Calafrios (David Cronenberg, 1975)

A aurora do cientista louco

Por Gabriel C. Correia*

Em longas de estréia geralmente se percebe o potencial de cada diretor para o que ele tem de melhor ou pior. Marcas “autorais” (utilizo o termo entre aspas dada a extensa discussão que tal afirmação depreende) já são percebidas, assim como o grau de habilidade do diretor nas diversas áreas de atuação que sua função pede, como decupagem, trabalho com os atores e etc. Quando o cineasta é promissor, mesmo os erros encontrados por causa da falta de experiência no assunto são relevados, sublimados por aspectos artísticos e/ou conceituais que o diferenciam de outros diretores de sua geração. Este é o caso de David Cronenberg.

Em seu filme de estréia, Shivers – Calafrios (Shivers, 1975), Cronenberg já demonstrava todo o potencial para o grande diretor que viria a se tornar com o passar dos anos. O filme narra uma bizarra psicose coletiva sexual causada por parasitas criados em laboratórios. Os tais parasitas se espalham adentrando qualquer orifício (qualquer mesmo!) de seus hospedeiros, e findam por se espalhar por um complexo residencial situado numa ilha próxima a Quebec, no Canadá.

O roteiro, de temática inusitada e inventiva, ficou três anos transitando entre Cronenberg e produtores, até que fosse viabilizada sua produção, visto que o cineasta não aceitava outro diretor para o projeto que não ele mesmo. O que, a princípio foi um problema, pois a desconfiança era muito grande em torno de um cineasta iniciante que só havia feito dois curtas-metragens totalmente “underground” em sua curtíssima carreira, Stereo, 1969 e Crimes of the Future, 1970. O próprio Cronenberg admite em entrevistas que Shivers foi sua escola de direção, e relata abertamente os diversos problemas encontrados por ele na realização do filme, desde dificuldades em lidar com o elenco, até uma autocrítica feroz a respeito de alguns enquadramentos, que para ele não ficaram adequados. Enfim, em 1975 finalmente o projeto foi adiante e o filme, de orçamento barato (para os patamares de lá, obviamente), foi rodado em duas semanas.

O resultado fílmico obtido por Cronenerg não é genial. A fotografia, de Robert Saad, dada à falta de recursos e tempo, não é perfeita, há vários planos sub-expostos, outros estourados, mas salvam-se as seqüências noturnas, talvez pela adequação à temática mais sombria do filme. A montagem, de Patrick Dodd, funciona bem, administrando de maneira eficiente as tensões nas cenas e no conjunto geral do filme. Um grande diferencial são os efeitos especiais e a maquiagem, a cargo de Joe Blasco, que consegue, com poucos recursos e muita criatividade, dar vida aos parasitas e tornar as seqüências com eles verdadeiramente repugnantes.

Como dito anteriormente, o próprio Cronenberg afirma que seu primeiro filme foi praticamente sua escola de direção, e isso é perceptível em alguns momentos do filme, como numa das cenas iniciais em que o Dr. Emil Hobbes, o cientista criador das parasitas, ataca sua amante no apartamento dela. Nessa cena, escolhas infelizes do diretor resultam numa seqüência quase que risível.

Entretanto, se alguns defeitos saltam a olhos vistos para qualquer espectador leigo, o mesmo acontece com as virtudes da obra. A primeira seqüência do filme, com os slides sendo projetados sob os créditos iniciais enquanto uma voz over faz uma propaganda do complexo habitacional e uma música de fundo sugere uma pequena tensão, é quase hipnótica, prende imediatamente a atenção do espectador e já desperta sua curiosidade quanto ao que virá a seguir. Outro grande momento do filme é a seqüência na piscina do prédio e a final, com os carros saindo da garagem e o anúncio de rádio ao fundo, mais uma amostra do potencial do diretor que ali surgia transformando em imagem e som a estranheza do mundo como ele a via. Ressaltam-se também as cenas com as parasitas, sempre muito interessantes e bizarras, e toda a história por trás das mesmas, com a explicação sobre sua criação e depois a revelação da real intenção do cientista que as criou. O trabalho com o som, por Danny Goldberg (supervisor de som) e Ivan Retman (supervisor musical) também merece destaque, e acaba sendo, assim como os efeitos especiais, um dos pontos altos do filme, garantindo a tensão ideal para cada cena e mantendo sempre um certo clima de estranheza que combina muito bem com a história contada.

Vale ressaltar também as primeiras marcas do estilo Cronenberg já perceptíveis em Shivers. A mistura de gêneros é o que se vê já na sinopse do filme. As parasitas criadas em laboratório, ao atacarem os personagens do filme, revelam um encontro entre terror e ficção através da utilização de um cientificismo voltado para a obtenção de momentos que causem medo e estranhamento. Tal direcionamento narrativo e estético acrescenta ao gênero terror uma nova série de assuntos utilizáveis, deixando de lado os velhos clichês (e de certo modo criando outros), e também dialoga com temáticas similares em obras posteriores do diretor, como Scanners – Sua mente pode destruir (Scanners, 1981) e A mosca (The Fly, 1986), apesar do segundo caso não investir tanto no gênero terror.

Por outro lado, a obsessão pelo corpo, estética e metaforicamente, acompanha praticamente toda a obra do cineasta, evidenciando uma questão maior na obra do diretor no que diz respeito à tentativa de propor uma analogia entre o físico, biológico e o mental, racional. Várias obras se enquadram nessa categoria, desde os já citados Scanners e A mosca, passando por Gêmeos – Mórbida semelhança (1988), M. Butterfly (1993), Crash – Estranhos Prazeres (1996), eXistenZ (1999) , até os recentes Marcas da Violência (2005) e Senhores do Crime (2007).

Todas essas questões já estavam presentes em Shivers, e embora ainda não desenvolvidas plenamente já eram evidentes no roteiro, nas escolhas da decupagem, na atuação dos atores e até mesmo na estratégia de divulgação do filme, que o vendeu como um filme tipicamente de terror quando no fundo o que se via na tela era uma obra bem mais aberta quanto a interpretações que pudessem ser feitas sobre a mesma.

No final das contas, a estranheza, a mistura de gêneros (terror e ficção), a obsessão pelo corpo, e outras características que futuramente seriam comuns ao universo ficcional de Cronenberg, já estavam presentes em seu primeiro longa. Porém o mais importante ao se analisar tal obra é a constatação de que além dos erros que possam ser encontrados numa obra de diretor iniciante, em Shivers o que mais espanta é a já perceptível habilidade de um grande diretor como David Cronenberg em lidar com todo um universo particular de questões e metáforas visuais, o que no decorrer de sua carreira seria fundamental para sua contribuição para a renovação de um gênero tão rico como o terror.

*Gabriel C. Correia é graduando em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

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Este post tem um comentário

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    Romulo

    Sou fan de Cronenberg, ele parece ter uma capacidade única de ver aquela “marca” muitos anos antes que elas estejam “massificadas”, seja em Calafrios, Videodrome ou A Mosca. Gostei do texto, bem na medida, sem o pedantismo dos “especialistas” mas também sem deixar de dar o valor que a obra merece com textos demasiado superficiais.

    Com respeito a “marca”, outro gênio é Burroughs, que as vezes me parece fornecer muita matéria prima para Cronenberg que já fez um filme adaptado de Naked Lunch, um misto de biografia do autor com sua obra.

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