Da relação entre os signos sonoros e visuais do cinema: uma análise da construção musical de Psicose

RESUMO:

O presente artigo visa compreender a estruturação da trilha sonora de “Psicose” (Psycho, 1960) – principalmente no que se refere à construção da composição musical – e como esta dialoga com os diferentes componentes do discurso fílmico. A partir da análise dos elementos que estruturam a composição musical de Bernard Herrmann (melodia, harmonia, textura, ritmo, instrumentação, dinâmica, dentre outros) pudemos fazer uma relação do estrato sonoro com o estrato visual da obra cinematográfica.

PALAVRAS-CHAVE: Bernard Herrmann, Hitchcock, música do cinema.

ABSTRACT:

This article aims to understand the structure of musical soundtrack from “Psycho” (Psycho, 1960) – especially regarding the construction of musical composition – and how this dialogue with the various components of discourse film. An analysis of the elements that structure the music of Bernard Herrmann (melody, harmony, texture, rhythm, instrumentation, dynamics, among others) we make a connection between the sound and the visual element of film.

KEYWORDS: Bernard Herrmann, Hitchcock, the film music.

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I- Introdução ao universo musical herrmanniano

Impossível empreendermos uma análise de “Psicose” (Psycho, 1960), independente do tipo de leitura que almejarmos efetuar, sem trazermos à tona os efeitos produzidos por sua trilha sonora. O compositor, Bernard Herrmann (1911/1975), abandonou o uso das grandes orquestras sinfônicas – instrumentação bastante apreciada pelos clássicos hollywoodianos das primeiras décadas do cinema sonoro – e de arranjos de complexas texturas polifônicas, em prol de uma reduzida orquestra de cordas friccionadas. O resultado foi substancial: os efeitos sonoros engendrados pela música tornaram-se paradigma para as construções audiovisuais de outras películas. Possivelmente, o maestro nova-iorquino não teria alcançado o mesmo resultado com o emprego das orquestrações que habitualmente se observa nas trilhas da época clássica.

Bernard Herrmann compôs também para filmes da envergadura de “Cidadão Kane” (Citizen Kane, 1945) e “Soberba” (The Magnificent Ambersons, 1942), de Orson Welles, diretor que o convidara para trabalhar em Hollywood a partir de 1935.  Desde muito cedo, o compositor revelou grande talento musical. Aos vinte e um anos já havia composto peças sinfônicas para o rádio e se tornara regente da orquestra CBS (Columbia Broadcasting System).  Além de “Psicose”, o regente trabalhou em mais sete filmes com direção de Hitchcock: “O Terceiro Tiro” (The Trouble with Harry, 1956), “O Homem que Sabia Demais” (The man who knew too much, 1956), “O Homem Errado” (The wrong man, 1957), “Um Corpo que Cai” (Vertigo, 1959), “Intriga Internacional” (North by Northwest, 1959), “Os Pássaros” (The Birds, 1963), no qual foi consultor de som, e “Marnie, Confissões de uma Ladra” (Marnie, 1964).

A instrumentação empregada pelo maestro atingiu uma dramaticidade essencial para a compreensão do discurso fílmico. A textura da música é compatível com a textura dramática do filme: na medida em que o drama das personagens se intensifica as intervenções musicais percorrem análoga direção. Se bem observarmos, a música não possui uma grande quantidade de notas e nem uma construção rítmica com muitas variações. Relativo à sua totalidade, a estruturação da obra é complexa, mas não exatamente os  elementos que compõem cada fragmento musical.

O som em “Psicose” é elaborado a partir da densidade psicológica da obra, o que desvincula a proposta musical do trilheiro de apenas reforçar o conteúdo visual de cada seqüência. Pouco provável é que esqueçamos alguns trechos da pungente música impressa na película. Basta apenas que citemos o trecho dos violinos na reverenciada “cena do banheiro”. Trata-se de um fragmento musical simples: os violinos são friccionados fortemente na mesma nota com a célula rítmica repetitiva, enquanto os outros instrumentos (cellos e baixos) fazem o contraponto com notas mais graves, que vão ralentando. Ainda que o fragmento musical seja fugaz, ele reverbera em nosso ouvido por muito tempo. A intenção dramático-musical nos parece nítida: fazer com que este assassinato fique marcado em sequências posteriores do filme. Hitchcock afirmou que decidiu filmar a partir da ideia deste assassinato, baseado no romance de Robert Bloch.

A sequência do banho é suficientemente violenta para que não a esqueçamos e, na medida em que o filme se projeta, as outras sequências se tornam menos agressivas. Eis o motivo que levou Hitchcock a fotografar em preto e branco: o diretor londrino acreditava que havia muito sangue na tela para ser filmado em cores. É interessante percebermos a modulação dramática gerada pelo esfaqueamento, já que o conflito inicial estava em torno do furto de quarenta mil dólares efetivado por Marion. Pura fantasia e jogo – substâncias indispensáveis na dramaturgia hitchcockiana – para que o público não esperasse a repentina morte da atriz “principal”. Fato que não é comum, a estrela morrer antes do cinquenta minutos de projeção.

Observa-se, de uma maneira geral, que a música de Bernard Herrmann possui uma construção de intervalos musicais que provocam no público uma sensação de instabilidade e mesmo de apreensão. Obviamente, o compositor não conseguiria tal efeito com o emprego de um sistema harmônico (tonal) estável, com os trítonos devidamente resolvidos. A harmonia é sem resolução, o que está ligado com a ideia de instabilidade da psique de Norman Bates. Assim como a música do filme não segue o princípio “tensão/ repouso”, salvo em raros momentos, outros elementos estilísticos do filme compactuam com este modus operandi. Lembremos que a personalidade de Bates é dupla, assume posturas diferentes e os movimentos do personagem são inquietantes. Por consequência, o silêncio, componente orgânico da dramaturgia sonora da película, é um recurso empreendido para gerar contraste com os momentos de saturação sonora. Não significa, na maioria das sequências, repouso.

II- A unidade formal e os blocos dramáticos

“Psicose” possui uma rigorosa unidade estética. Pontuar e analisar os elementos de sua trilha sonora exige que não isolemos outros importantes componentes como a fotografia, a montagem, cenário, atores, dentre outros. A música do cinema se fundamenta numa dialética com a imagem, o que implica afirmar que ela não pode ser compreendida apenas pela sua organização própria. Com isso, não queremos diminuir o caráter inventivo da música de Herrmann, pois “a música de cena não é música em estado puro, mas em estado dialógico, o que não impede de ter a sua porção de livre especulação”.

“Psicose” é uma obra que pode ser delimitada em dois grandes blocos dramáticos: o primeiro corresponde à fuga de Márion e o segundo às investigações de Sam e Vivian sobre o desaparecimento da fugitiva. A “cena do banho” é um intermezzo destes blocos dramáticos. O maestro americano se mostra sensível a esta mudança, visto que sua música atua como elemento da narrativa e intensifica as nuanças do roteiro. Na sequência da fuga de Marion a trilha se intensifica e o andamento se torna mais rápido. Em alguns planos a música fica sincronizada com elementos da própria cena. Podemos perceber esta rigorosa sintonia entre imagem e som (nomeada por alguns estudiosos de efeito mickeymousing) no momento da chuva, quando o pára-brisa do carro se movimenta na pulsação rítmica das notas musicais. É provável que o compositor tenha feito a decupagem sonora a partir do objeto da cena (pára-brisa). No segundo bloco (após as facadas em Marion) a música assume uma função predominantemente psicológica, visivelmente direcionada para a representação do universo conflitante de Norman Bates. Esta mudança não anula a unidade estética da película e é compreensível: a intenção dramática do filme foi alterada, uma vez que não estamos mais diante da trama do furto de Marion, mas do seu estranho e repentino assassinato. A narrativa musical, assim como o roteiro, nos surpreende no momento do crime. O efeito acústico produzido neste intermezzo de ações dramáticas nos provoca sustos. Demasiado significativo é o fato de a música cessar – momentos antes do esfaqueamento – com o intuito de se valorizar a sonoplastia. O som “relaxante” e contínuo da água que sai do chuveiro é interrompido por uma melodia estridente e perturbadora.

III- Música da morte: a construção sonora do assassinato de Márion Crane
Faz-se necessário uma análise mais detalhada dos elementos envolvidos na sequência do assassinato, posto que se trata, como vimos, de um instante fundamental da obra. O fato de o assassinato ter acontecido na ocasião de um banho nos parece muito simbólico: torna-se mais inesperado o esfaqueamento, já que o ato de banhar-se está vinculado à ideia de descanso e relaxamento. A condução feita por Hitchcock surpreende-nos mais ainda, pois o banho foi o instante fatal e mais violento de todo o enredo. Notemos que a música entra com o abrir das cortinas, como se iniciasse um espetáculo voyeurista. Os violinos tocam (glissandos) mis bemóis no registro agudo, com a dinâmica molto sforzato:

Os glissandos se (con)fundem com os gritos da atriz. Vejamos algumas conexões sugestivas que compõem esta paisagem sonora:

  • Relação entre a trilha sonora e a faca – Em alguns planos o ritmo das punhaladas está sincronizado com o ritmo das notas agudas do violino. Além disso, há uma relação com a textura da faca. Da mesma forma que a faca é bem fina as notas são bem agudas. A intensidade das punhaladas é reforçada pelas arcadas intensas dos violinos. “São os acordes musicais que fazem o corte no corpo de Marion”, nos disse Heitor Capuzzo.
  • Relação entre a trilha sonora e Marion – Bernard Herrmann simbolizou musicalmente os gritos de Marion nas notas estridentes executadas pelo violino. A respiração da atriz, cada vez mais lenta, foi simbolizada pelas notas graves que sofrem uma queda de andamento e ralentam junto com a pulsação dela. O registro grave também reforça a atmosfera de “gravidade” do crime.
  • Relação entre a trilha sonora e Norman Bates – O salto brusco do agudo para o grave nos remete a ideia de dupla personalidade de Bates que, assim como a melodia, oscila entre dois pólos. Notemos, entretanto, que estes dois pólos não são repulsivos, pois dialogam: tanto a mente do psicótico como as duas vozes melódicas. Os desenhos melódicos ressaltam a confusão mental do personagem.

É notável o equilíbrio dos elementos sonoros envolvidos na seqüência. Ruídos de facadas, chuveiro, cortina e gritos se amalgamam com as arcadas intensas das cordas e compõem um desenho sonoro matizado. O efeito acústico que se fixa é pouco comum: as frases musicais dos cordofones se aproximam de ruídos e os ruídos do ambiente se aproximam de música (stricto senso). A composição visual da cena é homóloga, logo variadas formas se mesclam: fluídas (água, sangue), pontiaguda (faca), esféricas (ralo, olho, vaso).

Não fosse pela expressiva montagem – tanto dos planos sonoros como dos visuais – possivelmente não perceberíamos a violência desse assassínio. A articulação vertiginosa das tomadas imprimiu um ritmo cinematográfico que contrastou com sequências anteriores do filme, em virtude da lentidão da pulsação rítmica de outras tomadas. Por consequência gerou-se uma cena recortada, igualmente aos violentos golpes de punhal impressos no corpo de Márion Crane. Observa-se, com assiduidade, que o momento de banhar-se é filmado com poucos planos e a articulação destes se dá em um ritmo lento, usualmente para demonstrar a tranqüilidade deste ato. Contudo, o banho no “Motel Bates” não havia de ser comum: o ritmo da montagem, apoiado por intervalos dissonantes nos violinos, anunciara a fatalidade. É significativo o fato de que nesta cena de apenas quarenta e cinco segundos foram utilizados setenta planos, os quais foram filmados em sete dias.

Ainda nos remetendo a este momento do filme, verifica-se que há uma correlação timbrística sutil. O timbre e a intensidade da melodia dos violinos nos fazem lembrar os grasnidos estridentes de algumas aves. É oportuno recordarmos que em cenas anteriores visualizamos aves empalhadas na sala de visitas de Bates e imagens de pássaros no quarto de Márion. Alfred Hitchcock, versando sobre este assunto, nos afirmou:

Os pássaros empalhados me interessam muito, como uma espécie de símbolo. Naturalmente, Perkins se interessa pelos pássaros empalhados porque ele mesmo empalhou sua mãe. Mas há um segundo significado, com a coruja, por exemplo: essas aves pertencem ao reino da noite, são espreitadoras, e isso afoga o masoquismo de Perkins. Ele conhece bem os pássaros e sabe que está sendo vigiado por eles.

A música de Herrmann contribui, sobremaneira, para apoiar os simbolismos do discurso fílmico comentado acima pelo cineasta inglês. Sabe-se, embora, que o diretor de “Um corpo que cai” (Vertigo, 1958) não queria que a sequência mais divulgada de sua obra fosse musicada. Porém, o trilheiro, ciente do seu ofício, contrapôs-se e a musicou.

Um outro momento muito musical são as tomadas em que Norman limpa os destroços do crime. Os sons do ambiente são trabalhados com bastante desvelo: cada um dos movimentos do personagem é valorizado e a música é silenciada. Silêncio este muito significativo, pois é o tempo em que se inicia um novo bloco dramático. A detalhada limpeza simboliza o recomeçar desta nova trama. A música, dessa forma, cala e o design sonoro impera, para que possamos reconstruir tudo a que assistimos antes. Bates também precisa de um tempo para reorganizar sua mente.

A montagem dos sons do ambiente foi desenvolvida com um intuito de se criar uma estética própria do ruído, não se trata de uma mera tentativa de reproduzir o som “real” dos objetos em cena. É recorrente na filmografia hitchcockiana a rigorosa elaboração dos sons diegéticos. Filmes como “Os Pássaros” (The Birds, 1963) e “Janela Indiscreta” (Rear window, 1954), possuem um mundo sonoro particular que extrapolam o real e atingem o poético.

IV- Diálogos com a cenografia: a noção de espacialidade fixada pela música

É provável que Bernard Herrmann tenha adotado, em algumas sequências, um “ponto de escuta” a partir de elementos do cenário. Vejamos a casa de Norman Bates quando ela está enquadrada. A fotografia é escura e a música cria uma ambientação fantasmagórica e sombria (os intervalos dissonantes denunciam isso). Hitchcock optou por uma arquitetura significativa: a casa é vertical e o motel horizontal. Este recurso dá uma dimensão de grandeza e visibilidade para a casa (o enquadramento em contra-plongé reforça a idéia). A música dialoga com esta intenção estética. Ao aparecer a casa, a música é pautada com notas agudas e longas, ao passo que o motel é pautado, em alguns momentos, com notas mais graves. Percebamos a conexão: casa-mais alta/ nota mais aguda; motel-mais baixo/ nota mais grave. Os planos em que Norman Bates sai de sua casa para limpar o sangue do crime servem com exemplo para discutirmos o método utilizado pelo músico. O personagem sai de casa correndo e ao abrir a porta do motel se depara com o corpo de Marion. A música percorre uma extensão que vai do agudo para o grave. A nota mais grave corresponde ao momento em que Norman abre a porta.  A situação, como se sabe, também é grave, pois sua “mãe” cometeu um crime.

Um fator relevante é a personificação do casarão dos Bates. A montagem interna, a fotografia, a música, todos estes elementos concorrem para que a casa se torne uma importante personagem. Hitchcock levou este recurso além em “Rebecca: A mulher inesquecível” (Rebecca, 1940), preâmbulo de sua carreira nas Américas. Ademais, notamos uma interessante gradação que nos conduz a descoberta do assassino: cada vez que nos familiarizamos com a trama do filme corresponde com cada parte que conhecemos da arquitetura da residência gótica dos Bates. Inicialmente, visualizamos a casa pouco iluminada e em plano geral, depois conhecemos uma parte de dentro (na seqüência da morte de Alborgast). Logo após – na ocasião em que Lila Crane entra para investigar o destino de sua irmã – conhecemos as partes mais intimas do casarão: o quarto de Senhora Bates e o do psicótico. No celeiro desembrulha-se toda a trama, ficamos cientes que o dono do casarão sofre de uma psicose, o que faz com que ora assuma a personalidade da mãe, ora assuma a sua própria. Bernard Herrmann utilizou uma escala cromática descendente quando a irmã de Marion desce até o porão, local onde ouvimos a nota mais grave da escala. A música nos dá a noção de profundidade, na medida em que ela soa mais agudo na parte alta da casa (o inicio das escadas) e mais profundo, grave, na parte mais baixa da casa (porão). O leitmotiv do esfaqueamento (trecho dos violinos) é repetido, pela última vez, na sequência em que Sam imobiliza o psicopata.

Curiosamente, a maioria das marcações dos trechos musicais foi composta a partir do ato de abrir/ fechar portas. As marcações começam sutilmente e os elementos som /imagem parecem estar dissolvidos um no outro. O emprego da música em tais momentos é algo expressivo. A porta é o limite entre duas ambientações diferentes: a imagem que percebemos de um lado (externo) e de outro (interno) – o que, geralmente, corresponde a dois enquadramentos diferentes, efetuados pelo corte. A psique de Normam é similar, está na região limítrofe de formas de comportamentos distintos. Estas especulações, se não auxiliam diretamente na pesquisa estética do som, ao menos mostram que Herrmann constrói sua música a partir de uma concepção estética geral do filme, procurando assim estruturar uma trilha musical que participe dos simbolismos e das denotações propostas pela direção. Esta concepção de trilha sonora vigorou essencialmente no cinema moderno, já que no cinema mudo não havia ainda a inserção da música como um elemento de rigoroso labor estético. O cineasta brasileiro Alberto Cavalcanti – imbuído de certo entusiasmo pelo cinema sonoro – chegou mesmo a assegurar que a música no cinema mudo só servia para “tampar buracos” .

V- A estetização do crime: uma análise da morte de Albogarst

A sequência na qual o detetive Albogarst é assassinado merece uma análise pormenorizada, no que se refere aos seus aspectos musicais. É fundamental que façamos um pequeno resumo, para melhor entendermos a decupagem dessa planificação: Albogarst é um detetive que procura saber sobre o destino de Marion. Ele já havia interrogado Norman e percebeu a insegurança deste ao mencionar o nome da sua mãe, Senhora Bates. O detetive sabia que na casa certamente havia alguma pista para descobrir a trama, pois interrogando a mãe de Bates poderia coletar informações importantes sobre a mulher desaparecida. Uma cena tipicamente hitchcockiana: um suspense gerado pela dilatação do tempo (no caso, a incessante busca a Marion), em que um pequeno detalhe torna-se um fator de extrema importância na condução da narrativa cinematográfica. Analisemos como a música foi elaborada:

Albogarst abre a porta do casarão – A música sofre uma pequena pausa, preparando para as fortes notas que virão. As notas que pontuam o interior da casa são longas e fracas, dando a ideia de continuidade das tomadas e avisando que algo estar por vir. Estes recursos que, de certa forma, são comuns, nas mãos de um compositor da envergadura de Herrmann estabelecem uma ambientação psico-emocional fundamental para a compreensão do discurso fílmico. É um princípio da música de cinema em Bernard Herrmann: poucos recursos sonoros para um máximo de resultados;

O detetive sobe vagarosamente as escadas com um olhar de inocência – A música é composta por uma nota que cresce (pouco a pouco) à medida que ele sobe os degraus. Lembremos que os degraus são elementos muito significativos dentro da cenografia hitchcockiana. É um momento no qual o tempo é estendido, o que engendra tensão, suspense. É o instante em que a música cresce e que a câmera nos aproxima da dramaturgia da cena e das intermitências emocionais das personagens;

Plano de detalhe da porta do quarto de Senhora Bates sendo aberta – A música cresce em sincronia com o abrir da porta. A nota neste momento é mais grave do que a do plano anterior, pontuando a presença do psicótico. A iluminação fica mais intensa, junto com a nota musical;

Câmera no alto – O assassino sai do quarto com a faca – A música repete o leitmotiv da cena do banho de Marion. As fortíssimas notas do violino revelam a presença do assassino, já que em cenas anteriores os espectadores associaram: momento culminante do filme (punhaladas), momento culminante da música (acutíssimas notas tocadas fortemente);

Plano de Albogarst na escada, caindo para trás – Essa queda de Albogarst foi rigorosamente elaborada. Hitchcock criou uma cadeira especial para o ator Martin Balsam sentar-se. Sua função era movimentar-se como se estivesse caindo. No plano seguinte o ator já se encontrava no início dos degraus e de fato caía no chão. O som nessa cena foi importante para transmitir o pavor da queda. É através do som dos degraus (Albogarst caindo para trás) que nos certificamos da queda, já que esta realmente não nos é mostrada com detalhes;

Albogarst está no chão e recebe o último golpe – A fotografia escurece; a música para.

Há uma correlação bem trabalhada com a música e a câmera. Quando a câmera está no alto, as notas são mais agudas (mais altas), que é o trecho dos violinos. Quando Albogarst cai para trás e fica no chão, as notas são mais graves (mais baixas), trecho tocado pelos violoncelos. Portanto, há uma relação de altura entre a posição de câmera e as notas na escala musical. O fato é que Hitchcock precisava filmar a mãe de Bates de costas, para não revelar sua verdadeira identidade para público. Desta forma, ele a filmou verticalmente, com a câmera no alto. Os degraus também são significativos musicalmente: da mesma forma que Albogarst cai do degrau mais alto para o mais baixo, a música percorre a mesma direção. Na medida em que ele se aproxima do chão, a música vai ficando mais grave até chegar ao ponto mais baixo, tanto da cenografia como das notas musicais. Os degraus correspondem a cada intervalo descendente. Uma sequência elaborada a partir de contrastes: agudo / grave, primeiríssimo plano / plano geral, câmera alta / câmera baixa, pianíssimo / fortíssimo, o que alude mais uma vez à dupla personalidade de Bates. Essas investigações nos revelam que os conceitos tradicionais de composição da música “pura” tem sua importância, mas não são decisivos para a intervenção sonora em uma obra cinematográfica com tais características.

VI- A estruturação da música de Bernard Herrmann

Muitos dos consagrados compositores da época clássica hollywoodiana procuraram construir uma relação entre música/ imagem mais intelectualizada, pautada por associações que se ligam mais diretamente com a nossa dimensão cognitiva. O som apóia as imagens e somos guiados pela trilha musical, que é um dos componentes fílmicos fundamentais para que entendamos o que as nuances do roteiro querem nos transmitir. A música de Herrmann, conforme destaca Rosinha Spiewak Brener, está vinculada à dimensão emocional e psicológica. Faz especulações psicológicas, “expressando a imagem interior dos personagens” , além de ampliar a riqueza imagética do filme.

De uma maneira geral, os intervalos de segunda menor, as sétimas e as nonas (não resolvidas) são recorrentes na música de Bernard Herrmann. Outra característica que singulariza suas composições é a não utilização de temas longos, com grande variedade de notas. Para tanto, Herrmann compõe com o uso ostensivo de ostinatos rítmicos e melódicos. Os ostinatos, termo técnico ordinário na terminologia musical, são figuras musicais que seguem um padrão rítmico, melódico ou harmônico. As células repetitivas provocam um movimento circular, produzindo tensão.  As intervenções sonoras em “Psicose” são marcadas por temas curtos com motivos melódicos e rítmicos repetitivos. Para exemplificar, examinemos o tema de abertura do filme:

Trata-se de um tema que possui o mesmo padrão rítmico (semínimas que se sucedem) e que reaparece em sequências posteriores. Os violinos tocam esta frase musical articulando-a de forma melodiosa (em legato), o que contrasta com o trecho (em staccato) dos baixos e violoncelos, instrumentos que fazem o contraponto com os violinos. Recordemos que o compositor trabalha com polarizações para demonstrar os conflitos do personagem Normam Bates. O referido contraste: legato / staccato funciona bem para fixar na película a sensação de desordem mental. É importante observar que a musicalidade de Herrmann não está centrada somente no estilo harmônico e na instrumentação escolhida. Sua sonoridade é buscada em sutis combinações timbrísticas, rítmicas e na dinâmica detalhada dos temas. Em virtude disso, o maestro conseguiu operar uma paisagem sonora bem definida. Analisemos os elementos envolvidos na impressão da paisagem sonora herrmanniana:

1. A instrumentação:

Os cordofones friccionados (violinos, violas, violoncelos e baixos) tem aspectos sonoros que se assemelham. Soam bem quando estão contraponteando, o que contribui para que a trilha tenha um estilo, um campo sonoro mais definido. De certa maneira, o número de instrumentos da música é compatível com a quantidade de personagens. A trama se desenvolve, sobretudo, em torno de quatro personagens (sendo que Marion morre nos primeiros quarenta minutos de projeção). Este recurso é uma forma indireta de se relacionar a textura da música com o número de personagens em cena. Além disso, a instrumentação imprimiu uma “cor” orquestral homogênea. Preto e branco, como a fotografia.

2. O timbre:

A trilha utilizou os timbres de uma forma muito particular. Os contrastes tímbricos: Som “aveludado”/ som metálico; os bruscos saltos do agudo (violinos, violas) para o grave (violoncelos, baixos); os pizzicatos / sons longos e suaves; sons reconhecíveis/ sons irreconhecíveis (ruídos) deram ao filme um discurso sonoro particular. Por exemplo: quando Marion foge com o dinheiro, começamos a ouvir uma série de diálogos perturbadores que se fundem com a música, provocando um efeito de angústia e inquietação. Por não estarmos vendo as pessoas dialogarem, o som gera dúvidas: Marion está ouvindo vozes apenas no seu consciente, fruto do seu medo, ou os diálogos estão de fato acontecendo? Estas falas foram conduzidas com o mesmo cuidado da música e pensadas não só em sua dimensão cognitiva, mas na dimensão da textura dramática da sequência.

3. O sistema harmônico:

O sistema tonal instável ampliou a atmosfera de tenebrosidade do filme. É certo que em alguns temas percebemos uma linguagem harmônica tonal, por assim dizer, menos “escura”.  Porém, o que ocorre em maior frequência é o uso de saltos descendentes de grande extensão, os quais impedem que percebamos uma linha melódica clara. Entendamos que em suspense não é interessante se construir uma linha melódica muito clara, já que a narrativa não é obvia, possui reviravoltas e situações inesperadas. Os intervalos não resolvidos, as tensões sem repouso e as insistentes repetições de motivos rítmicos e melódicos completam esta paisagem.

4. A dinâmica:

O contraste forte/ fraco; legato/ staccato; molto sforzato/ pianíssimo; efeitos percussivos/ efeitos harmônicos, contribuíram de forma decisiva para se conseguir uma ambientação sonora compatível com a dramaticidade da película. A cena do banheiro confirma: as notas agudas e metálicas do violino soam predominantemente com a intenção de se conseguir um efeito percussivo, e não tão-somente harmônico. Os pizzicatos das cordas agudas em contraposição com as frases dos violoncelos e baixos enriquecem a dinâmica da sequência. Em síntese: estes elementos formam um todo homogêneo, o que é de grande importância para se delinear o estilo de uma trilha sonora.

VII- Coda

“Psicose” é um dos filmes mais conhecidos no campo da trilha sonora. E sabe-se que atingir este patamar é um empreendimento nada fácil, já que a música do cinema impõe limites à criação do compositor. O trilheiro pode não obter um resultado artístico satisfatório se sua música quiser expressar um discurso próprio, sem dialogar com outras funções que compõem a linguagem cinematográfica. Como a música para o cinema é dialógica, o compositor enfraquece a dramaturgia cinematográfica se quiser seguir um caminho próprio, buscando somente conceitos vigentes na composição da música “pura”. No entanto, se o trilheiro optar por uma intervenção sonora rigorosamente concatenada com a imagem, ele pode fazer da música de cinema um instrumento de mera ilustração da linguagem visual. Um método que, na maioria dos casos, desemboca em clichês e faz com que os discursos dos sons se tornem vazios de informação. O trabalho musical do maestro de Nova York se põe no interstício desses caminhos. Herrmann consegue imprimir um discurso que, ao mesmo tempo, enfatiza a ação e acrescenta elementos simbólicos a esta, fazendo da música um instrumento de especulação e de inventividade artística.

Dentre as obras cinematográficas de Hitchcock, “Psicose” nos afigura como a mais popular. Aliado ao sucesso de público, o filme obteve enorme êxito comercial (o orçamento, que foi de apenas oitocentos mil dólares, se converteu em mais de treze milhões). O êxito desta experiência audiovisual provavelmente não se deu por causa do tema (o assunto) ou das estrelas que atuaram no filme, visto que presumimos que se trata de um trabalho cinematográfico cuja grandeza reside, em grande parte, nos elementos formais que estruturam a dramaturgia visual e musical. Hitchcock comenta sobre esta asserção:

Em Psicose, o tema me importa pouco, os personagens me importam pouco, o que me importa é a montagem dos fragmentos do filme, a fotografia, a trilha sonora e tudo que é puramente técnico e que conseguiu arrancar berros do público.

O discurso fílmico de Hitchcock nessa película é patente: os efeitos provocados pela estruturação áudio-visual ocupam um primeiro plano, conquanto não estejamos diante de experimentalismos estéreis. Efetivamente, o sentido do filme deriva das tramas e dos movimentos oscilatórios da forma.

*Alfredo Werney é arte-educador e músico. É autor do livro “Reencantamento do mundo; notas sobre cinema”.  Para ler outros textos desse autor visitem o blog “Staccato: notas, artigos e ensaios sobre cinema, música e literatura” (alfredowerney.blogspot.com).


François Truffaut, Hitchcock-Truffaut: entrevistas. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 270.

Lívio Tragtemberg. Musica de cena: dramaturgia sonora. São Paulo: Perspectiva, 1999, p.89.

In: Alfred Hitchcock: o cinema em construção. Vitória: Fundação Ceciliano Abel de Almeida, 1993, p. 87.

François Truffaut, Opt. Cit, p.281.

Compreendemos como “sons diegéticos” todos os sons que participam da narrativa do filme. Isto é, os sons que estão inseridos na própria cena: os ruídos do ambiente, as falas dos atores, as músicas tocadas ou escutadas pelas personagens, dentre outros.

O conceito de ponto de escuta, segundo Lívio Tragtenberg (Op. Cit. p.37 ), é semelhante ao de ponto de vista. Uma possibilidade de se realizar diferentes leituras sonoras para uma mesma cena. O ponto-de-escuta determina o sentido musical que o trilheiro quer imprimir na cena. Guia o compositor no processo de se traduzir imagens em sons.

In: Cinema e Realidade. São Paulo: Martins, 1959.

In: A construção do suspense: a música de Bernard Herrmann em filmes de Hitchcock. São Paulo: iEditora, 2003.

A expressão é de Rosinha Spiewak Brener, Op. Cit. p.144.

Lívio Tragtemberg (Op. Cit. p.134) afirma que a distinção corrente entre som e ruído é estéril para o campo da música de cena, já que este último é manipulado artisticamente, tornando-se um importante elemento estético da dramaturgia musical. Assim, a seguinte equação é sem procedência: som – elemento musical; ruído – elemento não-musical. Para tanto, o autor (partindo das idéias de Alberto Cavalcanti) nos propõe as denominações “sons reconhecíveis” – quando identificamos sua fonte sonora – e “sons irreconhecíveis” – quando não a identificamos com precisão.

Rosinha Spiewak Brener (Op. Cit.), coloca que as intervenções musicais hermmannianas estão rigorosamente sistematizadas. Desta maneira, não se trata apenas de um “estilo” musical e sim de um “sistema”. Acreditamos que a expressão é condizente com a música de Herrmann, portanto a adotamos.

François Truffaut, Op.Cit. p. 287.

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Este post tem 3 comentários

  1. Author Image
    Mura

    Meus parabens!
    Achei muito interessante seu texto.

  2. Author Image
    alfredo

    obrigado. visite meu blog. alfredowerney.blogspot.com

  3. Author Image
    Paula

    como posso citar estre artigo em um trabalho acadêmico?

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