Por W. Albuquerque
Mestrando em Cinema e Artes do Vídeo na Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR)
De Bruce Lee a Keanu Reeves, tivemos algumas gerações de anti-heróis solitários fazendo justiça com as próprias mãos, filmes onde a vingança parece ser o denominador comum, assim como em Fúria Primitiva, longa de estreia da direção de Dev Patel, mas que chega como um refresco para esse legado de filmes de ação.
No filme, acompanhamos um rapaz chamado apenas de “Kid”, assim como nos clássicos Waterworld (1995), Kill Bill (2003), Drive (2011), Tenet (2020) e tantos outros títulos em que o protagonista é praticamente anônimo. Para sobreviver nas ruas de Yatana, uma cidade fictícia que referencia Mumbai, Kid ganha a vida levando surra no ringue em lutas clandestinas, mas enquanto derrama suor e sangue por dinheiro, ele também arquiteta se infiltrar em uma rede criminosa que opera em um bordel de luxo.
Kid começa por baixo, criando pequenas conexões e conseguindo uma primeira posição trabalhando na cozinha, e com o tempo, ele consegue ser escalado como garçom para servir dentro do bordel. Essa escalada não é por acaso, pois seu objetivo é ter acesso ao andar mais VIP do prédio para confrontar aquele que será apresentado como vilão, o oficial militar Rana Singh.
A história é dinâmica, pois enquanto acompanhamos seu plano em execução, também temos alguns flashbacks que trazem o trauma e motivação de Kid para estar infiltrado. Essa construção é importante, pois garante que o espectador sinta a tensão constante de que algo pode dar errado a qualquer momento e, para reforçar isso, vemos também que ao contrário do que se esperava – dadas as as primeiras cenas reveladas do filme e as comparações com John Wick – Kid não tem um passado militar, não é super treinado e habilidoso. Ele sabe lutar, nós vemos ele no ringue, mas ele não é o melhor lutador.
Em paralelo a jornada de Kid, nós vemos a cidade fervendo. Há um líder religioso e político ascendendo na Índia, Baba Shakti, e suas intenções são de domínio e opressão, acompanhamos conflitos entre os cidadãos e militares em footages e fica cada vez mais claro que esse filme também vai tecendo algumas críticas sociais, sem pressa, criando provocações sobre a alienação da religião, a influência da política, o poder militar, a discrepância entre classes que quase se assemelha aos conceitos de cyberpunk e ao mesmo tempo a resistência, a diversidade cultural e de gênero.
Nesse ponto, Fúria Primitiva começa a se afastar do que a crítica pregou inicialmente, o neon e o contraste da cidade que lembra títulos mais recentes de ação, o crescimento intelectual e físico do protagonista como nos filmes de Bruce Lee – que é uma referência direta de Dev – os aspectos tradicionais de Hollywood, tudo isso começa a se mesclar com a diversidade da cultura indiana. As cenas de ação são sofríveis para Kid, não apenas fisicamente, mas podemos sentir o drama psicológico também, a relação das personagens com as figuras da religião e a arquitetura da trama em paralelo com a mitologia, isso e outros pequenos detalhes como a mistura sonora de eletrônico, metal e instrumentos da música indiana são referências diretas dos filmes de ação de Bollywood e outras grandes produtoras de cinema da Índia.
Assim como em Fúria Primitiva, nesses filmes o protagonista costuma ter um crescimento da sua figura como herói, ele encontra a redenção a partir do sofrimento físico e da dor emocional, do sentimento de decepção e derrota. Então, se espelhando em uma divindade, esses personagens erguem sua moral e esperança, e assumem características que acreditam ser delas. Essa incorporação de identidade é tão intensa que as pessoas ao redor da personagem começam a fazer parte dessa construção, dessa crença.
Após a queda, vem a ascensão de Kid, e com a ajuda das hijras entendemos que Rana foi responsável pelo massacre da sua aldeia e de sua mãe. Ele rastreia o vilão e também chega a Baba Shakti. Então, mergulhamos em um segundo ato recheado de adrenalina, com cenas de perseguição e luta bem desenvolvidas, personagens que não são trabalhados a fundo, mas fazem sentido para justificar certas perspectivas que podemos ir criando sobre Kid e esses diferentes grupos de Yatana.
Dev Patel escreveu, dirigiu, atuou e quebrou uma mão para entregar o filme de ação prometido. Uma história com altos e baixos dramáticos sem pontas soltas, apesar de carregar emocionalmente em alguns momentos – está tudo bem, isso é uma característica comum em filmes de ação indianos e a experiência permite esse equilíbrio. Fúria Primitiva tem uma cinematografia cuidadosa e uma ótima fotografia que dá destaque para a cidade e a ambientação, além de conseguir trazer aspectos de diferentes cinemas sem causar estranheza para o público ocidental, mas aproveitando sutilmente o melhor de cada um.
Falando sobre aspectos da cultura indiana, não podemos deixar de lado também o esforço desse filme de ir além de discutir os dramas da política versus sociedade, mas dar um tom maior para comunidades hindus. Como a inclusão das hijras, uma comunidade “culturalmente definida como nem homem ou mulher. Eles nascem como homens e, por meio de um ritual de transformação cirúrgica (emasculação), tornam-se uma categoria alternativa de terceiro sexo/gênero (…) adoram Bahuchara Mata, uma forma da Deusa Mãe hindu particularmente associada ao transgênero” (Tradução nossa, LaFont, 2003: 193).
Alguns críticos também ergueram alguns pontos delicados nessa mensagem, por mais bem intencionada que fosse. Siddhant Adlakha escreveu um artigo no jornal Time comentando que “uso de imagens hindus como um apelo à violência (…) é fundamental para a missão de Kid, resultando em uma dissonância narrativa.” (Tradução nossa, Adlakha, 2024).
Seja como for, esse foi um projeto que enfrentou diversas dificuldades durante a sua produção, mas felizmente chega como um longa que definitivamente poderá agradar diferentes públicos e quem sabe, ser um primeiro passo para uma carreira, pelo menos interessante para Dev Patel como diretor.