Do que são feitos os quadrinhos?

Miriam Elza Gorender é psicanalista, membro do Círculo Psicanalítico da Bahia, professora adjunta do departamento de Neurociências e Saúde Mental da UFBa, doutora em psicanálise pelo Instituto de Psiquiatria da UFRJ.

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“Um livro é apenas papel pintado”
Fernando Pessoa

As HQ há mais de três décadas vêm sendo objeto de estudos com objetivos os mais variados, não sendo o menos importante destes o atingir uma definição satisfatória, ou pelo menos amplamente aceita, do que são as HQ. A tarefa é aparentemente simples. Afinal, são vistas quotidianamente, nas bancas de revistas, nos jornais, em tantos outros lugares e até como manuais de instrução. Como não saber o que são? E, no entanto, as definições oferecidas por estudiosos de vários campos mostram-se tão diferentes que se chega a duvidar que estejam falando da mesma coisa.

Por HQ usualmente se entende, no senso popular, e no Brasil, revistas vendidas em bancas com temas infantis e/ou de super-heróis, conhecidas como gibis devido à revista O Gibi[1], além de tiras diárias ou dominicais incluídas em seções específicas nos jornais.

Como conceituar, partindo deste conjunto reunido de forma intuitiva, e para dar apenas alguns exemplos, os cartuns (painéis isolados, contendo imagens acompanhadas ou não de texto, muitas vezes denominados cartoons ou, na sua versão para o português, cartuns), manuais de instrução, textos didáticos ou paradidáticos que incluem imagens em seqüência, obras antigas como panfletos medievais (Figura 1), hieróglifos egípcios e ideogramas orientais (cuja origem é a semelhança visual com os objetos representados), até chegar às pinturas rupestres pré-históricas? Quais destes seriam HQ, quais não, e principalmente, por quê?

Figura 1 – As torturas de São Erasmo (fragmento), circa 1460. (McCloud, 1998: p. 16)

Além disto, quais as relações da HQ com “meios” com os quais é freqüentemente comparada, como o cinema, o cinema de animação (desenhos animados), a pintura e a literatura (com a qual, em relação à HQ, se costuma fazer comparações pejorativas – a HQ como ‘subliteratura’)? Para começar, portanto, a entender melhor do que se trata, segue-se um resumo comentado das definições dos teóricos mais importantes no campo de estudo das HQ, e de suas justificativas e discussões sobre o tema. É bom lembrar que este é um tema de estudo relativamente recente, tanto que até mesmo a definição de seu objeto tem sido alvo de grandes polêmicas.

Quadrinhos como definidos pela presença de balões

Sonia Bibe-Luyten (1993) define as HQ a partir de um único elemento: o balão, ou seja, o texto contido por uma linha de contorno variado, e que aponta em sua extremidade para o personagem que exprime o pensamento ou a fala. Esta definição considera essencialmente as HQ como forma particular de junção de imagens e linguagem escrita. Como argumento, lembra que na Itália as HQ assumiram o nome de fumetti, ou seja, fumacinhas, significando balões. Os balões, segundo os defensores desta hipótese, caracterizariam as HQ por instituírem uma relação orgânica entre imagem e texto, diferente das obras nas quais o texto vem abaixo da imagem, servindo esta muitas vezes apenas como ilustração do primeiro. Com o surgimento do balão, os personagens passam a poder expressar-se com suas próprias palavras.

A partir desta definição, a autora coloca como marco que considera como inicial para o surgimento das HQ o aparecimento, em 1894, do Yellow Kid, criação de Richard F. Outcault para o New York World, jornal sensacionalista de propriedade de Joseph Pulitzer. Trazia este nome, o Moleque Amarelo, por se destinar inicialmente a testar a cor amarela, usada pela primeira vez na impressão de jornais. O surgimento desta tira é visto como marco pela autora por ter sido aí que pela primeira vez o texto falado foi colocado dentro da imagem, e não exterior à mesma (em geral abaixo ou acima dela).

O Yellow Kid, bem como as demais produções do gênero que se seguiram, fazia parte de uma estratégia de aumento de vendas de jornais de grande tiragem, tomando parte, desta forma, no nascimento da grande imprensa. Tal estratégia se incluía, também, numa verdadeira guerra de mercado entre dois grandes magnatas da imprensa norte-americana (e mais especificamente de Nova Iorque), William Randolph Hearst e Joseph Pulitzer; e seria devido à batalha pela posse dos direitos sobre o personagem (e seu autor) que iria se originar a expressão yellow press, ou imprensa amarela, correspondente à nossa imprensa marrom, como sinônimo de vulgaridade e sensacionalismo, já naquela época associados às HQ.

Esta definição, portanto, considera HQ tudo aquilo que contiver balões, e exclui toda e qualquer obra que não os tenha.

Jacques Marny é da mesma opinião:

Deste modo, no decurso dos séculos, e a pouco e pouco, nasce uma nova forma de expressão. Com efeito, se juntarmos:

– a sucessão de seqüências da Tapeçaria de Bayeux,

– o “filactério” da Tábua Protat,

Obteremos os dois componentes principais da banda desenhada.

A história da banda desenhada provém do encontro destes dois elementos, ou, dizendo doutra maneira, é a relação dinâmica entre imagem e texto. Serão necessários dois séculos para se chegar a uma concorrência satisfatória. (Marny, 1970. P. 34)

A Tapeçaria de Bayeux, ao longo de seus 70 metros, detalha em imagens seqüenciadas a conquista normanda da Inglaterra, começando em 1066

Figura 2 – Tapeçaria da Rainha Matilde (Bayeux) trecho

Quanto à Tábua Protat, trata-se de um pedaço de madeira gravado em 1370, que mostra um centurião romano levantando um dedo na direção da cruz, curvado para frente, enquanto de sua boca sai um filactério (espécie de tira comprida e aproximadamente retangular contendo palavras, e que recebeu este nome devido aos pergaminhos com preces usados pelos judeus em ocasiões cerimoniais, enrolados nos braços) onde se lê: Vere filius Dei erat iste, ou seja, “Sim, na verdade este homem era o Filho de Deus”.

Os fatos contradizem estes autores: em primeiro lugar, as HQ podem prescindir de palavras (e de fato prescindem, como o demonstram algumas obras, experimentais ou antigas, como os trabalhos de William Hogarth, ou as imagens religiosas da Paixão de Cristo), e em segundo lugar o uso do balão (ou filactério) é bem mais antigo que a invenção da imprensa. Em panfletos medievais, por exemplo, pode-se ver “fitas” com frases que apontam para os personagens, com função semelhante aos balões – os já citados filactérios.

Eisner

Will Eisner chama ao balão um “recurso desesperado”, ao tentar, segundo ele, capturar e tornar visível um elemento etéreo como o som. “Eles são disciplinares, pois exigem cooperação do leitor” (Eisner, 1996a. P. 26)[2]. Os balões devem ser lidos em uma ordem predeterminada, para que se saiba quem é o primeiro a falar, em um diálogo, ou em uma cena na qual há vários falantes. Eles são lidos seguindo as mesmas convenções do texto escrito, i.e.: da esquerda para a direita e de cima para baixo nos países de cultura ocidental, e em relação à posição do falante.

A origem dos balões é por ele atribuída à imagem das nuvens de vapor exaladas ao se falar em dias frios. “É lógico combinar aquilo que é ouvido com o que é visto como resultando em uma imagem visualizada do ato da fala” (Eisner, 1996a. P.26)[3]. No entanto, logo a seguir o próprio Eisner irá contradizer esta hipótese ao falar sobre as primeiras formas nas quais os balões se tornaram conhecidos, as quais nada tinham de semelhante a balões ou nuvens propriamente ditos. Exemplos disto são os filactérios, representados como simples fitas saindo da boca do falante, ou, nos frisos maias, colchetes que apontam para a boca.

Os balões chamaram, inclusive, a atenção de Lacan ao falar do nó borromeano:

…Pode parecer suspeita essa repetição do mundo como bolha. Ah! Aprendi que nas histórias em quadrinhos é por bolhas – nunca me dera conta porque, para dizer a verdade, nunca leio as histórias em quadrinhos, o que me envergonha, pois afinal, são maravilhosas. Não são nem mesmo histórias em quadrinhos, são foto-montagens, enfim, é sublime. São foto-montagens, li nas Nous Deux: foto-montagens com palavras e, para os pensamentos, é quando usam as bolhas! (Lacan, 1974-74: p. 55)

À medida que os balões passaram a ser amplamente empregados, nas HQ modernas, sua forma e as linhas de seu envoltório deram lugar a um convencionalismo cada vez mais estabelecido, e que toma parte na leitura assim como, por exemplo, a pontuação toma parte na leitura de um texto escrito. Começa a formar-se um repertório sempre crescente de formas e linhas à disposição da escolha e do estilo de cada autor.

Umberto Eco: HQ e linguagem

Umberto Eco (Eco, 1993. P.129-180), tomando como objeto de estudo um exemplo particular de HQ e esmiuçando o primeiro capítulo de Steve Canion, do autor Milton Caniff, publicado em 11 de janeiro de 1947, examina alguns aspectos estruturais das HQ, particularmente sua correspondência com o código da linguagem. Desta forma identifica, sob o título “A linguagem da estória em quadrinhos”, os seguintes elementos na HQ estudada:

1. Uma iconografia que, mesmo quando nos reporta a estereótipos já realizados em outros ambientes (como o cinema), usa de instrumentos gráficos próprios do gênero. Há elementos que utilizam o processo de visualização da metáfora ou do símile, como ver estrelas, roncar como uma serra, etc. Estes elementos iconográficos compõem-se numa trama de convenções mais ampla, que passa a constituir um verdadeiro repertório simbólico, podendo talvez ser até mesmo considerado como um léxico.

2. Uma semântica das HQ:

Elemento fundamental desta semântica é, antes de mais nada, o balão. Contendo, mais do que nos recordatórios (tiras escritas acima ou abaixo dos quadros), o texto escrito dos quadrinhos, expressa-se o balão ainda por sua forma. Robert Benayoun registra 72 espécies diferentes de balões. Terminando numa lâmina que indica o rosto do falante, indica ‘discurso expresso’; se unido ao falante por uma série de bolinhas, significa ‘discurso pensado’. Se circunscrito em contornos retalhados, de ângulos agudos, dentes de serra, em forma de porco-espinho, pode representar, alternadamente, medo, ira, explosão colérica, dor, uivo, boato, de acordo com uma precisa padronização dos humores. Seriam então uma espécie de sinal preliminar que impõe, para a decifração de signos contidos em seu interior, a referência a um determinado código. (Eco, 1993. P.145)

Outro elemento da mesma semântica seria o signo gráfico usado em função sonora,

com livre ampliação dos recursos onomatopéicos de uma língua. Tem-se, pois, uma tabela de ruídos, bastante rigorosa, que vai do “zip” da bolinha correndo ao “crack” da carabina… …Em muitos casos, trata-se de verdadeiras onomatopéias, já dotadas de significado em inglês, e que se transferem para outros países com pura função evocativa, perdendo a imediata conexão com o significado – tornando-se, de “signo” lingüístico que eram, em equivalente visivo do ruído, e voltando a funcionar como “signo” no âmbito das convenções semânticas das histórias em quadrinhos. (Eco, 1993. P. 145)

Apesar de os HQ fazerem uso da linguagem comum, empregam como significantes não só termos lingüísticos, mas também, segundo Eco, elementos iconográficos providos de significado unívoco (unívoco?).

3. Os elementos semânticos comporiam uma gramática de enquadramento, expressão tirada do cinema.

4. A relação entre os sucessivos enquadramentos mostra a existência de uma sintaxe específica, melhor ainda, de uma série de leis de montagem, que difeririam das leis de montagem cinematográficas de modo original, quanto mais não seja porque a montagem de uma HQ não tende, segundo Umberto Eco, a

[…] resolver uma série de enquadramentos imóveis num fluxo contínuo, como num filme, mas realiza uma espécie de continuidade ideal através de uma fatual descontinuidade. A história em quadrinhos quebra o continuum em poucos elementos essenciais. O leitor, a seguir, solda esses elementos na imaginação e os vê como continuum. (Eco, 1993. P. 147)

Exemplo: numa pesquisa de opinião feita por Evelin Sullerot sobre a capacidade de memorização de uma fotonovela, tornou-se patente que as leitoras submetidas ao teste recordavam várias cenas que de fato não existiam na página, mas resultavam subentendidas pela justaposição de duas fotografias. Sullerot examina uma seqüência composta de dois quadros (pelotão de execução disparando, condenado caído ao chão), referindo-se aos quais, as leitoras falavam longamente de uma terceira imagem (condenado enquanto caía). Este fenômeno poderá ser melhor apreciado ao se estudar o conceito de sarjeta, mais adiante.

Os vários elementos formais do relato funcionariam como condições de ação em algumas histórias, enquanto que em outras a estrutura formal do relato torna-se, ela própria, objeto de ironia ou de variação humorística, como acontece quando um personagem dirige-se a seu próprio autor ou parece ultrapassar o enquadre[4] no qual se encontra. Bom exemplo disto são as histórias da Turma da Mônica, de Maurício de Souza, no Brasil, principalmente as histórias que envolvem o personagem Bidu.

Em muitos casos, ainda segundo Eco, os personagens surgem como tipos característicos, bem definidos e fundados em estereótipos precisos. Exemplo: o herói dotado de poderes superiores aos do homem comum. Naturalmente, os super-heróis, dos quais dois dos mais conhecidos são certamente o Super-Homem e o Batman. [5]

Eco demonstra, desta forma, a existência de uma série de elementos lingüísticos, ou pelo menos com características que se assemelham ao que chama de linguagem, como uma função de léxico, semântica, gramática, etc. Resta verificar se outros elementos lingüísticos também se fazem presentes nas HQ, como por exemplo a sintaxe, ou as flexões verbais – haja visto a afirmação de Roman Gubern (1974: p. 109) de que nas HQ só há o tempo presente, não existindo os tempos verbais do pretérito ou do futuro, visto que tudo o que é mostrado em cada painel da HQ, mesmo que em flashback ou flashforward, apareceria como acontecendo no presente, por assim dizer sob os olhos do leitor. No entanto, não seria possível supor a existência de ‘marcadores’ que indicariam, precisamente, esta mudança de tempo verbal, da mesma forma como as conjugações e desinências o fazem para a linguagem verbal? Por exemplo, um enquadre ondulado pode sinalizar uma rememoração ou fato passado. E um dos usos mais comuns do texto escrito nas HQ é justamente a indicação do tempo: “enquanto isso”, “mais tarde”, “depois”, “alguns minutos atrás”

Mas Eco parece considerar a existência em si destes elementos lingüísticos como suficiente, estruturalmente, para uma delimitação do conceito das HQ, que de fato não é em parte alguma explicitado, mas do qual algumas indicações aparecem quando ele denomina estes elementos como uma linguagem. Será isso realmente o bastante para definir com maior precisão as HQ? A que linguagem estará ele se referindo? Antes de prosseguir, seria interessante examinar mais de perto alguns elementos, tidos implicitamente, pela maioria dos autores examinados, como inerentes à HQ, como as onomatopéias e o enquadre.

Outros elementos

Onomatopéia

De forma razoavelmente consistente, a maioria destes autores, e daqueles que se seguem, fazem referência, além do balão, a outros dois elementos que identificam como constitutivos da estrutura da HQ, quais sejam o enquadre (ou requadro, linha ou moldura de formato variado, mas geralmente retangular, que circunda e delimita cada painel) e a onomatopéia.

Sobre o uso das onomatopéias nas HQ, discorre Naumin Aizen. Etiologia: do grego Onomatopiia (ação de imitar uma palavra por imitação do som – ou criação de palavras),

…passando pelo latim Onomatopeia por via semi-erudita. Sugeridas ainda as denominações ecoísmo (Jespersen) e função fonestética (Firth)”. Definições:

  • “Entendem-se por onomatopéias as formações lingüísticas que imitam um determinado som natural” (Wolfgang Kayser, teórico da literatura, alemão)
  • “A onomatopéia, através dos seus fonemas, imita os ruídos da natureza ou os lembra de alguma forma. (…) A onomatopéia nunca é uma reprodução exata, mas uma aproximação. Os sons da língua possuem determinadas qualidades, os ruídos da natureza possuem outros, e uns não podem substituir estritamente os outros.” (Maurice Grammont, professor e gramático francês).
  • “As onomatopéias são palavras imitativas, isto é, palavras que pretendem imitar, através dos fonemas de que se compõem, certos ruídos como o grito ou o canto dos animais, o som dos instrumentos musicais, o barulho das máquinas, o ruído que acompanha os fenômenos da natureza, etc. A onomatopéia é sempre uma aproximação e nunca uma reprodução exata, como nem de outra forma poderia ser. Os fonemas da voz humana diferem no seu timbre e noutras qualidades dos ruídos da natureza que procuram imitar.” (in Moya, 1977: p. 270)

Ainda na discussão sobre as onomatopéias: “A tendência moderna é encarar as onomatopéias vocabulizadas com a sua categoria de vocábulos, subordinando-as assim às leis ortográficas.” (in Moya, 1977: p. 276), o que se justifica inclusive pelo uso de onomatopéias por escritores das mais diversas tendências, muitos dos quais sem qualquer influência das HQ, como Scholem Aleihem, Mario de Andrade, Oswald de Andrade, João Guimarães Rosa, Clarice Linspector, James Joyce, entre muitos outros inventariados por Aizen. Mais além:

“A analogia é que origina muitas palavras por processos onomatopaicos. Muitos lingüistas consideram tal processo bastante limitado, mas na verdade a criação de palavras por meio de onomatopéias é um processo bastante fácil e bem produtivo.” (in Moya, 1977: p. 276-277).

Outra questão é a de que a criação de onomatopéias não obedece simplesmente ao critério da similaridade sonora, o que pode ser comprovado pelo fato de que as onomatopéias utilizadas por uma língua diferem das encontradas em outra, embora haja casos de “importação”, como também acontece com palavras estrangeiras assimiladas por uma língua qualquer. Aizen aborda o tema através de uma “Tentativa de dicionário inglês-português das onomatopéias mais utilizadas nas histórias em quadrinhos”, no qual, por exemplo, o choro, que em inglês é baw, em português torna-se buá, e o gato, que em inglês faz meow, em português passa a fazer miau (in Moya, 1977: p. 298-306). Esta necessidade de uma tradução aponta para um uso da onomatopéia como elemento lingüístico. Cabe lembrar que a tradução remete a uma característica de arbitrariedade, tal como definida por Saussure em seu Curso de Lingüística Geral.

Também Cirne, ecoando Umberto Eco, afirma que “O ruído nos quadrinhos, mais do que sonoro, é visual.” (Cirne, 1972: p. 30).

Enquadramento

Já sobre o enquadramento: em um subtítulo de seu livro Comics & Sequential Art denominado “Framing Time”, Eisner aponta para questões que mais tarde McCloud irá desenvolver como o uso do enquadramento (o circundar as várias cenas, pertencentes aos diferentes quadros em cada seqüência considerada com linhas, em geral fechadas e que podem assumir as mais variadas formas, mas que com maior freqüência se apresentam como quadradas ou retangulares) como um sucedâneo de uma pontuação (no sentido de uma pontuação gramatical): “O ato do enquadramento separa as cenas e opera como um pontuador. Uma vez estabelecido e posto em seqüência, o quadro ou painel torna-se o critério pelo qual se mede a ilusão do tempo.[6]“. (Eisner, 1996 a: p. 28)

Também sobre o requadro ou enquadre, escreve Eisner: “Os painéis atuam para conter a visão do leitor. (…) Somando-se à sua função primária como moldura, a própria borda do painel pode ser usada como parte da ‘linguagem’ não-verbal da arte seqüencial”. (Eisner, 1996 a: p. 43-44)[7] Como ilustração, aponta o uso do enquadre com linhas onduladas como indicador de tempo verbal (flashback), o enquadre com ‘pontas’ para expressar som ou emoção, a ausência de enquadre formal, levando, segundo ele, à sensação de tempo e espaço ilimitados ou indefinidos. Afirma ainda que

A extensão das possibilidades do contorno é limitada apenas pelos requerimentos da narrativa e pelas restrições das dimensões da página. Porque a função do enquadre do painel está a serviço da história, ele é na verdade criado depois – ou em resposta a uma ação determinada pelo autor/artista.[8] (Eisner, 1996 a: p. 51).

O enquadre inclui não apenas o encapsulamento das diversas imagens em quadros, fechados ou abertos, mas aquilo que se escolhe mostrar em cada um deles. Ou seja, a visão oferecida pelo artista. O enquadre nas HQ não corresponde exatamente à montagem cinematográfica, que depende em parte da tecnologia, mas está mais essencialmente ligada ao processo criativo. Porém age, da mesma forma, como um corte arbitrário sobre a realidade mostrada pelo artista e percebida pelo leitor. Eisner chama também a atenção para a diferença entre cinema e HQ: enquanto o espectador de cinema assiste ao filme de forma passiva, não tendo controle sobre o ritmo em que este é projetado (mesmo levando em conta um certo controle limitado que a tecnologia de videocassete permite), nas HQ a leitura se faz de forma ativa e intencional, como num livro, o que permite, por exemplo (também como num livro), que o leitor se reporte de saída ao final da seqüência. (Eisner,1996 a: p. 38-41).

No entanto, ao incluir entre as alternativas possíveis a ausência de enquadre formal, Eisner confirma a hipótese de que este se constitui em recurso que, embora possível, e atualmente bastante utilizado, não é necessário à estrutura da HQ. Esta também pode existir sem um enquadre.

O sujeito e a sarjeta

Eisner escreve sobre letras como imagens. Dá como exemplo o desenvolvimento dos pictogramas chineses e japoneses, onde a imagem visual acaba por se tornar secundária e a própria execução do signo teria se transformado em arena para o surgimento de uma individualidade. Nisto, a arte caligráfica mostraria uma certa similaridade com a HQ, notadamente a HQ moderna, na qual se considera o efeito do estilo do autor (por exemplo, do desenhista) sobre a obra final. Falando da nova dimensão que surge para o uso do pictograma a partir da caligrafia, Eisner compara os diferentes estilos individuais de caligrafia com as HQ modernas, ao se considerar o efeito que o estilo do desenhista tem sobre o produto global. Compara também ambos os estilos à palavra falada, que é afetada pelas mudanças de inflexão e pelas variações de enunciação. Seria talvez o caso de pensar-se a utilização do estilo como uma das possíveis manifestações do sujeito (incluindo aí, e principalmente, o sujeito do inconsciente) na forma, seja forma das letras, pictogramas, desenhos, etc. (Eisner, 1996 a: p. 14). Nas artes plásticas, fala-se de estilemas, ou traços de estilo característicos de determinado artista, e que ajudam a identificá-lo.

Compara ainda a tira de HQ a uma passagem de escrita musical ou ao código Morse, no similar uso expressivo do tempo. Descreve a influência do número de quadros e de seu tamanho no ritmo da história e na percepção da passagem do tempo (por exemplo, quando há necessidade de uma compressão temporal, um número maior de quadros é utilizado), do mesmo modo que a forma dos quadros em si.


Figura 3 Eisner, 1996: p. 28

Diz Eisner: “In comics, timing and rhythm are interlocked”. (Eisner, 1996 a: p.28-30). Diz ainda que em todos os sentidos esta forma de leitura, que foi mal nomeada, tem direito a ser considerada como literatura, porque as imagens são empregadas como uma linguagem, a qual teria uma relação reconhecível com a iconografia e os pictogramas da escrita oriental. (Eisner, 1996b: p. 5)

Eisner define as HQ como ‘arte seqüencial’, termo que “pegou” nos EUA, como se fosse auto-explicativo. Mas McCloud parte desta definição e a refina. Num processo que me parece muito interessante, propõe, para começar, que o termo ‘visual’ seja incluído na definição, ou seja, “arte seqüencial visual”, para logo depois lembrar que a animação cinematográfica também se encaixaria numa definição deste tipo. O desenho animado é, afinal de contas, apenas arte visual em seqüência. A diferença básica entre o desenho animado e a HQ está no uso do tempo e do espaço. O desenho animado é seqüencial no tempo, mas não é espacialmente justaposto, como são as HQ. Assim, cada quadro sucessivo de um filme é projetado exatamente num mesmo espaço, enquanto cada quadro de HQ deve ocupar um espaço diferente. Desta forma, o espaço nas HQ equivale ao tempo no filme. No entanto, antes de ser projetado, pode-se dizer que um filme é apenas uma HQ em ritmo muito lento.

Tenta a seguir “arte visual seqüencial justaposta”. Ainda não serve, porque a palavra arte implica aí um julgamento de valor. Além disto, sendo as HQ um meio[9], este pode conter arte ou qualquer outra coisa que não se encaixe, necessariamente, na definição de arte. A idéia é do meio como um vaso que possa trazer dentro dele diversos tipos de conteúdo – o que pressupõe que o meio, como um vaso, preexista a qualquer tipo de conteúdo. Se a arte é, de acordo com Lacan, uma organização em torno de um vazio, como o vaso do oleiro é erigido em torno de seu oco, e mesmo considerando que a HQ não precisa tratar de arte, a HQ seria comparável não ao conteúdo do vaso, mas ao próprio vaso. Safouan sustenta que a linguagem não pode ser um meio, e certamente não um meio de comunicação. E se a HQ é estruturada como linguagem, não será meio, mas uma escrita com características estruturais que, justamente estas, é preciso definir de forma precisa.

McCloud descarta também a definição “imagens estáticas justapostas em seqüência deliberada”. Isto porque esta definição poderia prestar-se a confusões no que concerne ao texto escrito, o qual pode (embora não necessariamente) estar incluso numa HQ. Afinal, letras são apenas imagens estáticas, justapostas em seqüência deliberada para formar a linguagem escrita. Chega por fim à seguinte definição: “imagens pictóricas ou de outros tipos justapostas em seqüência deliberada, com a intenção de transmitir informação e/ou produzir uma resposta estética no espectador.”

A partir da sua definição, McCloud examina o histórico do uso das HQ. Ora, até a algum tempo atrás, e segundo vários autores, utilizando justamente definições que diferem da acima exposta, as HQ seriam um fenômeno específico do século XX.

Mas se for considerada a última definição, a história das HQ é bem mais antiga do que Bayeux. Por exemplo, uma seqüência de pinturas egípcias,


Figura 4 McCloud, 1994: p. 14

que deve ser lida em ziguezague, de baixo para cima, começando da esquerda, figurando desde a colheita de trigo e sua estocagem até o recolhimento dos impostos sobre a colheita pelo faraó Menna e o castigo infligido aos sonegadores.

De todos os modos, a imprensa provocou uma mudança radical, não na criação das HQ, mas na sua popularização e na definição de estereótipos que, apesar de parecerem determinar a forma das HQ por sua quase onipresença, não constituem, na realidade, sua verdadeira essência.

Numa tentativa de melhor especificar a definição que propõe, McCloud procura descobrir seus limites. Assim, para ele, os cartuns, que freqüentemente são classificados como HQ, em verdade não o seriam, por não estabelecerem qualquer seqüência. Permanece neste ponto a pergunta: por que é tão fácil e comum o enquadramento destes painéis como HQ? Para chegar ao ponto, é preciso ficar ainda um pouco mais com McCloud.

O capítulo, denominado “O vocabulário das HQ”, trata em primeiro lugar do que McCloud chama “ícones”, definidos por ele como qualquer imagem utilizada para representar uma pessoa, lugar, coisa ou idéia. Prefere este termo a “símbolo”, por estar este último, em sua opinião, muito “carregado”.

As HQ, no entanto, fazem uso particular de um tipo especial de ícone ao qual o autor chama “cartoon”. Não existe uma tradução apropriada para este termo, que não exprime exatamente nem a caricatura, nem o esboço, nem o desenho humorístico ou mesmo o desenho animado (sentido que a palavra também pode tomar). McCloud considera o cartoon como uma forma de amplificação através da simplificação. Desta forma, o que o cartoon realiza é a focalização de determinada imagem em determinados detalhes essenciais, eliminando o supérfluo. Considera que ao despojar uma imagem de detalhes até chegar à sua essência, seu sentido seria amplificado.

Isto ocorreria como parte de um processo de abstração progressiva, que iria desde uma imagem a mais “realista” possível, passando pelo cartoon simplificado, daí continuando até a escrita. Imagens e linguagem escrita são vistas por ele como dois lados de uma mesma moeda. A relação entre imagens e palavras já foi examinada de diversas formas, e McCloud a examinará com mais detalhes em um capítulo posterior. O que quero salientar aqui é que, do que é colocado por ele em termos de progressão do figurativo ao abstrato, transparece o uso que as HQ fazem da imagem, seja esta pictórica ou linguagem escrita. Pode-se perceber esta função da imagem pela definição que ele dá ao conceito de ícone. Este uso refere-se à imagem como significante. Neste sentido, o ícone de McCloud aproxima-se do pictograma descrito por Safouan[10], ou melhor, do que ele chama do escriba, que utiliza apenas imagens esquemáticas, ou seja, imagens que eliminam tudo o que possa refletir qualquer objeto em particular, não retendo senão o mínimo de traços necessários para evocar o termo em geral. “El factor de geometrismo está presente desde el comienzo y parece ser un modo de expressión tan natural como el de una técnica más realista” (Safouan, 1985: p. 33). Por isso pode-se falar de um vocabulário de HQ que inclua as imagens pictóricas e suas articulações entre si e com a linguagem escrita.

Em outro capítulo, McCloud lança mão de um conceito proveniente, ao que parece, da teoria da Gestalt, e que chama de closure (em português, fechamento). Define o fenômeno como a possibilidade de observar apenas partes de objetos e a partir destas perceber o todo, e relaciona-o ao jogo que os norte-americanos chamam de peek-a-boo, jogo infantil onde um indivíduo, em geral a mãe, alternadamente se esconde e se revela à criança pequena, gritando peek-a-boo ao reaparecer. Citando,

As infants, we’re unable to commit that act of faith. If we can’t see it, hear it, smell it, taste it or touch it, it isn’t there! The game of “peek-a-boo” plays on this idea. Gradually, we all learn that even though the sight of mommy comes and goes, mommy remains. (McCloud, 1998: p.62)[11]

Este fenômeno ocorre nos mais variados setores da vida diária, e o cinema depende dele. É esta capacidade que permite ao olho perceber imagens isoladas, projetadas ao ritmo de vinte e quatro por segundo, como uma imagem contínua em movimento. A televisão também depende disto, ao fazer um único ponto de luz percorrer a tela com incrível rapidez, delineando em seu trajeto as formas nela vistas.

McCloud fala das HQ como “…a medium of communication and expression which uses closure like no other, a medium where the audience is a willing and conscious collaborator and closure is the agent of change, time and motion.” (McCloud, 1998: p. 65).[12]

Com base no conceito de fechamento, McCloud chama a atenção para aquilo que o fechamento visa preencher, ou escamotear: o espaço em branco entre os HQ. Este espaço, em inglês, é denominado the gutter, ou a sarjeta. Sobre a sarjeta:

…and despite its unceremonious title, the gutter plays host to much of the magic and mystery that are at the very heart of comics! Here in the limbo of the gutter, human imagination takes two separate images and transforms them into a single idea. Nothing is seen between the two panels, but experience tells you that something must be there! (…) If visual iconography is the vocabulary of comics, closure is its grammar. (McCloud, 1998: p. 66-67)[13]

A diferença em relação ao cinema e à televisão é que nestes o fechamento é contínuo, na sua maior parte involuntário e virtualmente imperceptível. Mas não nas HQ: “Every act committed to paper by the comics artist is aided and abetted by a silent accomplice. An equal partner in crime known as the reader” (McCloud, 1998: p.68)[14]

É verdade que, antes dele, Fresnault-Deruelle já havia chamado a atenção para a sarjeta: “(…) le descontinu fonde l’univers de la bande dessinée…et se matérialise par les blancs entre les rectangles.” (Fresnault-Deruelle, 1972 : p. 50)[15]

O espaço em branco da sarjeta é imaginado por McCloud como um vazio onde o leitor é lançado, como um trapezista, para ser pego pelo quadro seguinte. No entanto, este vazio nos encara e convida, não a atravessá-lo, mas a encará-lo mais de perto.

Pensando em termos psicanalíticos, creio que se pode ir um pouco mais longe. Começo pensando na similaridade da brincadeira do peek-a-boo (jogo bastante universal de esconde-esconde, na verdade, e já relacionado (por Arminda Aberastury) com o jogo do fort-da. Jogo que, como sabemos, introduz um início de castração e uma passagem ao registro do simbólico no real da falta e do gozo, no Mais Além do Princípio do Prazer. A falta, aqui, figura como o que permanece ao fundo da cadeia associativa da linguagem. E é precisamente a falta, o vazio, que vai estabelecer a HQ como meio de expressão estruturado como linguagem.

Sendo, por sua própria definição, “imagens justapostas em seqüência deliberada”, um meio que envolve intervalos, fraturas, vazios enfim, estes vazios surgem como essenciais à própria definição. Tão essenciais, certamente, como o silêncio entre cada palavra falada ou escrita. Aí se revela a extrema felicidade do termo “sarjeta”. É, efetivamente, na sarjeta, mais entre os quadros do que dentro destes (com todo o seu celebrado apelo visual), que o imaginário poderá deixar cair todos os seus restos. O que é chamado fechamento nada mais é do que este recobrimento cotidiano da falta, a mesma falta na qual se recai entre duas palavras quaisquer.

O fato de a definição de HQ utilizada incluir os termos “seqüência deliberada” permite supor uma cadeia significante, que só pode partir de um sujeito, e que só pode dirigir-se a um sujeito, embora o sujeito ao qual ela (a cadeia) se dirige possa não ser o mesmo que num dado momento a esteja lendo. E sendo o vazio o lugar do sujeito por excelência, o lugar privilegiado para a emergência do sujeito nas HQ é a sarjeta.

Esta existe mesmo quando não se mostra, nos quadros separados por linhas negras ou sem separação distinta. Por exemplo, por comparação, quando se escreve uma frase sem qualquer separação entre as palavras, as fraturas são reconstituídas na leitura.

E mais, as imagens pictóricas nas HQ nelas não estão unicamente como o equivalente de uma fotografia, ou de uma paisagem natural, mas como elementos incluídos em uma cadeia significante[16]. Este efeito é assegurado justamente pela sua inserção em uma cadeia, e pela sua inscrição em uma rede significante. Esta rede significante das HQ, embora mais fluida e menos organizada, ao menos aparentemente, que a linguagem verbal, é o que permite falar de um léxico, gramática, sintaxe das HQ, etc. É o que permite a inclusão de cartuns de um só painel no universo das HQ, pois assim como uma palavra nunca está isolada, só podendo existir dentro da rede da linguagem, um cartum só pode ser compreendido como parte e elo de uma cadeia significante.

A HQ seria proposta não como “meio”, mas como estrutura no qual podem ser incluídos os mais variados conteúdos. A idéia de HQ como estrutura ajudaria a esclarecer certas afirmações até agora conflitantes e confusas. Por exemplo, a freqüente confusão feita entre “meio” e formato permitiu a alguns autores tomar as HQ de super-heróis e/ou as tiras de jornais de determinados países e, baseados nos elementos considerados comuns a estes, chegar a definições um tanto imprecisas da HQ. Ora, se a HQ é uma estrutura, esta pode comportar:

a) Diversos formatos, dos quais alguns exemplos seriam as tiras de jornais, revistas de diversos tamanhos e número de páginas, álbuns, graphic novels e quaisquer outros, inclusive os mais antigos (paixão de Cristo, panfletos medievais, manuscritos em figuras pré-colombianos, a coluna de Trajano e outros exemplos de pintura egípcia). A HQ, portanto, não pode ser definida por se encontrar num jornal ou numa revista, num livro ou manual;

b) Os mais variados gêneros, ou seja, a HQ pode tratar de horror, drama, comédia, tomar um cunho biográfico, histórico, autobiográfico, documental, ou qualquer outro imaginável. Sobre a questão do gênero, duas observações: em primeiro lugar, há um gênero do qual já se disse ser o único nativo e exclusivo das HQ, os super-heróis (não são mais exclusivos, isto é certo, haja vista a verdadeira inundação dos últimos anos de filmes e livros baseados em super-heróis; no entanto, a HQ parece continuar seu lugar de escolha); em segundo lugar, pode-se notar que a enumeração dos gêneros aplicáveis à HQ é de todas as formas semelhante à dos gêneros literários. Ou, melhor dito, aos gêneros narrativos, visto que se aplicam também, por exemplo, ao cinema.

A escrita pictográfica

Gubern, imbuído de preocupações semiológicas, mas ainda considerando a gênese da HQ a partir da indústria de comunicação de massa, oferece a seguinte definição de HQ: “estructura narrativa formada por la secuencia progresiva de pictogramas, en los cuales puedem integrarse elementos de escritura fonética” (Gubern, 1974: p.107). Em seguida, procura justificar cada parte em separado desta definição.

Para conejar, a “estrutura narrativa”: “presupone necesariamente la ‘secuencia’, o discurso sintagmático, que en los comics procede históricamente de las aucas y aleluyas y cuyo más remoto antepassado sería la escritura jeroglífica” (Gubern, 1974: p. 107). Note-se que o que autor parece entender por estrutura narrativa não se refere diretamente ao fato da narração, mas está aqui definido como “estruturas semióticas profundas” (Greimas & Courtés, 1979: p.165) que organizariam as formas do discurso. O que faz mais sentido, visto que uma HQ não precisa narrar coisa alguma, podendo, por exemplo, ser de natureza descritiva ou mostrar o mais absoluto non-sense. Interessa que esta estrutura narrativa pressuponha um eixo sintagmático (no sentido dado por Saussure).

Considera, também, a estrutura narrativa das HQ como sendo constituída mediante uma concatenação do que chama “pictogramas”, que descreve como, historicamente, a forma mais primitiva de escrita e que se define como “conjunto de signos icônicos que representan gráficamente el objeto o objetos que se trata de designar” (Gubern, 1974: p. 108). O signo icônico, por sua vez, é por ele definido como qualquer signo que, em alguns aspectos, ofereça semelhança com o denotado.

Safouan discorre sobre a escrita figurativa, que chama em princípio “pictografia”, e considera como mais clara a definição de Dolbhofer: “La marca general de toda escritura figurativa, sea pictográfica o ideográfica, reside en el hecho de que no se descubre allí ninguna relación entre la imagen gráfica y el valor fonético, la sonoridad del lenguage hablado.” (citado em Safouan, 1985: p. 31). Concordamos com Safouan quando este refuta, no entanto, a afirmação de Dolbhofer de que os signos gráficos representariam “idéias” universais, desvinculadas de qualquer linguagem determinada. Não apenas a “pictografia”, como descrita por Safouan, segue com freqüência a ordem sintática da língua de quem a escreve, como é feita para ser lida. Neste sentido, também, o conceito difere do de pictograma, usado por Gubern, uma vez que este considera o pictograma como o início de uma nomenclatura através da imagem. Safouan, ao tomar a pictografia como linguagem articulada, submete-a à lei da linguagem, assim como ao primado do inconsciente.

El hecho de que un extranjero, qualquiera sea su lengua, pueda leer el dibujo “casi seguramente” indica solamente que tenemos que vérnosla com un método de escritura todavía independiente de la estructura fonemática de la lengua, incluso si no es del todo de su gramática. En una palabra, la pictografía no simboliza ideas, pero transmite frases, enunciados. (Safouan, 1985: p. 31)

Outra questão interessante examinada por Safouan concerne às relações entre linguagem articulada, verbal e a linguagem gestual, da qual é exemplo a linguagem dos surdos-mudos. Esta comparação interessa de perto ao estudo da HQ. Uma noção preconcebida e que parece largamente difundida é a do gesto como “linguagem universal”, algo que faria referência a uma linguagem “natural”, algo como uma linguagem natural dos animais, de Adão e da humanidade antes de Babel, e que poderia ser compreendida universalmente sem necessidade de aprendizagem nem tradução. Esta noção está implícita naqueles que consideram a HQ “universal”, podendo atravessar todas as fronteiras de língua e nacionalidade, etc.

Safouan dá como exemplo um dos gestos que parecem mais universais, o de levar a mão até a boca aberta. “Esto gesto no es una expressión de hambre; significa la demanda de alimento, que es un asunto muy diferente” (Safouan 1985: p. 23). Além do que, no caso dos surdos-mudos, o gesto é utilizado pelo educador tão somente como meio auxiliar para a introdução do sujeito na linguagem, e não como disponibilidade expressiva liberadora. Finalmente, uma linguagem “natural” teria que pressupor uma linguagem sem erros ou falhas, sem espaço para a mentira e a ilusão, na qual a cada significante corresponderia um significado verdadeiro e unívoco. E uma das contribuições da Psicanálise para o estudo da linguagem é o estabelecimento da universalidade e inevitabilidade, não do sentido, mas do mal-entendido.

Tal posição fica ainda mais clara quando se considera o papel que os gestos com muita freqüência assumem nos delírios dos paranóicos. Um gesto qualquer, executado ao acaso por um desconhecido visto ao passar numa rua qualquer, pode assumir para o paranóico proporções apocalípticas. O levantar do dedo torna-se um insulto mortal, ou a senha para um plano de dominação. Na paranóia pode-se observar, levadas a extremos, as possibilidades do gesto para a dubiedade e o engano.

Eisner, apesar de considerar vários gestos como universais, não toma o que denomina “anatomia expressiva” como linguagem universal, mas como um vocabulário não-verbal do gesto: “The human body, and the stylization of its shape, and the codifying of its emotionally produced gestures and expressive postures are accumulated and stored in the memory, forming a non-verbal vocabulary of gesture[17]” (Eisner, 1996 a: p. 100). Mais adiante, fala do gesto como “quase idiomático”, e do papel do leitor na sua decifração:

A gesture, generally almost idiomatic to a region or culture, tends to be subtle and limited to a narrow range of movement. Usually, it is the final position that is the key to its meaning. The selection process here is confined to the context within a sequence. It must clearly convey intended meaning. The reader must agree with the selection. The reader decides whether the choice is appropriate. [18] (Eisner, 1996 a: p. 104)

A linguagem gestual, assim como as mensagens transmitidas por tambor, sinais de fumaça, código Morse ou quaisquer outros semelhantes, se definiriam melhor como “sistemas que se imponen a falta de voz” (Safouan, 1985. P. 23), aos quais se recorre quando a voz se revela ineficaz (pela distância, ou diferença de língua entre os interlocutores – caso no qual cada interlocutor fará referência à sua própria língua) ou está afetada por algum impedimento (como nos surdos-mudos, ou por motivos rituais, como os votos de silêncio).

Outro argumento a favor da pictografia como escrita é o da repetição das imagens, comparável à repetição de um mesmo vocábulo em uma frase:

Precisemos: para saber cómo está hecha la lengua, primero hay que escribirla y no a la inversa. Ahora bien, si la pictografía es la transposición gráfica, la objetivación de un relato o de una secuencia de discurso, ¿ cómo no darse cuenta, una vez que este relato fue puesto bajo nuestros ojos en imágenes esquemáticas, que la misma unidad, el mismo vocablo se repiten en la misma secuencia? (…) Ahora bien, si nadie vio jamás a un mismo comensal estar sentado a su izquierda y a su derecha en la mesa, esta ubicuidad es un hecho en la “pictografía” como lo próprio del término, ya que aparece bajo la vista en varios lugares del relato.

El escriba no tiene necesidad, pues, de ser gramático para escribir! Escribiendo se transforma, o puede convertirse en tal. Se hace gramático en tanto que las imágenes de la pictografía no son, repitámoslo, dibujos de objetos, sino la escritura de frases hechas com palabras. (Safouan, 1985. P. 33-34)

É de se crer que, se o escriba, ou o autor de HQ, escreve segundo uma gramática, embora possa não saber nada sobre isso, inversamente, o leitor de HQ deve poder refazer a operação, também segundo uma gramática (ou seja, um sistema de regras que desempenhe a mesma função que a o sistema de regras que ordena a escrita fonética), a fim de efetuar sua leitura.

Por exemplo, ao deparar-se com estes painéis,

Figura 5 McCloud

a tendência mais “natural” será a de lhes atribuir uma significação conjunta: um homem tirando o chapéu, ou realizando uma saudação. Sem entrar na questão da representação esquemática de “homem” ou “chapéu”, e mesmo sem precisar fazer referência mais extensa à repetição dos termos, examinada anteriormente, uma pergunta, não tão óbvia, se impõe: por que a significação imediata dos painéis é dada como um tirar o chapéu? Por que não estaria o “homem” (ou, se soar melhor, “ele”), ao contrário, colocando-o sobre a cabeça? A resposta só pode ser que a significação ocorre de acordo com o percorrer de uma cadeia significante, e este é ordenado de acordo com o sentido da leitura para o ocidental: da esquerda para a direita e de cima para baixo.

Para nossos propósitos (visando a psicanálise) podemos, portanto, conceituar as histórias em quadrinhos como uma escrita de imagens. Quanto ao que esta escrita pode contar, isto já é outra história.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1) BIBE-LUYTEN, Sonia. 1993. O Que É História em Quadrinhos. São Paulo: Brasiliense, Coleção Primeiros Passos n°144.

2) CIRNE, Moacy.

a) Bum! A Explosão Criativa dos Quadrinhos. Petrópolis: Vozes.

b) Para Ler os Quadrinhos. Petrópolis: Vozes.

c) A linguagem dos quadrinhos. Petrópolis: Vozes.

d) Uma Introdução Política aos Quadrinhos. Rio de Janeiro: Angra-Achiamé.

3) ECO, Umberto.

a) Viagem na Irrealidade Cotidiana. Rio de Janeiro: .Nova Fronteira.

b) Apocalípticos e Integrados. São Paulo: Perspectiva.

4) EISNER, Will.

a) .1996a [1985] Comics & sequential art. Florida: Poorhouse Press.

b) 1996b. Graphic storytelling. Florida: Poorhouse Press.

5) FRESNAULT-DERUELLE, Pierre. 1972. La Bande Dessinée. Paris: Hachette.

6) GASCA, Luis & GUBERN, Román. 1991. El discurso del comic. Madrid: Cátedra.

7) GUBERN, Roman. 1974. El Lenguaje de los Comics. Barcelona: Península.

8) MARNY, Jacques. 1970. Sociologia das Histórias aos Quadradinhos. Portugal: Civilização.

9) MASOTTA, Oscar. 1982. La Historieta en el mundo moderno. Barcelona: Paidós.

10) MCCLOUD, Scott. 1998. Understanding comics. New York: HarperCollins.

11) MOYA, Álvaro de.

a) 1977. Shazam!. São Paulo: Perspectiva.1996.

b) História da história em quadrinhos. São Paulo: Brasiliense

SAFOUAN, Moustapha. 1985. El inconsciente y su escriba. Buenos Aires: Paidós.


[1] Gibi, no Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa, significa meninote preto, negrinho, constando como gíria.

[2] They are disciplinary in that they demand cooperation from the reader. (Eisner, 1996a. P. 26)

[3] It is logical to combine that which is heard within that which is seen resulting in a visualized image of the act of speaking” (Eisner, 1996a. P.26)

[4] Aquela linha retangular ou de outra forma qualquer que limita a ação em cada painel ou quadro da HQ.

[5] Lacan chega a comentar sobre esta tendência ao estereótipo e à banalização nas HQ, inclusive no que se refere à vulgarização dos conceitos psicanalíticos:

…Por que as imagens por nós descobertas se banalizaram de alguma maneira?

Será somente por causa de um certo efeito de familiaridade? Aprendemos a viver com tais fantasmas, somos vizinhos do vampiro, do polvo, respiramos no espaço do ventre materno ao menos por metáfora. As revistas em quadrinhos também, com um certo estilo, o desenho humorístico, fazem para nós viver tais imagens primordiais da revelação analítica e fazer delas um objeto de diversão corrente: no horizonte o relógio mole e a função do Grande masturbador guardado nas imagens de Dali.(Lacan, 1961-62: seminário de 13 de dezembro de 1961, p. 7)

[6] The act of framing separates the scenes and acts as a punctuator. Once established and set in sequence the box or panel becomes the criterion by which to judge the illusion of time

[7] The panels act to contain the reader’s view. (…) In addition to its primary function as a frame, the panel border itself can be used as part of the non-verbal ‘language’ of sequential art. Eisner, 1996a: p. 43-44

[8] The range of possibility of outline is limited only to the requirements of the narrative and the constrictions of the page dimensions. Because of the function of the panel outline is in the service of the story it is actually created after – or in response to the action determined by the author/artist.

[9] McCloud é tão influenciado por McLuhan que seu livro, Understanding Comics, emula em seu título o Understanding Media, de McLuhan.

[10] Ver mais adiante, sobre a escrita pictográfica.

[11]Quando crianças, somos incapazes de realizar este ato de fé. Se não podemos ver, ouvir, cheirar, provar ou tocar, então não está lá. A brincadeira de peek-a-boo joga com esta idéia. Gradualmente, todos aprendemos que mesmo que a visão da mamãe vá e venha, a mamãe permanece. (McCloud, 1998: p.62)

[12] …um meio de comunicação e expressão que usa o fechamento como nenhum outro, um meio onde a audiência é um colaborador voluntário e consciente, e o fechamento é o agente de mudança, tempo e movimento.

[13] …e a despeito de seu título sem-cerimônia, a sarjeta é responsável por muito da mágica e do mistério que estão no próprio coração das HQ. Aqui no limbo da sarjeta, a imaginação humana toma duas imagens separadas e as transforma numa única idéia. Nada é visto entre os dois painéis, mas a experiência lhe diz que algo deve estar lá! … Se a iconografia visual é o vocabulário das HQ, o fechamento é sua gramática

[14] Todo ato colocado no papel pelo artista de quadrinhos é auxiliado e sustentado por um cúmplice silencioso. Um sócio em partes iguais no crime conhecido como o leitor.

[15] …o descontínuo funda o universo das HQ… e se materializa nos vazios entre os painéis.

[16] Ver o capítulo sobre o olhar como objeto a.

[17] O corpo humano, e a estilização de sua forma, e a codificação de seus gestos e posturas expressivas emocionalmente produzidos estão acumulados e estocados na memória, formando um vocabulário não-verbal do gesto. (Eisner, 1996 a: p. 100)

[18] Um gesto, geralmente quase idiomático de uma região ou cultura, tende a ser sutil e limitado a uma pequena série de movimentos. Geralmente é a posição final que dá a chave para o seu significado. O processo de seleção aqui está confinado ao contexto dentro de uma seqüência. Ela deve claramente transmitir o significado pretendido. O leitor precisa concordar com a seleção. O leitor decide se a escolha é apropriada. (Eisner, 1996a. P. 104)

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Este post tem 3 comentários

  1. Author Image

    Belíssima pesquisa e apresentação. Parabéns. O mundo dos quadrinhos agradece.
    (Franco de Rosa)

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    Jorge Mendes (Jorge Lyrio)

    Excelente a Universidade funcionando como reprodução da cultura. Tenho uma palestra a fazer e bebi algumas referências nesse diálogo virtual.
    Muito grato J. Mendes.)jorge lyrio)

    Olhe se tiver tempo meu trabalho nesse:
    http://www.bahiaespirita.com.br

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