Por: Washington Albuquerque
Mestrando em Cinema e Artes do Vídeo na Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR)
“Talk Radio” (1988) não é apenas uma crítica à celebridade e à mídia tradicional, mas também uma reflexão sobre a alienação cotidiana. Barry Champlain, interpretado por Eric Bogosian, é uma força da natureza carregada de raiva, que usa suas palavras no programa de rádio noturno para anarquizar e hipnotizar sua audiência. Eric Bogosian entrega uma performance inquietante e provocativa, personificando Barry de maneira que é ao mesmo tempo perturbadora e necessária.
Às vezes, parece que não temos a menor ideia do poder da nossa voz, das nossas palavras. Não à toa, existem ditados que colocam as palavras como uma arma, algo que pode ferir mais fundo do que uma lâmina. Mas Barry conhece essa verdade intimamente, e não apenas compreende o impacto das suas palavras, como a utiliza deliberadamente como uma arma apontando para todos os lados.
Durante quase duas horas, acompanhamos Barry fazendo caras e bocas enquanto conversa com o público no programa. Os assuntos tendem a relatos extra e ordinários do dia a dia até mesmo discursos de ódio, dos quais somos pegos de surpresa quando Barry deixa claro que não abaixa a cabeça e rebate todo e qualquer argumento com sarcasmo e fúria.
Essa raiva de Barry serve como um catalisador no filme, ao mesmo tempo que revela o seu egocentrismo e suas aflições. Ele frequentemente confronta seus colegas de trabalho e superiores, e demonstra uma falta de filtro que beira a autossabotagem. Somos testemunhas dessa afronta quando ele recebe a notícia que seu programa se tornará nacional, e mesmo diante da possibilidade de ter o contrato cancelado, ele não se cala, ultrapassando constantemente novos limites.
Após uma longa introdução a vida de Barry, conhecemos sua ex-esposa Ellen, interpretada por Ellen Greene. A dinâmica entre os dois é conflituosa. Ela aceita o convite de Barry para participar do programa na noite de anúncio da nacionalização. Em meio ao caos, enquanto ele lida com ligações de ouvintes que beiram ao absurdo, Ellen se disfarça como uma desconhecida ao ligar para o programa, usando um pseudônimo que Barry reconhece na hora. Ela revela que ainda tem sentimentos por ele, mas Barry, sem hesitar, responde de forma cruel, a culpando pelo fim do relacionamento.
Através desta e outras interações do programa e fragmentos que temos em flashbacks, Barry é descascado lentamente, expondo seu lado caricato, mas também implacável. Vemos seu passado como vendedor de ternos até sua ascensão na rádio. E nos momentos finais, entendemos o desespero emocional dele, sua necessidade de “estar no ar” e, ironicamente, como essa mesma necessidade o sufoca.
A honestidade de Barry é dura e brutal, ele segue um dogma no qual parece não se importar com o impacto das suas ações no público, pois ele entende que a relação de amor e ódio criada com os ouvintes é o que os mantém ali, como espectadores dos seus momentos. Por mais que a verdade que ele diga seja dolorosa ou pareça absurda, quem se conecta com suas ideias está lá por amor, e quem vê sua virtuosidade e sente repulsa, por mais que se esforce, também está lá.
Essa figura polarizada é um fator determinante que dão as camadas necessárias para que consigamos entender que Barry é uma pessoa complexa, a sua dificuldade de lidar com si mesmo é evidente a cada vez que ele se dá conta que passou do limite, e sempre que ele ergue uma nova discussão com algum ouvinte, parece que ele está brigando em frente ao espelho, ele faz de cada momento, quase um monólogo excêntrico.
Vivemos em tempos atuais onde existe tanto para falar, mas também é preciso ter cuidado com a forma como você vai se expressar, e é incrível olhar para trás e ver que tantas figuras desbocadas já anarquizavam as mídias tradicionais. A história de Talk Radio é baseada na vida de Alan Berg, um apresentador de rádio americano de Denver que foi assassinado por um grupo de supremacistas brancos, uma retaliação a sua postura controversa e agressiva.
O flerte com a realidade é o que adiciona um tensor ao filme, ao perigo de como se articula uma ideia, uma mensagem, pois nunca sabemos o limite de quem está ouvindo. Tudo bem que hoje temos uma dinâmica diferente entre a mensagem e o receptor, “a internet aproximou as pessoas na mesma medida em que as afastou, criando simulacros de sentimentos que só existem em bolhas irreais” (BRASIL e PITANGA, 2017), assim diante de tantas atrocidades que acontecem a partir de discursos na rede, não é difícil enxergar a volatilidade da empatia criada em um período onde a interação era mais local, os objetos estavam ao alcance um do outro e o anonimato costumava ser uma via de mão única.
Talk Radio é um filme carregado de diálogos. As cenas que acompanhamos Barry dentro da estação de rádio são instigantes, Bogosian coloca tanto empenho no desenvolvimento das suas falas, que consegue nos manter aflitos esperando que algo vá dar errado, muito errado. A ambientação, hoje, traz tons de nostalgia, mas para a época, já destacava uma fotografia simples e inteligente, não deixando com que as cenas caíssem em monotonia.
Por outro lado, os flashbacks e o relacionamento de Barry, adicionados ao filme para nos proporcionar uma visão maior sobre seu passado, deixam muito a desejar. Quando o filme inicia e permanece por tanto tempo dentro da rádio, nós ficamos confortáveis com a ideia de que tudo pode e vai acontecer naquele espaço. Estamos tão vidrados com a frenesi de Barry e as insanidades dos discursos dos espectadores que ligam para conversar com ele, que quando o filme nos introduz em outro tempo e espaço, essa quebra é desprazerosa e poderia ter sido facilmente resolvida com outros tipos de recortes e soluções ainda dentro da própria rádio.
A personagem de Ellen é um bocado previsível, instável e apesar do esforço de Greene, o filme passaria muito bem sem que ela estivesse presente. É compreensível que Ellen esteja lá para expor tanto o lado mais humano e frágil de Barry, quanto o seu lado egocêntrico e violento, mas suas falas são suficientes para entender que esse é um personagem quebrado e complexo.
Oliver Stone conseguiu dirigir este filme sabendo conduzir o nosso olhar sobre a mente fascinante e sombria de Barry, e faz de Talk Radio, quase um ensaio sobre o poder e o impacto das palavras, tal como a guerra de “Barry contra o mundo”.
REFERÊNCIAS:
BRASIL, S.; PITANGA, F. Cinema ou um espelho distorcido da realidade. Revista Cult, 2017. Disponível em: <https://revistacult.uol.com.br/home/cinema-ou-um-espelho-distorcido-da-realidade/>. Acesso em: 17 de mai. de 2024.