Cinema e Ditadura: Tendências estéticas do cinema brasileiro no Governo Médici

Flávia Seligman, Dra.
Curso de Realização Audiovisual – Unisinos, RS
flavias@unisinos.br

Muitas foram as tendências que permearam a cinematografia nacional durante os anos 70.  Ou, mais precisamente, de uma década que se iniciou por volta de 1968 e só terminou com os sinais da abertura política na mudança para os anos 1980.  Refletindo sobre a produção cinematográfica dos anos que antecederam o período militar, observamos que o cinema brasileiro já havia alcançado prestígio dentro e fora do país.  Em 1962 O Pagador de Promessas, dirigido por Anselmo Duarte, ganhou a Palma de Ouro em Cannes.  Glauber Rocha também já havia ganhado destaque com Barravento, 1961, e Deus e o Diabo na Terra do Sol, 1962.  Outros nomes como Rui Guerra e Nelson Pereira dos Santos contribuíram para o prestígio do cinema nacional, principalmente para o grupo do Cinema Novo.  Através do Instituto Nacional de Cinema, o INC, o Estado estimulava e participava da produção cinematográfica.

O projeto deste Estado democrático – que incentivaria as artes, esta oportunidade de criação e, principalmente, a possibilidade de uma arte engajada junto ao povo, segundo proposta levantada pelos Centros Populares de Cultura da União Nacional dos Estudantes, os CPCs da UNE – foi substituído pelo militarismo e pela ditadura.

No início dos anos 70, muitos artistas estavam presos ou exilados e os que ainda podiam trabalhar na área foram obrigados a buscar outras saídas, ou adaptar-se àquelas impostas pelo governo.  Conforme a revista Veja publicou na sua edição especial sobre os anos 70, em dezembro de 1979, começava a década de cada um[1].  No cinema brasileiro, isto aparece na ausência de novos movimentos bem definidos – como o Cinema Novo, por exemplo –, com o surgimento, apenas, de tentativas inteligentes de encontrar soluções viáveis para um problema que, naquela época, estava apenas começando.

Neste período, uma nova situação foi proposta para a cultura, com a esfera de mercado assumindo proporções surpreendentes.  Em todos os setores ocorreram expansões da produção e consumo.  A produção de bens culturais tomou um rumo industrial e o cinema brasileiro não poderia ficar fora disto.  Começou um grande conflito entre o cinema de pretensões autorais e o cinema de mercado, com produtores lutando para colocar seus filmes no circuito exibidor e, por sua vez, exibidores alegando que o filme nacional não atraía o público.

O cinema seguia à risca as determinações da própria política econômica do país.  Era a época do milagre brasileiro, o milagre econômico, elaborado na gestão do Ministro Delfim Neto[2], que levaria o Brasil ao primeiro mundo no quesito “desenvolvimento”.  O cinema passou, então, a uma atividade dita industrial, gerenciada pelo Estado e delimitada pela censura.

O Governo Médici foi a segunda fase do Estado ditatorial detentor de instrumentos bastante eficazes, como o AI-5 e uma nova Constituição, para a redefinição do setor cultural.  A cultura, por sua vez, seguiu o rumo dos demais setores, fazendo uma articulação entre a modernização e a industrialização e uma rígida repressão e censura.

Emílio Garrastazu Médici

O Estado sobrepôs às bandeiras nacionalistas, que permearam os anos 60, a tentativa de formação de uma indústria cultural, seguindo o ritmo e o modelo delineado para o centro da economia do país.  Junto a isto, acompanhou o crescimento dos meios de comunicação e a consolidação (apoiada totalmente pelos governos militares) da Rede Globo como maior fonte de informação nacional.  Como já apontamos, através da transmissão unificada para todo o Brasil, a televisão forjava uma identidade nacional baseada nos princípios ditados pelo governo.  Era, portanto, o momento certo para investir na expansão e na produção cinematográfica.

A temática, por sua vez, diferenciava-se totalmente da década passada e afastava-se veementemente dos idos do Cinema Novo.  Agora a personagem era urbana, acompanhando o desenvolvimento da própria sociedade.  Automóveis, TVs coloridas, incentivo ao consumo de eletrodomésticos e Copa do Mundo.  Este era o “Brasil que vai prá frente”.

Slogans do governo Médici

O golpe militar e a recessão econômica forçaram uma aproximação dos intelectuais com a realidade nacional.  Talvez um dos fatores mais importantes a serem mencionados, quando se aborda a produção cinematográfica dos anos 1970, seja este enfoque dado por alguns cineastas à realidade em que se encontrava o país.  As características fundamentais do povo brasileiro foram abordadas de uma forma mais respeitosa, foram aceitas como naturais.  Passou-se a considerar as múltiplas faces da realidade nacional e não mais se tratava do estudo do povo brasileiro como um simples objeto, mas sim de uma realidade total, na qual o cineasta estava incluído.  O cineasta, nos anos 1970, passou de observador da realidade à participante dela.

A participação do governo na produção cinematográfica tornou-se mais ostensiva nos anos 1970.  Como resultado de determinadas pressões políticas e administrativas surgiu, em uma tentativa estatal, o Filme Histórico.  Este tipo de manifestação já havia aparecido, ainda que es­poradicamente, no Brasil, mas foi a partir da gestão Médici que produções deste caráter não ficaram mais restritas à espontaneidade dos cineastas.

Através do Ministério da Educação e Cultura, gestão Jarbas Passarinho, o governo pas­sou a incentivar a produção de filmes sobre fatos históricos e relevantes obras da literatura naci­onal que resgatassem e honrassem a pátria brasileira.

No início dos anos 1970, por exemplo, a produção comum de um longa-me­tragem, vinculada à EMBRAFILME, tinha como teto de financiamento 270 mil cruzeiros (hoje aproximadamente R$ 1.259.072,87).  No caso de ser um filme de caráter histórico, a verba poderia chegar até Cr$ 1.500.000,00 (um milhão e quinhentos mil cruzeiros, equivalentes a R$ 6.994.849,29)[3] e, ainda por cima, metade desta soma era considerada como subvenção.  No entanto, esta experiência não deu certo, pois poucos filmes foram produzidos e, invariavelmente, com qualidade sofrível.

O Estado, além desta tentativa de produção ufanista, colocou-se arbitrariamente em cada sessão cinematográfica, através de filmes de propaganda e curta-metragens de exaltação aos feitos governamentais, como os filmes realizados por Jean Manzon e Primo Carbonari.  Através do Decreto-lei nº 483, de 13 de março de 1969, tornava-se obrigatória a inserção de assunto classificado como de interesse educativo, com duração de pelo menos dois minutos, no início dos jornais de atualidades cinematográficas (material de propaganda do governo).  Os filmes deveriam ser produzidos ou adquiridos pelo INC, cabendo à AERP fazer a indicação dos assuntos.  A distribuição destes filmes coube ao Serviço de Censura de Diversões Publicas do Departamento de Polícia Federal, sem ônus para o exibidor; o artigo ainda previa a produção de filmes de curta-metragem considerados de utilidade pública, com projeção obrigatória em todo o território nacional.

Cartaz impresso e distribuído pelo Serviço Social da Indústria (SESI) para a Semana da Pátria, em setembro de 1974, durante o governo Médici.

Os filmes de propaganda colados nos cinejornais não passavam de uma junção de imagens tentando passar uma idéia do Brasil – Progresso, com uma locução formal, no estilo dos telejornais nacionais, e mensagens ufanistas no final tais como “Um país se faz com o esforço e o trabalho de todos”, ou “Todos juntos, prá frente Brasil” (utilizado largamente na Copa do Mundo de Futebol de 1970 – “Todos juntos vamos, prá frente Brasil…”).  Os filmes também versavam sobre datas específicas, como dia das mães, das crianças ou o dia do soldado, conselhos sobre segurança no trânsito, ou hábitos de higiene; não apresentavam nenhuma informação direta, apenas uma relativa propaganda do governo: governo que vai bem, que é limpo, seguro, que cuida das suas crianças através de um exército amigo e eficaz (sic) – provando para o povo que havia uma atmosfera favorável ao governo militar.

Porém, foi através dos cineastas independentes que se registraram as melhores produções do cinema nacional nesta década, como, por exemplo, as do Cinema Marginal, com os filmes debochados e inteligentes de Rogério Szganzerla e Júlio Bressane, surgidos na Boca do Lixo, em São Paulo, e a própria pornochanchada, que combatia através do escracho e do deboche a tentativa falsa do governo de estabelecer um país-modelo no campo audiovisual – uma tentativa de criar um Brasil de mentira nas telas.

Os cineastas marginais também trabalhavam com o escracho e romperam com o Cinema Novo, buscando uma forma di­ferente de narrativa.  Era um cinema que trabalhava com o deboche de modo a desmoralizar o discurso da época.  Os cineastas marginais referiam‑se ao universo urbano e, de maneira bastante hermética e inteligente, desejavam, através da sátira, atacar a sociedade em que estavam vivendo.  O maior exemplo dentro dos filmes marginais é O Bandido da Luz Vermelha, 1968, Rogério Sganzerla.  Devido às dificuldades de mercado e às divergências com a censura, o Cinema Marginal foi se dissolvendo gradativamente e não conseguiu um contato maior com o público.

Ainda no escracho e no deboche surgiu a pornochanchada, um ciclo de comédias com um toque de erotismo que driblava a censura através de piadas de duplo sentido, de nudez parcial e atraia o público com um elenco conhecido da televisão. As comédias eróticas trabalhavam com a sátira dos costumes e eram basicamente machistas e moralistas, não atentando com os tempos duros da repressão militar.

Na linha erótica também apareceram os filmes policiais, com histórias tiradas das páginas dos jornais populares. Ídolos como Jece Valadão alternavam papéis de bandidos e policiais civis (nunca a polícia militar entrou em cena) que conviviam lado a lado entre o crime e a corrupção.

O cinema brasileiro adequou-se ao momento vivido e passou por uma fase extremamente popular durante a ditadura. Sem a pretensão de ser um cinema intelectual, os filmes feitos para um público C e D lotavam salas centrais das grandes capitais, apelavam para o erotismo e contavam histórias cotidianas e inofensivas enquanto o país vivia um dos seus períodos mais trágicos de violência e repressão.

Bibliografia consultada:

ANOS 70: Cinema. Rio de Janeiro: Europa, 1979-1980.

GALVÃO, Maria Rita; BERNARDET, Jean-Claude.  O nacional e o popular na cultura brasileira: cinema.  São Paulo: Brasiliense, 1983.

MORENO, Antonio.   Cinema brasileiro: história e relações com o Estado. Niterói/Goiânia: EDUFF-CEGRAF/UFG, 1994.

RAMOS, Fernão (org.).  História do cinema brasileiro.  São Paulo: Art, 1987.

RAMOS, José Mário Ortiz.  Cinema, Estado e lutas culturais: anos 50/60/70. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983

___. Televisão, publicidade e cultura de massa. Petrópolis/RJ: Vozes, 1995.

SILVA, Antonio Carlos Amancio da.  Produção cinematográfica na vertente estatal: EMBRAFILME – Gestão Roberto Farias.  São Paulo, 1989. Dissertação de Mestrado apresentada à Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo.

SIMIS, Anita.   Estado e cinema no Brasil.  São Paulo: Annablume, 1996.

VEJA. Especial Anos 70. São Paulo: Abril Cultural, dez. 1979.  Suplemento especial


[1] VEJA. Especial Anos 70. São Paulo: Abril Cultural, dez. 1979.  Suplemento especial.

[2] O economista Antônio Delfim Neto foi Ministro da Fazenda nos governos Costa e Silva e Médici, e, no governo do presidente João Figueiredo, foi sucessivamente Ministro da Agricultura em 1979, Ministro do Planejamento entre 1979 e 1985. Foi responsável pelo chamado Milagre da economia brasileira, período de crescimento econômico através de grandes aportes de capital internacional. (Nota da autora)

[3] Dados de conversão de valores: FEE/RS – Fundação de Economia e Estatística do Rio Grande do Sul. http://www.fee.tche.br/sitefee/pt/content/servicos/pg_atualizacao_valores.php. Acessados em 13 de setembro de 2010.

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Este post tem 2 comentários

  1. Author Image
    lol

    não creio que hoje seja diferente, pois se voc~e fala mal da Coca Cola pra algum amigo ou parente seu, ele provavelmente te ridicularizará, o que é uma forma de matar alguem. como? excluindo-o e acabando com a pessoa “subversiva” aos poucos… hpa muitíssima alienação disfarçada de muderniiiismoo hj em dia. sociedade feita de gente mesquinha q n quer nem saber de vc se vc discorda dela e fala mal de algo q ela idolatra, mas q é REALMENTE mau. além do mais q hj a morte é bem mais leentaa e sutimente escrota

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    lol

    …e vc praticamente agoniza até lá se é que não se mata antes de morrer por meios obscuros…então, imposição dos senhores do mundo, hj representados por pessoas bem proximas da gente, como seus aliados e q cuidam dos nossos passos, sempre existiram e não deixarão de existir, infelizmente.

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