Cem filmes para uma cinemateca ideal: considerações sobre a questão do gosto na crítica de cinema

Quem visitar o site da revista francesa Cahiers du Cinéma neste início de 2009 pode se espantar com a quantidade de listas publicadas: ao lado dos “melhores de 2008”, estão a lista dos melhores filmes do ano passado escolhidos pelo público, os melhores de cada crítico, os melhores DVDs, os melhores vídeos e, por fim, os “cem filmes para uma cinemateca ideal”.

Cidadão Kane, de Orson Welles
Cidadão Kane, de Orson Welles

A partir do tema original “os cem filmes mais belos do mundo” (este é aliás o título de uma retrospectiva em Paris baseada nesta lista), essa classificação foi estabelecida por críticos e historiadores do cinema escolhidos pela revista. O resultado confirma os títulos já consagrados: Cidadão Kane como melhor filme; Renoir, Hitchcock et Lang como principais cineastas.

A partir deste espírito classificatório e considerando a crítica de cinema de uma maneira ampla (sem se limitar, portanto, aos Cahiers), este texto pretende abordar algumas questões envolvendo a formação e manifestação do gosto.

O gosto de um grupo

Inicialmente, algumas considerações de ordem metodológica se impõem em relação à lista da cinemateca ideal. Os 78 críticos e historiadores do cinema constituem escritores e amigos dos Cahiers du Cinéma e das Cinematecas de Paris e Toulouse.  De um ponto de vista sociológico, trata-se de um grupo um tanto homogêneo: 71 homens para apenas 7 mulheres, todos franceses, de maioria branca e cristã, de bom nível socio­cultural e moradores de grandes cidades – Paris em especial. Enquanto contatos próximos aos Cahiers, eles defendem uma visão ainda forte da “política dos autores”, instituindo por exemplo, paralelamente aos cem melhores filmes, uma lista suplementar dos 50 melhores cineastas.

No topo desta última lista está um cineasta francês, Jean Renoir, assim como a França conta com um número importante de filmes (23 em 100, ou seja, quase um quarto de toda a classificação). Nenhum título sul-americano ou africano consta entre os cem escolhidos. Poderíamos interpretar essa lista a partir do fato que o cinema mundial foi julgado unicamente por franceses, de um grupo social e formação semelhantes?

O gosto da distinção

Para responder a esta pergunta, seria necessário considerar alguns fatores relativos à crítica de cinema. Em La mesure de l’art – sociologie de la qualité artistique, Jean-Marc Leveratto analisa os aspectos da formação de um crítico capazes de influenciar seus julgamentos.

Ele afirma que, em princípio, “tornar-se crítico depende unicamente das competências pessoais”. Embora essa consideração ignore o papel que pode exercer uma formação ou os contatos adequados, ela lembra a ausência de uma formação específica para esta profissão. Enquanto alguns são jornalistas especializados em cinema, outros se dividem entre crítica e realização (como, recentemente, Olivier Assayas e Catherine Breillat), sem falar no grupo que parte exclusivamente da cinefilia, constituído de “espectadores profissionais”, correspondendo a uma visão idealista da crítica muitas vezes apoiada pelos próprios Cahiers.

Além disso, Leveratto relembra a intenção proclamada desta revista, quando foi fundada, de resistir à publicidade e promover filmes diferentes “da maioria”. O idealismo persiste nessas duas intenções iniciais; tanto a de exercer uma influência comparável ao do marketing oficial (o que implicaria ser acessível à todas as classes e grupos sociais) quanto a de criar uma procura a partir da oferta, ou seja, de formar um público a partir dos conselhos dados.

Também é importante lembrar que o modo como os filmes são criticados mudou sensivelmente desde os anos 60. Hoje, mesmo os críticos de jornais diários dispõem de uma certa liberdade para assistir aos filmes que preferem (mesmo grandes jornais como Le Monde ignoram várias estréias todas as semanas), assim como as pré-estréias para os críticos pode ser controlada ou proibida se o diretor/produtor o deseja (Patrice Leconte, por exemplo, usou este recurso mais de uma vez). Quanto às publicações mensais, uma contradição aparece: por um lado apóia-se a idéia de uma contra-publicidade – e de se criticar, portanto, as estréias nas salas de cinema -, por outro condena-se os filmes estreantes por ainda estarem muito ligados ao funcionamento do mercado.

Assim, a prioridade é dada aos filmes antigos ou minoritários. Seria possível dizer que essas produções são realmente ajudadas pelos comentários dos críticos? Difícil dizer, uma vez que nenhum estudo prova a medida exata da influência da crítica sobre a bilheteria de um filme. Se uma crítica pode parecer convencer várias pessoas de assistir a um filme, ela não dispõe de nenhum poder persuasivo para outros títulos. E isso vale para tipos de crítica muito diferentes, desde a mais ligada à vida dos artistas até as mais analíticas e/ou teóricas.

Laurent Jullier, em Qu’est-ce qu’un bon film?, fornece outro ponto de vista a respeito da distinção na crítica de cinema. Baseando-se nas idéias de Pierre Bourdieu, o autor estuda o princípio segundo o qual, para se gostar de uma obra, é preciso “ter interesse a achá-la boa”. Este gosto a priori justificaria, por exemplo, a predisposição dos críticos franceses a assistir aos filmes nacionais de um modo diferente daquele que assistem os filmes sul-americanos ou africanos, origens estas ignoradas pela cinemateca ideal dos Cahiers. Da mesma maneira, uma classificação de filmes efetuada por críticos destas origens traria provavelmente títulos locais entre os melhores do mundo.

O conceito de “habitus” é igualmente trazido à discussão. Segundo Jullier, a desconfiança que se teria em relação aos críticos (será que eles privilegiam alguns filmes, ou ainda que são pagos para defender tal ou tal título?) viria do fato que eles seriam incapazes de superar o habitus. De acordo com este pensamento relativista, toda opinião reflete uma classe social, uma raça e um sexo, o que faria da crítica uma opinião como as outras, sem maior credibilidade que os conselhos de um amigo ou vizinho a respeito de um filme em cartaz. O crítico, por fim, tentaria “se apropriar do valor da obra que comenta”, legitimando sua opinião através da qualidade do filme criticado.

O gosto da intimidação

“O terror na crítica não é nada mais que a ideologia dos gosto natural vista sobre um outro ângulo”. Em referência ao conceito kantiano de gosto natural, Jullier pensa a noção de terror como fundamental no exercício contemporâneo da crítica. Segundo ele, a própria terminologia destes “especialistas” teria se impregnado de termos que, ameaçando excluir o leitor de um grupo, propõe filmes “imperdíveis”. Mesmo a classificação de estrelinhas nos jornais franceses passa a excluir o “bom” e “ruim”, preferindo os filmes que “não se deve perder”, a “ver talvez” ou “não perder seu tempo”.

Consequentemente, este terror construiria o “ódio de si”, a imposição de um gosto e uma consumação precisas no indivíduo. Bourdieu lembra que se distinguir implica dar a impressão de que se teve a liberdade de efetuar uma escolha. Isto explica a razão pela qual o poder de imposição da crítica se efetuaria em nível principalmente inconsciente no espectador (que se convenceria que seu gosto é próprio e autêntico, sem influências do meio ao qual pertence).

Seria importante sublinhar que, para Bourdieu, o gosto é obrigatoriamente formado por uma relação entre nossas escolhas e as preferências de outros membros do mesmo grupo social, ou ainda entre nosso gostos e “os produtos classificados em ‘bons’ ou ‘ruins’, ‘refinados’ ou ‘vulgares’, classificados e por isso classificantes, hierarquizados e hierarquizantes” (Questions de Sociologie, p. 161). Esta visão relativa conduz à idéia de que o gosto e, por extensão, as opiniões e julgamentos de um crítico de cinema são determinados pelo gosto dos outros críticos e do público, assim como pelos filmes em circulação – seriam portanto os filmes que formariam um gosto, e não o contrário.

A partir deste raciocínio, pode-se compreender que o medo da exclusão não influencie unicamente o público; seria possível pensar nos próprios críticos que estabeleceram a lista da cinemateca ideal. Em seu blog pessoal, o crítico da publicação Les Inrockuptibles Serge Kaganski afirma com orgulho não ter incluído Cidadão Kane em sua lista de favoritos, inversamente à maioria. Este exemplo ilustra como é possível que, por um lado, a escolha do crítico seja imediatamente comparada à expectativa de escolha dos outros críticos e, por outro, que toda exceção à regra se imponha como vontade de se dintinguir – ainda de modo inconsciente, segundo Bourdieu.

A revista francesa Cahiérs du cinéma
A revista francesa Cahiérs du cinéma

A socióloga da arte Nathalie Heinich, em L’élite artiste – excellence et singularité en régime démocratique, analisa um outro fator a respeito do gosto e da intimidação: a distinção entre artistas e artesãos, que constituiria o centro da discussão entre críticos e diretores ou entre críticos de linhas diferentes, uma vez que ela implica duas visões bem diferentes do cinema. Enquanto a noção de “diretor-artista” subentende a existência de um “criador” e único responsável por sua obra, o “diretor-artesão” diz respeito ao trabalho e à noção material da produção cinematográfica.

O ideal do “artista”, como mencionado anteriormente, converge com a política dos autores defendida por revistas como Cahiers du Cinéma e Positif (mesmo que os autores defendidos não sejam os mesmos) que interpretam um filme inicialmente como produto de uma idéia, como concepção prioritária à própria realização. A criatividade e os traços pessoais que distinguem cada autor tornam-se os objetos de análise mais importantes para os críticos em questão. A intimidação aparece portanto na crítica a priori, quando realizadores são defendidos por seus traços recorrentes enquanto outros que teriam feitos filmes julgados ruins serão vistos como meros “diretores”, mas não “artistas”.

Este grupo de cineastas desprezado pela maior parte da crítica é classificado entre os “artesãos”, ligados à materialidade do cinema, simbolizada por exemplo pelo dinheiro e pelos estúdios. Novamente, a noção de dinheiro como algo impuro e de trabalho manual como inferior ao intelectual reaparece com força. Contra este raciocíncio, algumas revistas dirigem seu foco justamente às curiosidades e segredos de produção; enquanto muitos cineastas reivindicam o mérito de seus filmes em si, pela simples dificuldade e tempo gastos em sua elaboração.

Este argumento constituiu o centro do “Manifesto dos Cineastas”, documento escrito em 1999 à partir da iniciativa do diretor francês Patrice Leconte cuja intenção era de atacar a crítica de cinema e proibir a divulgação de textos negativos sobre os filmes franceses antes que eles chegassem às salas de cinema. Para ele, a crítica seria essencialmente injusta porque a redação de um texto seria muito mais simples que a realização de um filme, e por isso menos digna de respeito que a produção árdua dos cineastas. Este texto suscitou uma polêmica em que os defensores da crítica acusaram o manifesto de ser uma tentativa de “censura” e “terrorismo”, e por isso nenhuma das reivindicações dos quase 90 signatários foi acatada.

Por fim, à medida que a crítica abandona a intenção de objetividade – idéia ainda forte nos anos 50 com André Bazin – a noção de uma “ciência da análise” cede espaço às interpretações cada vez mais pessoais e julgamentos estilo “gosto/não gosto”. Como já se disse a respeito da análise literária, a crítica serve acima de tudo para se compreender aquele que critica. Uma vez que o gosto é formado pela origem e pelas experiências de uma pessoa, assim como sua visão do cinema e da arte, é evidentemente impossível falar de um filme em si, da qualidade em si, do gosto em si. A qualidade existiria, inicialmente, aos olhos de quem assiste a uma obra, que se trate de um espectador comum, crítico ou cineasta. Portanto, a elaboração de uma lista de “melhores filmes” ou os “mais belos” é fundamentalmente impraticável, além deste exercício sequer contribuir para aprofundar a discussão sobre cinema, já que a escolha dos títulos é raramente justificada. Os “cem filmes para uma cinemateca ideal” não dizem respeito ao cinema mundial, mas a uma visão muito restrita do cinema – a visão dos Cahiers du Cinéma, da política dos autores e da excelência artística européia-americana.

Bruno Carmelo é graduado em Cinema pela Faap e mestrando em Teoria e Crítica de Cinema na Universidade francesa Sorbonne Nouvelle

Bibliografia

– BOURDIEU, Pierre. Questions de sociologie. Les Editions de Minuit, 1984.

– HEINICH, Nathalie. L’élite artiste – excellence et singularité en régime démocratique.

Gallimard, 2005.

– JULLIER, Laurent. Qu’est-ce qu’un bon film ?. La Dispute, 2002.

– LEVERATTO, Jean-Marc. La mesure de l’art – sociologie de la qualité artistique.

La Dispute,  2000.

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Este post tem 2 comentários

  1. Author Image
    Robson

    Da mesma forma que listas elaboradas pelos americanos são, em sua grande maioria, de filmes americanos. Na lista dos 10 melhores, nem sei se eles põe algum europeu. Devem ter colocado Fellini, eles adoram Fellini.
    Entre tantas listas, gosto mais da do Cahiers.

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