Caminhos da Produção audiovisual contemporânea: arte, mídia e tecnologia digital

Carlos Eduardo Dias de Araújo possui graduação em Comunicação Social – Publicidade e Propaganda pela Universidade Federal de Pernambuco (2005). Desenvolve pesquisa na área de Comunicação, com ênfase em Estética e Cultura Midiática, investigando os videoclipes e suas formas de produção. Atualmente faz mestrado em Comunicação na UFPE.

Resumo: Na busca de compreender as características da arte na transição do séc. XX para o séc. XXI, deve-se empreender pesquisas que levantem questionamentos acerca da presença da mídia e da utilização das diversas tecnologias de produção da imagem. Este artigo busca lançar reflexões acerca da presença da tecnologia digital na produção imagética ao concentrar-se no uso da computação gráfica na expressão estética. A intensa presença da mídia no cotidiano da sociedade e na produção artística também faz parte do nosso campo de reflexão. Por fim, esta investigação procura compreender como a mídia, a computação gráfica e a simulação operam na criação artística contemporânea através do videoclipe de animação digital que abrange estes três domínios da expressão estética atual.

1. A expressão artística na sociedade contemporânea

A partir das sociedades modernas e seus avanços no campo das ciências, a associação a rituais religiosos comuns à Pré-História e à Idade Média desaparece da criação artística. No séc. XIX, os avanços tecnológicos oriundos da Revolução Industrial transformam o campo das artes ao aproximar da produção estética os meios técnicos de criação e reprodução da imagem. A disponibilização desses novos meios, códigos e técnicas para a produção imagética, promoveu uma mudança na esfera da arte, que, desde então, passou a recorrer aos recursos tecnológicos para sua criação e execução.

A produção industrial de imagens se enquadra em um contexto de conhecimento e de economia que revela suas associações com a ciência, originando processos de reconstituição, intercâmbio, montagem e colagem, possibilitados pelas tecnologias associadas à fotografia, ao cinema, à televisão e ao vídeo. A criação industrial de imagens baseia-se na produção maquínica de uma matriz de representação e a conseqüente reprodução em massa de cópias. A fotografia e o cinema, junto à gravura, correspondem às “imagens técnicas” (MACHADO, 1994, p. 09), por produzirem suas representações imagéticas a partir de ferramentas que unem a produção de imagem ao uso de dispositivos técnicos. Na produção pós-industrial, são utilizados processos e dispositivos de natureza numérica (infografia e computação gráfica), também chamada digital, e fotônica (holografia) para a produção de informações visuais, verbais e sonoras, que são exibidas através dos mesmos aparatos técnicos utilizados na produção (Idem).

Jonathan Crary (1990) afirma que o rompimento com as convenções seculares renascentistas na percepção e representação visual ocorreu no início do séc. XIX através de aparatos técnicos que operaram transformações econômicas, sociais, tecnológicas e culturais, cujo paradigma é o estereoscópio. Para ele, as transformações empreendidas pela fotografia são decorrentes das novidades técnicas surgidas nas décadas de 1820 e 1830. Essas mudanças foram além da estética e da técnica, atingindo as práticas sociais e o conhecimento científico, reorganizando a posição do observador e a experiência imagética. Para Crary, as transformações provocadas pelas técnicas de produção imagética ocorrem, portanto, antes do surgimento da fotografia no final do séc. XIX.

Durante o séc. XX ocorreram mudanças na arte que requisitaram a transformação da compreensão clássica da expressão artística até então estabelecida. A inserção das máquinas produtoras de imagens não apenas transformou a prática artística como também provocou alterações no pensamento da arte. Benjamin (1994 [1936]) considera que a reprodução técnica reconfigurou a arte após as investidas que a fotografia e o cinema operaram sobre a expressão artística. Desde o seu surgimento, ambas as expressões geraram uma alteração no estatuto da arte que passou a compreender também os domínios das “artes tecnológicas”. Couchot (2003, p. 19) afirma que o surgimento de uma técnica não é fator determinante para o surgimento de uma nova forma de arte, mas a técnica impõe diretrizes que moldam uma nova percepção e oferece condições para uma nova lógica figurativa, que pode gerar uma nova expressão artística.

A fotografia desempenhou um importante papel na automatização da produção de imagens, pois por meio de um dispositivo técnico executavam-se as operações para a criação artística. Em seu início, a imagem fotográfica possuía um caráter realista e detalhista do mundo que não era encontrado na pintura. Ao captar o momento efêmero num suporte duradouro, ela devolvia vida ao instante fugidio ao mesmo tempo em que o representava com exatidão. A reprodução técnica afetou também a autenticidade da obra, pois se tornava uma tarefa impossível a determinação da cópia e do original nas artes reprodutíveis (BENJAMIN, 1994 [1936], 167-169). Porém, a esfera da autenticidade escapa à reprodução técnica por não mais ser um valor de distinção das obras.

As artes reprodutíveis transformaram o testemunho histórico das obras que lhes conferia autenticidade através do valor de tradição (Idem, p. 166-168). Por permitirem uma atualização constante a partir da reprodução técnica, as obras não mais carregavam em si as marcas da história e das mudanças ocorridas, perdendo o “aqui e agora” de sua produção e, conseqüentemente, sua autenticidade como objeto artístico (Idem). Na fotografia e no cinema, exemplos, a questão do testemunho histórico é transferida da materialidade da obra para outros níveis como o registro de um acontecimento que não mais voltaria a se repetir, seja ele de importância histórica ou apenas trivialidade do cotidiano, entre outros. Fotografia e cinema despertaram o mundo das imagens para o caráter real das representações, pois com o registro de um momento ou de determinado período tornou-se possível o conhecimento minucioso dos instantes representados.

As tecnologias da televisão e do vídeo darão mais um passo na automatização dos processos de criação e reprodução das imagens. Philippe Dubois (2004, p. 46) considera que “o que especifica a maquinaria televisual é a transmissão”, entendida aqui como a exibição à distância de imagens de uma estação transmissora para uma receptora, em que ambas possuam os aparelhos necessários para completar essas operações. A imagem da televisão e as técnicas do vídeo coletivizam as imagens ao permitir que diferentes lugares em diferentes momentos assistam a uma mesma representação imagética. A transmissão ao vivo da TV baseia-se na sobreapresentação[1] (COUCHOT, 2003, p. 82) e o advento do videoteipe permite a reprodução de imagens em um espaço-tempo distinto daquele em que acontece a transmissão da imagem. Esses dois aspectos permitem uma intensificação da percepção do real através das imagens das mídias por passarem a sensação de que exibem o real exatamente como ele é no momento da transmissão.

No último quarto do séc. XX, o desenvolvimento da computação gráfica gerou um produto de forte impacto, a imagem digital: produzida a partir de cálculos numéricos, ela instaura uma nova ordem na representação ao eliminar a presença de um referente a ser registrado. Essa nova poética da imagem de síntese constrói as representações a partir de estudos de comportamento dos objetos ou pessoas tendo por base ciências como a matemática, biologia, física, química, medicina, psicologia, aproximando um pouco mais a criação artística do conhecimento científico.

As intensas relações entre arte, mídia e tecnologia provocaram a definição da arte além do seu campo tradicional, institucionalizado e legitimador (GIANETTI, 2002). Assim, a partir dos anos 1960, a reformulação dos domínios do seu conceito tornou-se um debate sempre na ordem do dia e constantemente transformado devido ao surgimento incessante de novas aplicações das tecnologias na arte. Atualmente, a arte se destaca por ter rompido com antigas formas de expressão, expandindo-se para novos espaços da vida social impossibilitando desse modo uma delimitação do seu alcance (Idem). À medida que amplia sua presença na sociedade e que diversifica suas manifestações, a arte produz uma situação na qual a legitimação é um tema recorrente devido à pluralidade e hibridização das obras artísticas. Atualmente, a arte se encontra em um momento em que tudo pode se tornar arte devido à falta de critérios gerais para a sua delimitação.

O desenvolvimento tecnológico – especialmente a miniaturização dos dispositivos e sua disseminação e barateamento de custos – permitiu que o cotidiano dos indivíduos fosse tomado pelas máquinas e, principalmente, pelas mídias. Essa nova realidade alterou as relações sociais e as maneiras de difusão dos produtos culturais. Aumont (1998) destaca que atualmente a arte está em qualquer parte, seu centro e sua periferia não podem ser delimitados com segurança. Esse fato é reflexo da disseminação das tecnologias midiáticas na sociedade e a capacidade que elas têm de incorporar a expressão artística, seja em forma de códigos para serem utilizados em seus formatos ou em forma de difusão dos produtos culturais. Os museus também exercem influência nessa nova configuração da arte, pois eles passaram a aceitar progressivamente mais gêneros, formatos, dispositivos e práticas, como se a sua intenção fosse a de abolir sistematicamente a maior quantidade possível de fronteiras entre o espaço institucional do museu e as práticas artístico-tecnológicas da contemporaneidade (AUMONT, 1998, p. 286-288). Fica clara, então, a importância do impacto da tecnologia na prática artística e no arranjo social durante o séc. XX.

As observações feitas por Benjamin acerca da prática artística frente aos novos meios tecnológicos foram fundamentais para os trabalhos de diversos teóricos do séc. XX, que procuraram entender os comportamentos deste fenômeno. O autor tornou possível o desenvolvimento de um pensamento a respeito da expressão artística constituída por e através dos recursos tecnológicos provenientes das mídias e da indústria do entretenimento.  Machado (2007, p. 7) denomina “artemídia”[2] a utilização das técnicas e dos canais de difusão das mídias na proposição de produtos que possuam qualidade artística, mas ele também ultrapassa a conceituação meramente tecnológica e busca investigar a rede de complexas combinações e contaminações executadas entre arte e mídia a fim de compreender a dinâmica existente entre os meios de comunicação e a arte.

A utilização dos meios de comunicação na expressão artística é vista como uma característica inerente à arte: a de sempre utilizar os meios técnicos de seu tempo. Portanto, a fotografia, o cinema, o vídeo e o computador seriam os representantes da sensibilidade artística ao longo do século XX. Podemos notar, desta forma, que as artes reprodutíveis possuem um aspecto paradoxal, pois ao mesmo tempo em que representam um produto resultante de uma expressão estética, fazem parte da indústria do entretenimento de massa através de seus materiais ou veículos de exibição/difusão, muitas vezes para propor-lhes uma alternativa crítica.

Machado (2007, p. 17) destaca que a arte não se torna partidária das práticas da indústria do entretenimento apenas por ter sido criada no seu interior, pois ela pode estar na direção contrária dos modelos econômicos capitalistas que regem as mídias ao tematizar e discutir os seus modos de funcionamento, produzindo uma “metalinguagem da mídia” (Idem). A arte pode se valer dos meios de comunicação de massa para conduzir um debate sobre o seu próprio funcionamento ou sobre o universo de signos e códigos relacionados a eles, empregando críticas e propondo caminhos qualitativos para mudanças.

O desvio das destinações do projeto tecnológico que a produção artística empreende ao se inserir nos processos industriais das máquinas utiliza brechas abertas pelos dispositivos que permitem ao artista dar-lhes novas destinações. Os artistas fornecem conteúdos para essas máquinas e a inserem na dinâmica da cultura ao explorar suas propriedades tecnológicas e estendem as transformações destas para o campo estético ao alterar a percepção e sensibilidade humana por meio da máquina (MACHADO, 2001).

A artemídia é um sintoma da cultura contemporânea, na qual a distinção entre práticas artísticas e midiáticas torna-se impossível. Desde a dissolução das fronteiras entre alta arte e cultura de massa empreendida por diversos artistas e movimentos artísticos a partir da metade do séc. XX, empreender uma distinção dos níveis de cultura é uma tarefa traiçoeira e delicada, pois as mídias e a arte estão bastante imbricadas para que seja possível uma determinação segura de seus domínios nas expressões artísticas contemporâneas[3].

Arlindo Machado (2007, p. 26) utiliza o pensamento de Walter Benjamin para apontar que a prática artística que opera no contexto das mídias requer que sejam reformuladas as noções de arte e sensibilidade estética que se adéqüem aos novos contextos contemporâneos. Entretanto, a definição de uma arte das mídias está distante de um consenso, pois os produtos dos meios de comunicação são freqüentemente acusados pelos tradicionalistas da prática artística de serem superficiais e descartáveis (Idem, p. 24), sendo incorreto, nessa perspectiva, ser denominado arte. Os realizadores e entusiastas da artemídia alegam que “a demanda comercial e o contexto industrial não necessariamente inviabilizam a criação artística, a menos que identifiquemos a arte com o artesanato ou com a aura do objeto único” (Idem). Dessa forma, eles sugerem que a artemídia é produto de um momento histórico em que a qualidade artística não é comprometida por surgir em meio a um ambiente no qual os artistas estão desenvolvendo um posicionamento crítico. Machado (Idem, p. 30) aponta que a arte ao sair de seus espaços tradicionais e legitimadores passa a “enfrentar o desafio da sua dissolução e da sua reinvenção como evento de massa”.

Ao encontrar nos meios tecnológicos um novo caminho de expressão e a vinculação com diferentes práticas culturais, a artemídia passa a necessitar gradativamente de uma nova sensibilidade não apenas no nível da fruição, mas, principalmente, na compreensão crítica das transformações que os meios tecnológicos promoveram, refletindo, por conseqüência, no estatuto da arte. A investigação das imbricações entre arte, tecnologia e mídia nos fornecem ferramentas de compreensão dessas mudanças e os constantes avanços da prática artística contemporânea. A intenção de subverter o uso massivo e pouco elaborado das imagens comerciais dos vídeo-artistas desejava atingir um público que consumia aqueles produtos de uma maneira nova até o momento e libertar a imagem de seus usos e concepções tradicionais na tentativa de inserir um repertório oriundo das experimentações artísticas na audiência (GIANETTI, 2002).

Edmond Couchot (2003, p. 15) propõe a expressão “experiência tecnestésica” para abranger os domínios técnicos e perceptivos referentes às imagens. Podemos identificar, então, que esta perspectiva nos fornece instrumentos para evitar um determinismo tecnológico ao propor uma relativização do impacto do surgimento de novas técnicas de produção imagética.

Segundo Barbosa Júnior (2005), a popularização do computador na década de 1980 e o constante aprimoramento de sua capacidade de resposta às tarefas favoreceram o desenvolvimento de uma arte digital com potencial de desenvolver-se à medida que existam máquinas capazes de suportar as tarefas requeridas pela imaginação dos artistas. O autor considera, ainda, que o desenvolvimento da total capacidade da arte digital se dará através do

“aperfeiçoamento e acessibilidade dos artistas às tecnologias desenvolvidas nos anos 1970, que, enfim, irão permitir a transposição para a computação 3D dos princípios artísticos tradicionais formais e mecânicos: a linguagem da arte” (Idem, p. 345).

Frank Popper (In PARENTE, 1993) afirma que a partir da tomada de consciência da revolução causada pela inserção das tecnologias do computador, das telecomunicações e do audiovisual na vida cotidiana é possível

“falar de uma arte da tecnociência, de uma arte em que intenções estéticas e pesquisas tecnológicas fundadas cientificamente parecem ligadas indissoluvelmente, e em todo caso, se influenciam reciprocamente” (Idem, p. 203).

O novo perfil do artista articula a prática criativa a um pensamento técnico-científico que lhe permite a experimentação e a criatividade no campo da arte com o uso de dispositivos técnicos. O desenvolvimento tecnológico e o seu uso pela prática artística mantêm uma relação de influência mútua: novas possibilidades desenvolvidas em laboratórios pela ciência permitem novos horizontes de expressão e novas formas de percepção ao mesmo tempo em que demandas da tecnologia surgidas no campo da arte puderam ser incorporadas pela utilização industrial dos dispositivos técnicos. Essas transformações, ocorridas a partir do início do séc. XX, atingiram também o âmbito da fruição estética, pois a percepção também se modificou devido às novas modalidades de apresentação a partir das máquinas e dos recursos expressivos contidos em seus programas, que deram outra dimensão à representação imagética.

2. A instauração de novo paradigma da expressão artística: o computador e a síntese de imagens

A introdução do computador na criação artística afetou de maneira intensa todos os estágios da produção da imagem. O seu maior impacto se deu no campo da materialidade ao transformar textos, imagens e sons em código numérico, aproximando a arte da linguagem, tratando-a como informação. Esses aspectos das imagens produzidas através de suportes digitais dão origem a novas formas de representação que deslocam a relação olho-imagem-objeto e inauguram poéticas sintéticas e numéricas ao prescindir da presença do objeto durante a representação, tornando o dispositivo técnico um elemento do processo criativo (PLAZA & TORRES, 1998).

A crise que a computação causa ao código fotográfico expande-se e influencia a compreensão da realidade cotidiana, pois as novas imagens produzidas são estruturas lingüísticas e matemáticas sem contexto sócio-cultural nem história, pois existem apenas no ambiente do computador. Ao deixar de lado a referência imediata de um mundo físico e tátil, a imagem está mais no nível da mediação conceitual da estrutura (MACHADO, 2001). Assim, a representação desloca do campo referente à visibilidade para o campo do conhecimento de leis que estruturam e regem o mundo, gerando assim um “realismo conceitual” que põe na ordem do dia novas modalidades da imagem e a ruptura com o código fotográfico (PLAZA & TORRES, 1998; MACHADO, 2001). O referente do mundo físico é, muitas vezes, substituído por “modelos de memória” dos softwares de computação gráfica (MACHADO, 2001). O realismo conceitual faz uso do conhecimento científico a respeito do comportamento e da transformação dos objetos para construir suas matrizes digitais que darão origem às imagens, produzindo uma idéia utópica do controle absoluto da produção da imagem e de seu resultado como representação através da linguagem matemática.

O papel operativo essencial que o cálculo numérico possui na imagem digital põe em discussão o realismo destas representações. Por se basear na aparência fenomenológica das estruturas, essa iconografia surgida com o código binário dá origem a uma realidade simulada, composta por modelos e imagens partidárias do realismo científico da fotografia (Idem). A representação passa a destacar e a sublinhar os códigos e signos que encontramos no mundo real e geram uma realidade simulada mais real do que a própria realidade.

Com a descrição exata e rigorosa dos fenômenos do mundo pela representação numérica, a simulação busca a substituição do real por modelos lógico-matemáticos (MACHADO, 2001). A simulação é capaz de gerar um real a partir de modelos sem uma realidade imediata (BAUDRILLARD, 1991). Dessa forma, ela produz um real distinto da experiência cotidiana e da cópia técnica. Esta diferente dimensão do real é uma interpretação formal, unificadora, racional, programada, na qual não existe o acaso e a desordem como formas espontâneas de organização. A máquina é responsável por todas as decisões das imagens. Ela lhes dá ordenação ou mesmo um caos previsível a partir da programação. A simulação também se caracteriza por experimentar o mundo através do campo simbólico, pois o real simulado nos permite investigar os sistemas que compõem o real através dos signos (Idem).

Para Jean Baudrillard (1991), a simulação é a produção de um real sem origem nem realidade, no qual acontece a eliminação de qualquer referencial e a substituição deste por signos extraídos do conhecimento de uma da realidade existente. Ela perde conexão com qualquer realidade, pois é o seu simulacro puro – destituído de essência e qualidades do real. Para o autor, a simulação é a responsável pela estruturação da hiper-realidade e uma de suas principais origens. A síntese numérica possui um papel importante neste processo por permitir a construção de modelos com base na tentativa e erro, na combinação de possibilidades de sua aparência. É ainda importante por gerar um hiper-espaço sem atmosfera. Ainda segundo Baudrillard (Idem), a simulação diz respeito à ausência de um mundo referencial para a representação que permaneça existente após a produção ou o consumo das imagens. Ela não busca, assim, dissimular a ausência de materialidade, mas celebra esta falta oferecendo ao indivíduo novas imagens que acarretam em novas formas de olhar, de fruição e novos conceitos de beleza (MACHADO, 2001). A imagem de síntese não procura fingir ou imitar o real, mas busca se tornar o real em si, no qual a simulação precede o referente. Baudrillard (1991, p. 9-10) aponta que simular é pôr em questão a “diferença do verdadeiro e do falso, do real e do imaginário”. Para Couchot (2003, p. 173),

“tudo se passa então como se a simulação numérica engendrasse a aparição de uma outra dimensão do real, bem diferente de uma cópia, de uma representação ou de uma duplicação: um análogo purificado e transmutado pelo cálculo”.

É através do “análogo numérico do mundo” que Couchot encara as relações que as imagens mantêm com os indivíduos e com aquilo que elas representam, ao participarem de um processo de desreferencialidade ao oferecer imagens numéricas ao mundo, alterando e questionando os processos de semelhança e representação.

A imagem numérica aparenta ter dissolvido a questão da analogia (BELLOUR In PARENTE, 1993) em um afastamento entre o sentido e a semelhança, ou seja, a tecnologia digital não elimina a impressão de analogia da imagem, ela a reconfigura através de um afastamento entre o que ela representa (o real imaginado) e aquilo que ela se torna (a representação característica do suporte digital).

A imagem numérica se aproxima da representação característica do foto-realismo da pintura ao adotar uma simulação que toma o código fotográfico como meta de realização (MANOVICH, 2001). A adoção do código fotográfico como parâmetro de representação se deve à crença na representação fiel que a câmera fotográfica produz da realidade. Ao transformar em cálculos e operações matemáticas os códigos de representação da realidade, a simulação intensifica uma apreensão de um real que provavelmente não poderia ser captado pelo olho humano ou pelo mecanismo ótico da fotografia, cinema ou televisão.

O realismo codificado das imagens baseado nas aparências dos fenômenos tende a produzir um hiper-realismo, que homologa e hiperboliza os códigos utilizados para a representação de um real (PLAZA & TORRES, 1998). Essa ênfase nos signos gera uma realidade cujo sistema de códigos está descolado de referência ou sem adesão a um referente. As imagens hiper-reais não deixam de remeter à existência do objeto, que passou a ser precedido pela sua construção simulada (BAUDRILLARD, 1991). Dessa forma, um dos principais efeitos das imagens sintéticas é a construção de uma hiper-realidade baseada na dimensão simbólica.

Baudrillard (1996, p. 96) afirma que o hiper-real é resultado do processo de reprodutibilidade, no qual o “real não é somente o que pode ser reproduzido; é igualmente o que é sempre já reproduzido”. Ele se configura como uma construção e circulação de signos resultantes de operações de representações desde o início inseridas na simulação. Ele ainda considera que o real incorporou a dimensão simuladora do hiper-realismo, na qual não é possível a diferenciação entre representações e realidade. A simulação derrubou as delimitações que tornavam as experiências reais das estéticas e integrou estes dois domínios.

A imagem numérica aproximou-se, desde o seu surgimento, da animação, numa tentativa de integrar o movimento das estruturas aos seus modelos matemáticos (COUCHOT, 2003). Na animação, os processos de automatização da iluminação, da transformação e comportamento das estruturas e das texturas passaram a exigir informações desses campos durante o deslocamento dos objetos. Com isso, as imagens digitais passaram a necessitar de algoritmos e programações mais avançadas para obter um bom desempenho das máquinas e das representações.

Devido à forte ligação que a animação mantém com o cinema, a sua expressão em meio computadorizado também reproduziu alguns aspectos característicos do cinema de animação. Com a possibilidade de criação de imagens realistas a partir do cálculo numérico, o realismo cinematográfico foi intensamente explorado pelas imagens digitais. Era possível, então, alcançar o que a animação tradicional nunca conseguira: a representação exata e minuciosa dos movimentos dos indivíduos e dos objetos. A propagação desse estilo hiper-real das imagens é decorrente das possibilidades surgidas com o desenvolvimento das pesquisas e estudos das leis físicas e comportamentais das estruturas ao longo da década de 80 e 90. É importante destacar que a animação digital 3D se distancia do desenho animado tradicional por perder a linha de contorno que lhe dava limite (COUCHOT, 2003). Essa linha só está presente nos desenhos em duas dimensões e destaca as transformações pelas quais ele é submetido ao longo do tempo e do movimento.

Por outro lado, a animação resguardou um espaço de resistência que evitava o realismo cinematográfico em suas produções. Esse distanciamento é decorrente da dinâmica artística, que procura subverter e retorcer os aparatos técnicos de representação. O aspecto mais comum dessa visão da animação digital é a exploração do exagero e da caricatura da constituição das imagens como forma de personalização e expressão das mentes criativas existentes por trás dos desenhos.

Ao considerar estas questões levantadas acerca dos parâmetros originados com o desenvolvimento da computação gráfica e considerá-los a partir de sua penetração na vida cotidiana, visualizamos transformações importantes não apenas no campo da produção, mas também na fruição dessas imagens. Estamos sentindo os primeiros efeitos e procurando registrá-los para compreender como esta dinâmica particular do final do séc. XX está se comportando.

3. O afeto tecnológico em All Is Full of Love

A música All Is Full Of Love foi o quinto single do terceiro disco da cantora islandesa Björk, Homogenic, e aborda a imprevisibilidade do amor. A música possui acompanhamento de harpas e de instrumentos de orquestra criando um universo sonoro grandioso que mistura tradição e modernidade. O videoclipe foi dirigido por Chris Cunningham e promoveu a música em um formato inédito: o DVD-single, que consiste numa mídia contendo a música e o videoclipe em formato DVD. (http://br.youtube.com/watch?v=EjAoBKagWQA)

Os robôs do vídeo foram desenhados pelo próprio diretor e não executaram nenhum movimento durante as gravações. Toda a ação do vídeo foi construída através de computação gráfica, modelagem e animação em 3D. O rosto da cantora foi inserido através de composição[4].

Em All Is Full Of Love, Cunningham parte dos sons contidos na música que remetem à atividade industrial para servir como ponto de partida para o universo conceitual do clipe. Nele, a maior inquietação exibida se refere às mesclas ocorridas entre o mundo orgânico e o robótico sendo descrita pelo diretor como “kama sutra meets industrial robotics[5] (PROBST, 2000). Ao aliar afeto e tecnologia, o diretor amplia o espectro de seus questionamentos para as configurações da sociedade contemporânea altamente dependente da tecnologia em suas diversas atividades. Assim, ele aborda não apenas o desejo do indivíduo de viver intensamente um relacionamento amoroso, mas também nos leva a problematizar a influência que os dispositivos tecnológicos exercem sobre os indivíduos.

O clipe se estrutura de uma maneira linear e descritiva ao apresentar os componentes do ambiente aos poucos e não possuir uma trama paralela em outro espaço-tempo, pois todo o discurso se encontra no cenário que é mostrado pelas imagens. A princípio, é mostrada a estrutura física do ambiente e em seguida, a figura do robô é destacada – personagem principal e que evoca a presença de Björk por possuir um rosto com feições semelhantes às da cantora. Também são exibidas as máquinas e suas operações e intervenções feitas no corpo do robô. Após este momento, somos apresentados ao segundo personagem que possui um corpo completo, sem aberturas na estrutura como acontece com o primeiro. Este segundo robô também possui traços faciais semelhantes à Björk. O momento da chegada deste segundo personagem marca o direcionamento do clipe para seu fim. Neste instante, eles iniciam uma espécie de diálogo utilizando a letra da música para, em seguida, envolver-se fisicamente, resolvendo imageticamente o tema da canção. No fechamento do videoclipe, deduzimos que a imagem volta ao local do início, mas não vemos exatamente as mesmas cenas.

A câmera executa poucos movimentos no espaço do clipe, mais especificamente na abertura e no seu fechamento. O conhecimento do cenário e dos detalhes dos elementos que compõem a história é feito através de cortes secos que em close-up ou plano médio nos mostram os acontecimentos. Os enquadramentos de primeiro plano e de close foram posicionados em momentos particulares para ressaltar as figuras dos robôs, das máquinas e dos processos de construção ou conserto de uma das personagens. Devido à ausência de cores, a fotografia ressalta o contraste do branco gélido das superfícies das máquinas e o preto intenso de suas engrenagens. A iluminação do ambiente é composta por lâmpadas fluorescentes que contribuem na criação de um perfil de laboratório para aquele ambiente.

A edição desempenha papel fundamental ao permitir que um discurso seja construído, pois ela nos dá informações relacionadas ao vídeo. Em momentos importantes, como por exemplo, nos instantes que antecedem a chegada da segunda personagem: uma seqüência de cortes mais acelerada nos mostra que algo está para acontecer, pois o robô está recuperando um líquido que, por dedução, foi perdido durante a intervenção das máquinas momentos antes. Na maior parte do vídeo, o ritmo da edição é ameno e tranqüilo, entrando em sincronia com o clima da canção.

A combinação do fetichismo tecnológico com uma visão sobre o afeto humano resultou em uma visão surpreendente de como a emoção pode alterar estados em ambientes frios (PROBST, 2000). A escolha de opor representação imagética ao discurso verbal é um artifício bastante recorrente nos videoclipes e tem a intenção de conquistar a atenção do indivíduo pelo estranhamento causado pelo choque. Este artifício, então, é estruturador de toda a ação que se desenrola ao longo do clipe da Björk. A frieza tecnológica opõe-se à mais nobre emoção humana

4. Considerações Finais

All Is Full Of Love possui alguns aspectos que liga a sua produção às técnicas óticas e ao mesmo tempo às técnicas numéricas. Por ter, primeiramente, passado por um esboço captado pela câmera, o videoclipe evoca a representação de uma realidade imediata, facilmente compreendida pela analogia de um mundo que existe além do momento de produção imagética. Porém, sabemos que o movimento e as feições dos robôs foram trabalhados na pós-produção, recorrendo à computação gráfica, à animação 3D e à composição para finalizar as imagens. Ao partir da produção técnica das imagens, este clipe não rompe totalmente com o código fotográfico, já que antes de passarem por intervenção da tecnologia digital as suas imagens foram criadas através de projeção ótica. Isso quer dizer que o realismo conceitual operou, por exemplo, na criação do movimento das personagens e na finalização dos elementos do cenário. Ainda que remeta a um universo industrial altamente especializado e que revele a utilização de processos computacionais na criação imagética, All Is Full Of Love possui ligações com a existência física daquilo que representa.

Por outro lado, a técnica utilizada neste clipe é bem sintomática dos processos contemporâneos de criação imagética, que incluem desde a concepção do trabalho a ser feito à utilização de recursos e ferramentas particulares da tecnologia digital, ainda que utilizem lentes, câmeras e película em alguns momentos da produção.

Ao transitar entre esses pólos, a representação não perde a ligação imediata com o referente e, assim, destaca que a técnica foi utilizada para atingir propósitos artístico-expressivos do diretor e da cantora. Ao invés de naturalizar o uso da técnica e criar um ambiente livre de aderência imediata ao real, All is Full of Love destaca, celebra e deixa de explorar outras possibilidades do domínio do digital que aumentariam a densidade de informações das imagens através da utilização de uma carga diferenciada de signos e códigos do mundo real.

Referências Bibliográficas

AUMONT, Jacques. La Estética Hoy. Madrid: Cátedra, 2001.

BARBOSA JÚNIOR, Alberto Lucena. A Arte da Animação. Técnica e estética através da história. 2 ed. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2005.

BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulações. Lisboa: Relógio d’Água, 1991.

______. A troca simbólica e a morte; trad. Maria Stela Gonçalves, Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Loyola, 1996.

BELLOUR, Raymond. A dupla hélice. In: PARENTE, André (org.). Imagem-Máquina: a era das Tecnologias do Virtual; trad. Rogério Luz et alii. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993. p. 214-30

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura; trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

COUCHOT, Edmond. A tecnologia na arte: da fotografia à realidade virtual; trad. de Sandra Rey. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003.

______. Da Representação à Simulação. In: PARENTE, André (org.). Imagem-Máquina: a era das Tecnologias do Virtual; trad. Rogério Luz et alii. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993. p. 37-47

CRARY, Jonathan. Techniques of the Observer. Cambridge: MIT Press, 1990.

DUBOIS, Philippe. Cinema, Vídeo, Godard. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.

GIANETTI, Cláudia. Estética Digital: sintopía del arte, la ciencia  y la tecnologia. Barcelona: Associación de Cultura Contemporània L’Angelot, 2002.

MACHADO, Arlindo. Artemídia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007.

______As imagens técnicas: da fotografia à síntese numérica. Imagens, Campinas, n. 3, p. 8-14, 1994.

______. Máquina e Imaginário: o desafio das poéticas tecnológicas. 3 ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001.

_____. Televisão Levada a Sério. 3 ed. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2003.

MANOVICH, Lev. The language of new media. Cambridge: MIT Press, 2001.

PLAZA, Julio & TAVARES, Monica. Processos Criativos com os Meios Eletrônicos: Poéticas Digitais. São Paulo: HUCITEC, 1998.

______. As Imagens de Terceira Geração, Tecno-Poéticas. In: PARENTE, André (org.). Imagem-Máquina: a era das Tecnologias do Virtual; trad. Rogério Luz et alii. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993. p. 72-88.

POPPER, Frank. As Imagens Artísticas e a Tecnociência (1967-1987). In: PARENTE, André (org.). Imagem-Máquina: a era das Tecnologias do Virtual; trad. Rogério Luz et alii. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993. p. 201-213.

PROBST, Christopher. Amorous Androids. Disponível em: <http://www.director-file.com/cunningham/pr09.html>. Acesso em: 02 ago 2008.


[1] Eliminação da diferenciação entre o tempo de produção da imagem e de sua exibição, que é suprimida pela instantaneidade da transmissão ao vivo.

[2] O autor aponta que “artemídia” é a palavra em português correspondente à expressão em inglês media art.

[3] A ruptura da separação entre alta e baixa cultura e a inserção de produtos midiáticos no contexto da experiência estética são algumas das características fundamentais do pós-modernismo.

[4] Técnica utilizada na pós-produção de vídeos que combina imagens originadas de diferentes fontes, geralmente com o uso de chroma-key.

[5] Em tradução livre do original em inglês, “o encontro do kama sutra com a robótica industrial”.

Author Image

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

More Posts

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

Este post tem 5 comentários

  1. Author Image
    Ferreirasantos4112

    me, interessa muito, porque estou estudando o 1º periodo de produçao audio visual, e tenho descoberto maravilhas, tanto na imagem, operaçao de camera, edição e direito, e gostaria de trocar experiencias com vcs, ok…

Deixe uma resposta