Escutando o Cinema

Gerson Rios Leme possui graduação em Música Licenciatura Plena pela Universidade Federal de Santa Maria (2003) e Mestrado em Educação pela mesma instituição (2006). Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Educação Musical, atuando também nos seguintes campos: música e tecnologia, tecnologia e educação, música e som para audiovisual, teatro e meios virtuais, produção e direção musical. Trabalha fluentemente com softwares para criação e edição de música e MIDI como Steinberg Cubase, Nuendo, Wavelab, Audacity, seus VST e VSTi. É professor do curso de Produção em Mídia Audiovisual, ana UNISC. Contato: limaleme@terra.com.br

A cada momento das nossas vidas somos bombardeados incessantemente por um complexo universo sonoro, seja próximo, ao redor, distante e mesmo dentro de nós. Esta riqueza de sons é percebida, em maior ou menor amplitude, conforme a capacitação e sensibilização de cada pessoa, sendo o somatório dos diferentes estímulos sonoros a que somos expostos conscientemente ou não em nosso dia-a-dia.

Tudo o que vemos está ligado automaticamente à presença ou ausência de algum evento sonoro característico, baseado numa biblioteca interna de sons e silêncios que vamos montando durante a vida, seja por associação direta – sons que conhecemos e sabemos serem referentes a uma situação, ambiente, identidade sonora de algum objeto ou ação específica – ou indireta – sons que subentendemos ter determinadas características a partir da desconstrução do som original e conseqüente recombinação de sons conhecidos, buscando uma categorização compreensível – ou ainda a criação de novas categorias – sons completamente desconhecidos num primeiro momento que passam a compor associações diretas posteriormente.

Uma das linguagens que utiliza ricamente os recursos sonoros aliados à imagem em movimento é o cinema, seja representando o reflexo do nosso cotidiano, seja ampliando a percepção e as possibilidades estéticas conforme características intrínsecas a cada gênero de produção cinematográfico.

Para compreender o emprego do som nos meios audiovisuais é preciso diferenciar ouvir de escutar, visto que tal discernimento é essencial para fazer uso crítico-reflexivo dos elementos sonoros com o objetivo de agregar valor significativo às produções cinematográficas.
Ouvir está relacionado à capacidade fisiológica de perceber os sons que sensibilizam o aparelho auditivo, através da soma de processos físico-químicos específicos. Ouve-se o tempo todo, quer queiramos ou não. Já escutar refere-se à opção que podemos fazer de ouvir algo atentamente, prestar atenção, esforçar-se para ouvir claramente determinado material sonoro, sendo uma ação voluntária do sujeito.

Para perceber esta diferença na prática, basta prestarmos atenção aos sons que nos cercam a cada momento, escutando-os e procurando listá-los. Deste modo, sempre notaremos a existência de um número mais expressivo de sons presentes na construção da atmosfera sonora que contextualiza cada situação, diferentemente de uma primeira audição. A constante prática de escutar leva à percepção gradativamente ampliada do universo sonoro à nossa volta.

De modo geral, os sons podem ser categorizados em três camadas distintas* , a saber: voz, efeitos sonoros e música, que compõem a trilha sonora das nossas vidas e, se forem entendidas as suas características particulares, ajudam a compreender o universo sonoro dos discursos fílmicos, além do contexto sonoro no qual estamos imersos.

A voz compreende qualquer tipo de diálogo, monólogo, narrações, locuções e comunicação objetiva entre personagens ou entre personagem e espectador. Os efeitos (FX), por sua vez, englobam todo e qualquer som usado para caracterizar ambiência geral, particularidades sonoras de um local, objeto ou de ações. Já a música, refere-se a qualquer conteúdo musical utilizado durante o discurso fílmico.
Nenhuma delas é a mais importante, todas têm suas funções e aplicações específicas, possuem a capacidade de reforçar efeitos positivos ou negativos, ajudar ou atrapalhar a dramaticidade de cada cena, sendo fundamental, por isso, fazer o uso consciente da combinação e relação entre elas e delas com a imagem. Há ainda a exigência de um conhecimento técnico e prático das possibilidades que os elementos sonoros podem agregar a um filme, empregando de modo crítico-reflexivo a presença ou ausência das mesmas, atendendo às escolhas estéticas, limitações e funções definidas conforme cada realização audiovisual, o que difere claramente da simples sobreposição de camadas e conteúdos, que por si só, não leva a nada mais que um experimentalismo injustificado e não fundamentado.

Em todas as categorias, para se chegar ao produto final, passa-se pelos processos de captação direta de som ou som in loco, que diz respeito ao áudio gravado na ação de cada cena; pela edição de som, que visa corrigir, ajustar e potencializar a relação e o efeito funcional entre as diferentes camadas do material sonoro, além de gravar áudios adicionais a partir de biblioteca de efeitos, criação de sons específicos e dublagem de vozes ou de efeitos sonoros (foley); pela mixagem, que tem como foco o equilíbrio final entre todas as camadas de som do filme e a união de todo o material sonoro em formato de acordo com a necessidade do produto mono, estéreo ou surround; além da masterização, que nada mais é do que o arquivo final que contém todo o áudio que será anexado ao vídeo e servirá como base para duplicação.

Som e imagem podem estar relacionados a partir de diferentes processos criativos. De modo geral, a forma mais comum é o material sonoro ser construído a partir da imagem, na pós-produção, agrupando todos os elementos – voz, efeitos e música – com a relação entre eles sendo determinada pelo resultado da seqüência de ações, com o som ajudando a ambientar as ações ou estabelecendo uma relação mais direta com a imagem, podendo seguir os movimentos dos personagens como em momentos de E o Vento Levou (Gone With the Wind, 1939), onde ao descer as escadas, a orquestra pontua com uma melodia descendente a cada passo dos personagens, ou em E.T. – O Extraterrestre (E.T. – The Extra-Terrestrial, 1982), quando o movimento ascendente dos personagens levantando vôo e depois pousando com uma bicicleta é acompanhado pela orquestra, por exemplo.

Outra possibilidade é o material sonoro ser concebido em paralelo ao material visual, realidade vista com freqüência em animações, com a interação entre as partes se fazendo necessária, tendo em vista que se criam universos sonoros e visuais com leis próprias. Vide, por exemplo, Pixar Short Films Collection Volume 1 (2001) e A Noiva Cadáver (Tim Burton’s Corpse Bride, 2005), que de modo simplificado, trabalham de forma simultânea os processos de gravação de vozes, animação dos personagens com movimentos labiais sincronizados com as falas e algumas músicas, além da inserção posterior dos efeitos e da música complementar.

Os elementos sonoros ainda podem servir de base para inspirar um roteiro, seqüência de cenas, ambiências visuais ou ações. Neste caso, a trilha sonora é concebida anteriormente à parte visual, prática comum, por exemplo, na linguagem do videoclipe, que parte da música já composta e gravada por um artista ou banda, procurando traduzir seus conceitos a partir da inserção de imagens pontuais.
Ainda há a possibilidade de dois ou mais destes processos criativos ocorrerem em um filme de modo simultâneo ou em diferentes momentos, variando conforme decisões conjuntas da equipe de produção e do diretor, bem como de necessidades peculiares a cada produto. Um exemplo disso pode ser visto em Kung Pow – O Mestre da Kung-Fu-São (Kung Pow: Enter the Fist, 2002), no qual foi feita uma compilação de filmes antigos de artes marciais para contar uma nova história, totalmente dublada e complementada com material original de vídeo onde o diretor julgou necessário. Isso quer dizer que, para se chegar ao resultado final, imagem e som foram sendo inseridos no decorrer do processo de criação.

Sou músico de formação, cinéfilo de paixão e técnico de áudio por conseqüência; o que me levou a poder trabalhar com música e áudio executando seguidamente mais de uma função em um filme, trabalhando com estes processos descritos anteriormente na relação de som e imagem para produções audiovisuais variadas, dentre elas, o cinema.

Conhecer tais processos é indispensável para aperfeiçoar a comunicação entre todas as partes envolvidas na criação e execução de projetos de áudio para filmes, visto que o cinema é sabidamente uma arte colaborativa, onde a soma de diferentes segmentos especializados tais como direção, roteiro, atores, figurantes, técnico de som, maquiadores, fotografia, trilha sonora, figurino, edição de vídeo, locação, cenários, edição de som, entre tantas outras, trabalham através de uma relação direta, determinante, imortalizada, cujo reflexo é observado no produto final de modo incontestável.

Outro fator a ser considerado é a conseqüência das constantes transformações relativas ao audiovisual associadas à busca pela profissionalização no Brasil. Estas vêm gerando o crescimento da demanda de cursos técnicos de formação, graduações, especializações e pós-graduações oferecendo possibilidades para a otimização de resultados em todas as áreas do saber envolvidas no processo de pré-produção, produção e pós-produção, levando a um entendimento mais amplo do papel complementar destes diferentes campos que têm no cinema um objeto específico de estudo.

Em relação ao áudio, estas transformações são traduzidas em alterações no que diz respeito às técnicas de captação e edição, disponibilidade mercadológica de recursos tecnológicos variados quanto à qualidade, funções específicas e preço, capazes de favorecer tanto o exercício criativo da profissão quanto a execução de tarefas cada vez mais complexas no âmbito da dublagem, criação de atmosferas sonoras, desenho e design de som, criação e execução de trilhas musicais, além de publicações e pesquisas científicas.

Trabalhar nesta área significa traduzir idéias, conceitos e histórias na forma de áudio em conjunto com a imagem e todos os outros campos que constituem o objeto fílmico, buscando atingir o equilíbrio entre diferentes expressões artísticas que somadas tornam mágica a arte do cinema.

Mas fundamental à criação da parte sonora do audiovisual é – além dos conhecimentos técnicos, do domínio de recursos tecnológicos específicos ao exercício da profissão, da sensibilidade artístico-cultural e exercício crítico-reflexivo no manuseio e na composição do discurso sonoro – o diálogo com o diretor, para entender qual é a concepção inicial formada por ele de imagem sonora geral, que, sem dúvidas, serve como valiosa referência para o produto final. Além disso, não se deve ter o receio de levantar questões como: Até que ponto a trilha sonora é necessária? O quanto é preciso ouvir o que se vê? O som de uma cena deve ser um reflexo literal da realidade? Para ter estas respostas, basta escutar o cinema!

*Não há consenso quanto à categorização do material sonoro, mas entendo que os conceitos apresentados neste artigo englobam todo o tipo de som possível de ser utilizado nas produções audiovisuais.

Algumas referências bibliográficas:
BERCHMANS, Tony – A música do filme: tudo o que você gostaria de saber sobre a música de cinema, 2. ed. – São Paulo: Escrituras Editora, 2006.
MANZANO, Luiz Adelmo Fernandes. Som e imagem no cinema: a experiência alemã de Fritz Lang. São Paulo: Perspectiva : FAPESP, 2003
TARKOVSKIAEI, Andreaei Arsensevich, 1932 – 1986. Esculpir o tempo / Tarkovski. 2ª ed. – São Paulo : Martins Fontes, 1998

Filmografia citada:
A Noiva Cadáver (2005) – http://www.cineplayers.com/filme.php?id=1163
E o Vento Levou (1939) – http://www.cineplayers.com/filme.php?id=284
E.T. (1982) – http://www.cineplayers.com/filme.php?id=285
Pixar Short Films Collection Volume 1(2001) – http://www.amazon.com/Pixar-Short-Films-Collection-1/dp/B000V1Y44G
Kung Pow – O Mestre da Kung-Fu-São (2002) – http://www.arenadvd.com.br/arenadvd/product.asp?pf_id=dv30716&dept_id=4

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Este post tem um comentário

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    Caro Gerson,

    Quero parabenizá-lo pelo belo artigo sobre a importância do ouvir realmente o audio do audiovisual.
    Aproveito para sugerir um livro que também fala de forma brilhante sobre a grandeza da dimensão auditiva e do som:

    Nada Brahma, de Joachim Berendt.

    Este livro mostra, com uma profusão de argumentos e pesquisas de cientistas de todas as áreas do pensamento, a grande importância que tem o som nas nossas vidas, em todas as suas dimensões. Vale (muito) esta leitura.

    Forte abraço,

    Eugênio Matos

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