Educação visual para os fins do mundo

Milton José de Almeida*

Quando falamos em educação visual estamos nos referindo a uma idéia de que o olhar é educável ou é suscetível de receber uma educação. Lembremos que educável não quer dizer ensinável. Ensinável tem a ver com coisas pedagógicas e escolares, com um determinado fim ou objetivo que normalmente as escolas e os professores parecem saber e os alunos nem tanto. Educável é mais amplo, não escolar, e sim cultural. A cultura, se eu quiser pensar assim, educa. Sem ficar muito em definições definitivas, quando penso em educação visual penso em algo que faz parte da cultura, como a educação do paladar, do olfato, da audição, do tato, da inteligência… qualquer uma dessas educações são partes menores de algo maior e abrangente a que chamamos cultura.

Toda manhã, toda tarde, toda noite o mundo termina de inúmeras e diferentes maneiras. Terminar pode significar apagar, sumir da visão, desaparecer, deixar de aparecer. Com um fechar de olhos. Nem sempre o fechar de olhos faz o mundo desaparecer da visão. Os olhos interiores sonham, e nos sonhos veem pessoas, coisas, lugares… que olhos abertos não veem. Que olhos são esses que enxergam para dentro, por dentro? De olhos abertos posso olhar com você o mesmo lugar. De olhos fechados, você não pode olhar comigo os lugares que vejo. As coisas, pessoas, objetos, de olhos fechados, existem só para mim. Então, se você falar em educação ou pedagogia do olhar, a qual olhar você se refere? Não precisa responder, vamos andando.

O mundo nunca vai acabar, quando acabar nem perceberemos. O mundo começa e recomeça a todo instante. Há instantes de recomeços e inaugurações e revisões, e instantes de fins e finalizações e visões. Entre eles transcorre nossa vida.

Nas ruas em que sempre passo, em Campinas, vejo os instantes em que o tempo oscila e que o mundo parece terminar nas ruínas de uma cidade que se mata, se deixa apodrecer e gosta de ser feia. Seus habitantes cruzam a cada passo com cenas do fim do mundo. Anda-se entre ruínas, casas podres, terrenos machucados, muros estuprados, telhados decepados. É tão feia que dói, é tão feia tão feia que fica aureolada de beleza, a beleza das coisas abandonadas e tristes. A beleza do belo se exilou em outras paragens. Aqui, nesta cidade, está a beleza do feio. É uma beleza horrível que nos mostra todo o tempo que somos mortais, que passamos pelo mundo como essas carcaças de construções encalhadas no tempo. Olhando-as todo dia, podemos ver claramente o que se costumava chamar de a transitoriedade do tempo, a corrosão. Essas ruínas despudoradas mostram suas mal-feituras, suas intimidades gangrenadas. Se você não desviar o olhar com medo ou nojo, você terá a experiência da beleza do feio. De degrau em degrau o feio alcança o horroroso.

E você começa a aprender o que nenhuma escola vai ensinar. E você começa a entender – entender é um passo para aceitar – e você começa a entender uma cidade que não tem vergonha de se mostrar feia. Ninguém mora nesta cidade sem ter ao lado ou perto algo muito feio e maltratado. As pessoas que vivem aqui detestam a cidade, por isso a enfeiam.

Ela não passou por nenhuma guerra. No entanto, ela parece que acabou de sair de uma. Quando reformam ou constroem algo em seus terrenos a feiura continua, a feiura e a ruína do novo. O novo dói também. É tão feio o novo que as ruínas em frangalhos, os terrenos entulhados, os muros caídos adquirem a beleza da nostalgia e da realidade do que está se acabando, do que está à espera do fim, do que está à deriva. Parece que a cidade foi atacada sete vezes por pragas bíblicas.

Ah, a feiura também é pedagógica, o olhar se educa de um jeito ou de outro com o que lhe é oferecido. A violência visual é um pesadelo de olhos abertos.

Tenho fotografado as ruínas da cidade, a beleza delas e sua feiura que não segue regras de bom comportamento visual. Todos os dias a esses lugares são acrescentados novos lixos, novas escritas e desenhos as cobrem. Suas paredes caem dia a dia um pouco, às vezes todas de uma vez. Seus telhados já voaram, em algumas permanecem e pessoas as habitam.

Essas fotos me encaminham e orientam as pinturas que faço. Essas pinturas são ao mesmo tempo comentários artísticos e visuais, e uma maneira de, ao transfigurar em ‘beleza’ plástica o horrível fotografado, eu possa suportá-lo, e emprestá-lo para o olhar de outras pessoas.

Fins do mundo, em fotos e pinturas1.

*Milton José de Almeida é Coordenador associado do Laboratório de Estudos Audiovisuais OLHO da Faculdade de Educação da Unicamp. Professor na graduação e pós-graduação. Autor dos livros Imagens e Sons, Editora Cortez e Cinema Arte da Memória. Pintor e gravurista.

[1] Fotos e pinturas sem título de Milton José de Almeida.

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Este post tem 2 comentários

  1. Author Image
    Sheyla

    Professor Milton
    o que dizer segundo a pedagogia do olhar frente ao domínio da “beleza” de casas e apartamentos dos condomínios da cidade? também não podemos olhá-los através da cultura do feio ? pois EU olho e vejo também a violência, solidão e outros sentimentos que me chegam aos borbotões….

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