritos também são importantes para a composição do episódio.

Os episódios de Bob Esponja são estruturados a partir de noções de configuração dos personagens e das cenas, não havendo uma continuidade entre os diferentes episódios, embora se faça uso, uma vez ou outra, de algum tipo “noção de continuação” no final do episódio, que pode ou não ser efetivada nos episódios seguintes. Com a apresentação de uma história independente entre os episódios, o telespectador pode assistir a episódios aleatórios, pois mesmo que se faça referência a detalhes de episódios anteriores, o narrador e a própria história os explicam, deixando assim o episódio independente.

Conclusão

Permanecendo ainda a multiplicidade de estilos na maioria dos episódios, Bob Esponja mostra diferentes formas dos ambientes e dos corpos dos personagens, causando certa impressão de materialidade dessas formas. Apresentando uma evolução de contexto, e uma dinâmica de diálogo e de musicalidade, o desenho não deixa evidente a presença do autor. Dessa forma, percebemos que além da característica técnica, um desenho animado é formado por sua linguagem e por sua narrativa, amparado sob um substrato social que apresentará ao telespectador uma animação independente das demais.

No entanto, mesmo havendo características padrões, qualquer tentativa de delimitação conceitual do desenho animado se torna em si mesma incompleta, pois cada nova produção animada detém a possibilidade de subverter padrões de animação já postos, tornando assim, a subversão (social, técnica, artística, narrativa), a característica primeira do animado, principalmente do desenho animado.

Como anuncia Dennis (2003), o desenho animado apresenta a capacidade de subversão, se movendo entre o unir e o desconstruir de acordo com as situações as divisões contrárias, de humano/ animal, nu/ vestido, criança/ adulto, etc. Nesse sentido, o desenho Bob Esponja ora apresenta o protagonista como adulto, ora como criança, mediando esses dois polos contrários o tempo todo.

[1] Este movimento artístico, no qual Cohl fazia parte, combinava anarquia, buscando conceitos estéticos únicos, que posteriormente, segundo Cruz (2006) influenciaria movimentos artístico-filosóficos, como o dadaísmo e o surrealismo na França.

2 Utilizado nos estudos de animação para diferenciar o cinema tradicional do cinema animado, o termo “ação-viva” se refere aos filmes e séries de TV não-animados, com seres humanos e cenários “reais” na ambientação.

3 Layout, termo em inglês usado para designar a composição de um desenho, de como ele é apresentado e projetado.

4 Storyboard é um roteiro elaborado para apresentação de um projeto para a posterior produção de um filme, programa de TV, programa multimídia ou outra obra audiovisual, em que se apresentam de forma sequencial os quadros acompanhados de texto, mostrando como seriam cena a cena, além de informações técnicas, como efeitos visuais, efeitos sonoros etc. (Dicionário Eletrônico de Língua Portuguesa Aurélio, 2004). Criado pela Disney a partir d’Os Três Porquinhos, o storyboard visava resolver problemas de estrutura do desenho animado. Alfred Hitchcock foi o primeiro a usar essa técnica em filmes de ação-viva.

5 Prime time é chamada a programação televisiva com o melhor índice de audiência e com o maior número de investidores, nos Estados Unidos. Na TV brasileira é chamada de horário nobre.

6 Maiores detalhes acerca das criações estéticas em forma de desenho animado de Stephen Hillenburg que antecederam a criação de Bob Esponja podem ser encontradas no documentário “The Origin of SpongeBob SquarePaints”.

7 São personagens como objetos, animais ou monstros com características humanas.

Francisco Cleiton Vieira S. do Rego é graduando do 8º período de bacharelado em Ciências Sociais, da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN; Pesquisador-Bolsista do Programa de Educação Tutorial em Ciências Sociais – PETCIS, e, Membro do Grupo de Pesquisa de Estudos Culturais – GRUESC/UERN. http://lattes.cnpq.br/4438529628551741

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BETTELHEIM, Bruno. A Psicanálise dos contos de Fadas. 21. Ed. São Paulo: Paz e Terra, 2007. pp. 437.

BOUTIN, Renata. Aspectos pedagógicos do desenho animado Bob Esponja. Dissertação (mestrado em comunicação social). São Paulo: UMESP, 2006.

CRAFTON, Donald. Planes Crazy: Transformations of Pictorial Space in 1930s Cartoons. Cinémas: revue d’études cinématographiques, vol. 15, nº 2-3, 2005, p. 147-180. Disponível em: <http://id.erudit.org/iderudit/012324ar>. Acesso em: 22 nov. 2011.

CRUZ, Paula Ribeiro. Do Desenho Animado à Computação Gráfica: A Estética da Animação à Luz de novas tecnologias. Monografia de Graduação (Bacharelado em Produção em Comunicação e Cultura), Departamento de Comunicação Social, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2006. 150p.

DENNIS, Jeffery P. Queertoons: The dynamics of same-sex desire in the animated cartoon. Journal on media culture, 2003. Disponível em: <http://www.icce.rug.nl/~soundscapes/VOLUME06/Queertoons.shtml>. Acesso em: Nov. 22, 2009.

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PEREIRA, Paulo Gustavo. Animaq: almanaque dos desenhos animados. São Paulo: Matrix, 2010.

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    Renato

    Quem escreve isso ? é só um desenho !!! caraca, nao entendi nada !!!

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