Film Noir

Introdução

Para compreender grande parte do universo do film noir, deve-se recorrer a uma rápida apresentação introdutória sobre período histórico e sobre certas manifestações artísticas que precederam o início das produções consideradas noir.

O cinema mudo alemão havia sido muito marcado pela escola Expressionista, e o sucesso desses filmes fez com que vários diretores dessa escola chamassem a atenção dos estúdios de Hollywood. Diretores como o austríaco Fritz Lang – que muito influenciou o film noir principalmente com o filme M, o vampiro de Dusseldorf (1931), o qual fundou aspectos visuais e formas de abordagem de personagens posteriormente muito utilizados no cinema noir – e o alemão Murnau – que não necessariamente chegou a realizar um filme noir, mas no filme Aurora (1927) há a presença de uma femme fatale primitiva e de elementos visuais marcadamente expressionistas – migraram para os Estados Unidos e lá realizaram algumas obras que tiveram muita influência dos aspectos expressionistas; além deles, também outros diretores de origem alemã ou austríaca rumaram para o cinema norte-americano, o que fomentou produções bastante ligadas ao pessimismo europeu e à influente estética Expressionista.

Ainda discorrendo sobre os aspectos mais ligados ao film noir como produto cinematográfico, e não mostrando o processo histórico que ajudou a formar a mudança de gostos do público de cinema norte-americano, deve-se afirmar o quão importantes são o florescimento da literatura policial – principalmente de Raymond Chandler, James M. Cain e Dashiel Hammett – e do então inovador uso da profundidade de campo aplicada em filmes como Cidadão Kane (1941) e Soberba (1942), ambos de Orson Welles.

No que tange à história dos Estados Unidos, além do período do entre-guerras – que criava dúvidas e um clima de segurança perante a iminência de uma então provável Segunda Guerra –, passava-se pelos anos da Grande Depressão, a qual assolou o país, fazendo com que várias pessoas se suicidassem – devido à perda quase que instantânea de todos os seus bens – e outras permanecessem por muito tempo desempregadas e sem chance de vislumbrar uma melhora de vida. Essa situação fez com que crescesse na população um sentimento pessimista, o que acarretou uma substancial mudança de gosto pelo que se via nas telas de cinema. Então, passados os anos da Depressão e com a iminência confirmada da Segunda Guerra Mundial, a população norte-americana, que já havia perdido sua inocência, passou a desejar filmes com temáticas mais adultas e é nesse momento em que o film noir se insere.

Referências do cinema noir

Mesmo antes de as obras mais representativas do cinema noir serem lançadas, alguns filmes já apresentavam características que viriam a compor o corpus do gênero.  Em O Falcão Maltês (1941), de John Huston, há um detetive durão e uma femme fatale – aspectos temáticos muito recorrentes na filmografia noir –, mas o enredo ainda é contado nos moldes do gênero policial tradicional. Já A Sombra de uma Dúvida (1943), de Alfred Hitchcock, apresenta características visuais e um clima de desconfiança, próximos ao que se veria no film noir mais puro – embora esse termo seja controverso, já que nenhum filme do gênero possui todas as características que o definem como tal –, entretanto, as personagens fazem parte de uma família típica do interior, sendo que na maioria dos filmes do gênero a instituição familiar não é tão abordada, tendo em vista que as relações familiares são mostradas como hipócritas na maioria dos filmes noir.

Quem matou Vicki? (1941) e Stranger on the Third Floor (1940) foram obras menores e isoladas desse gênero que iria ganhar força a partir de 1944.

Em 1944 começa a ocorrer uma produção contínua de títulos, sendo lançados filmes que marcaram o gênero, como  Pacto de Sangue – de Billy Wilder –, Laura – de Otto Preminger – e Até a vista, querida – de Edward Dmytryk. Pacto de sangue, por exemplo, é uma obra que contém grande parte dos atributos de um filme noir, podendo ser considerado como uma espécie de arquétipo do gênero: crime, femme fatale, traição, obsessão sexual, narração em off do protagonista, ambientes escuros – geralmente marcados pelas sombras de persianas nas paredes –, hipocrisia nas relações interpessoais e ambição descontrolada.

Outros filmes marcantes foram Gilda (1946),  À Beira do Abismo (1946),  Os Assassinos (1946) e  Fuga do Passado (1947).

Apesar de ainda serem considerados noir, os filmes do gênero produzidos a partir dos anos 1950 se distanciam um pouco do estilo considerado tradicional. Os elementos característicos estão presentes, mas diluídos, pois o público já estava saturado de certos elementos clichês. Crepúsculo dos deuses (1950), de Billy Wilder, e  A marca da maldade (1958), de Orson Welles, são dois exemplos que fogem da história padrão, transcendendo o gênero.

Principais diretores e atores:

Como já foi dito anteriormente, vários diretores europeus migraram para o cinema norte-americano, sua maioria alemães e austríacos. Desta forma eles embutiram nos primeiros filmes noir muito dos aspectos temáticos e, principalmente, visuais do Expressionismo alemão. Esses diretores do film noir são representados por Fritz Lang, Billy Wilder, Otto Preminger e Robert Siodmark; no entanto, podem-se citar diretores americanos como John Huston e Jules Dassin, por exemplo, que freqüentemente dirigiam filmes noir.

Fritz Lang, Otto Preminger e Billy Wilder

Alguns atores do film noir possuíam uma carreira que não se restringia ao gênero. Fred MacMurray, por exemplo, apenas participou de Pacto de Sangue, passando o resto de sua carreira atuando em filmes mais ligados ao gênero da comédia.

No entanto, há atores que são associados ao gênero, devido sua grande participação nos filmes noir, dentre eles temos: Dana Andrews, Glenn Ford, Humphrey Bogart, Burt Lancaster, Kirk Douglas, Barbara Stanwyck, Rita Hayworth, Gene Tierney, Lauren Bacall e Veronica Lake.

Barbara Stanwyck, Rita Hayworth, Gene Tierney

Fred MacMurray, Dana Andrews, Glenn Ford

Neo-noir:

O film noir é tido como um gênero bastante característico dos anos 40/50, entretanto, suas influências se mostram presentes em vários filmes das décadas procedentes, alguns como releituras mais fiéis, outros utilizando apenas alguns elementos. Chinatown (1974), de Roman Polanski, é uma grande homenagem prestada ao gênero, pois todo o filme é permeado pelas características mais marcantes do cinema noir: há um detetive particular que se envolve em um grande esquema criminoso e que se interessa por uma misteriosa mulher, uma trama complexa e cheia de reviravoltas, perversões sexuais (a relação incestuosa entre pai e filha), personagens ambíguas; Táxi Driver (1976), de Martin Scorsese, tem como protagonista um taxista solitário que vive andando pelas ruas escuras, na noite de Nova York; Blade Runner (1982), de Ridley Scott, é a fusão da ficção científica com noir; Los Angeles – Cidade Proibida (1997), de Curtis Hanson, é o noir típico, mas produzido mais atualmente e autoconsciente; O Homem que Não Estava Lá (2001), de Ethan Coen, é uma homenagem ao gênero, mas também uma paródia – já que os filmes dos irmãos Coen sempre possuem no mínimo alguns traços de humor, principalmente de humor negro –, fazendo referências a vários filmes e elementos característicos.

Aspectos visuais

Os aspectos visuais – responsáveis por grande parte da influência e do legado dos filmes considerados noir – se apresentam como uma das características mais distintivas do film noir, sempre aparecendo de forma bem marcada e como uma tentativa, eventualmente, de metaforização de determinados traços das personagens. Destaca-se, primeiramente, a importância dramática da fotografia preto-e-branco.

A fotografia noir tem como característica a iluminação de baixa intensidade – muito recorrente nos filmes de terror ou policiais –, que corresponde, geralmente, a cenários pouco iluminados. O jogo de luz e sombra, herança do cinema expressionista alemão, está fortemente presente e realça ainda mais o alto contraste entre o branco e preto, o que contribui para a construção do tom de suspense e mistério, gerando também significações e sentidos para a história. O uso de sombras, que relacionam figura e fundo, pode ser vista como a simbolização da ambigüidade das personagens.

A Marca da Maldade – 1958

O uso de persianas, considerado como um clichê para o filme noir, também explora as significações. A sobreposição das mesmas sobre o rosto das personagens é amplamente explorada, sendo a sombra de suas linhas ou barras a demonstração de perigo, quebra de conduta ou morte.

Assim como o jogo de luz e sombra ajuda na construção do suspense, o uso da fumaça também pode ser visto como fator colaborativo nessa construção. A associação da névoa com as cidades – sempre ambientadas durante a noite, em ruas e becos escuros, simbolizando os perigos da vida urbana – contribui para o mistério necessário em determinadas cenas. Porém, a fumaça não tem apenas a função de originar um clima de mistério, podendo também representar, quando se trata de personagens masculinas, a masculinidade, e a sensualidade, quando mulheres são retratadas.

Rififi – 1955

A utilização de espelhos e janelas – o quadro dentro do quadro –, muito recorrente no film noir, pode sugerir uma ligação com outras dimensões, nas quais há a exposição dos sonhos, pesadelos, medos e ilusões das personagens. O uso dos espelhos pode ser visto também como a exploração da dualidade e do desespero, evidenciando a tentativa de definição de caráter e ambigüidade de determinadas personagens. Essa marcante característica pode ser encontrada, de forma mais emblemática e influente, em A Dama de Shangai (1947), de Orson Welles; no filme há a presença de uma sala de espelhos, na qual se passa a cena final, cena esta em que há um tiroteio acompanhado pela quebra desses espelhos, fato que pode metaforizar uma final definição das reais personalidades das personagens do filme.

Associado também ao desespero e à ambigüidade das personagens está o uso de closes bastante próximos, que colaboram ainda mais na exploração da angústia existencial do herói noir. O uso dos big close-ups é tão largamente explorado, que sua utilização associada a um plano geral em plongée é considerado como o enquadramento noir por excelência, podendo o plongée ser visto como a representação visual do sentimento de tristeza que ronda as histórias.

Após a análise das principais características visuais, é importante salientar que nem todas estão contidas em uma única produção. Esse fato deve-se à diversidade da produção e dificuldade da “rotulação” de todos os filmes. Todos os aspectos destacados e discutidos são bastante comuns à maioria dos filmes considerados como noir e representam as formas que posteriormente levariam à questionável postulação do noir como um gênero.

Aspectos temáticos e narrativos

A ambigüidade e a dualidade são aspectos substanciais na caracterização do film noir. Em A Sombra de uma Dúvida, filme precursor do gênero, essa ambigüidade está presente no nome de duas personagens. Uma menina se chama Charlotte, mas tem o apelido de Charlie, em homenagem ao seu tio Charlie; a menina é uma garota típica do interior, muito ligada à família e representa o bem inabalável, enquanto seu tio é um cruel assassino de viúvas. Dessa forma, o nome Charlie funciona como elemento característico da dualidade do film noir, podendo representar tanto o bem quanto o mal.

Essa dualidade também será vista no filme O Mensageiro do Diabo (1955), no qual uma personagem diz sobre o assassino que ele era “Satanás escondido atrás da cruz”, o que evidência o fato de que as personagens do cinema noir geralmente são dúbias e freqüentemente tentam esconder suas verdadeiras personalidades. Nesse filme, um serial killer se passa por pastor, que tem tatuado nos dedos de uma mão a palavra ódio (hate, no original em inglês) e, na outra, a palavra amor (love); esse artifício das tatuagens funciona como uma forma de mostrar como o bem e o mal estão estritamente ligados e são dificilmente diferenciados no film noir. É o que Fernando Mascarello denomina como uma caracterização eticamente ambivalente das personagens em História do Cinema Mundial.

O Mensageiro do Diabo (1955)

Dessa forma, não se deve considerar maniqueísta a oposição entre bem e mal presente no cinema noir, pois essa oposição nunca é tão clara, haja vista a dificuldade de saber quem é a pessoa honesta e quem é a corrupta – não é adequado usar os termos herói e vilão, pois como a abordagem das personagens visa a mostrar suas fraquezas mais humanas, desta forma geralmente há anti-heróis, e não o herói clássico. Um personagem que a princípio se mostra honesto e que tem uma profissão digna, pode se subverter e cair no mundo do crime facilmente, seja de forma consciente ou inconsciente, sendo até mesmo levado por uma paixão destruidora – como ocorre em Pacto de Sangue.

A discussão sobre o fato de o film noir ser ou não um gênero será feita de forma mais aprofundada posteriormente, no entanto, há uma grande confusão, quando se deseja caracterizar um filme do gênero como tal. Os elementos visuais expressionistas, as sombras, o claro-escuro são usados também nos filmes de gângster dos anos 1930, o que poderia colocá-los na categoria do film noir; no entanto, o que diferencia e categoriza esse gênero é a abordagem das personagens, já que, nos filmes de gângster há todo o trajeto desde a ascensão até a decadência do protagonista, ao passo que nos filmes noir há sempre uma abordagem mais psicológica.

A ruptura realizada pelo film noir com o classicismo hollywoodiano da época é um dos aspectos mais interessantes desse gênero, que empreendeu esse distanciamento – uma subversão, pode-se dizer – através da revelação da neurose e das contradições da sociedade norte-americana, e burlando as normas do então vigente Código de Produção. O cinema noir em seu auge veio com uma proposta de reação frente ao otimismo americano do pós-guerra, abordando temas mais adultos e ligados a perversões e anormalidades.

A figura do protagonista costuma variar no film noir, porém é recorrente a aparição de três tipos: o anti-herói, o detetive privado e o indivíduo com antecedentes criminais. Esse anti-herói é resultado de uma desconstrução da figura do herói clássico dos filmes de aventura e de faroeste; Diferentemente dos heróis desses filmes, que geralmente representavam figuras com princípios irredutíveis e atitudes moralmente aceitáveis, os anti-heróis noir eram personagens isolados, solitários e nem sempre apresenta seus princípios bem definidos. No filme Gilda (1946), há um exemplo desse tipo, já que o personagem é um americano que vaga pelas ruas de Buenos Aires, e também pelo Walter Neff de Fred MacMurray em Pacto de Sangue, que é um agente se seguros, que se subverte por causa de uma tórrida paixão e acaba se tornando um homem solitário e amedrontado. O detetive privado é uma figura ambígua que caracteriza bem o film noir, pois geralmente ele é uma pessoa não muito confiável, já que é suspeito tanto pela polícia quanto pelos criminosos, pois pode estar cooperando e trabalhando ao lado de qualquer um deles; alguns dos personagens mais marcantes são Philip Marlowe, de À Beira do Abismo, e Sam Spade, de O Falcão Maltês – ambos interpretados por Humphrey Bogart. E por fim, há a figura do indivíduo com antecedentes criminais, e recentemente liberado da prisão, esse personagem pode ser visto em O Mensageiro do Diabo e em Rififi (1955), por exemplo. Em suma, o protagonista do film noir é sempre alguém que se situa fora das normas sociais.

A psicologia anormal de certas personagens e suas perversões sexuais são também recorrentes no cinema noir. No entanto, por serem temas sobremaneira obscuros para a época, tinham de ser abordados de forma implícita, por meio de metáforas, subtextos e elipses, burlando o Código de Produção. Todavia, esses artifícios, ao contrário de serem prejudiciais como no caso de filmes de outros gêneros, foram revigorantes para o film noir, pois fomentaram, nessas produções, uma enorme inventividade. O uso desses artifícios pode ser encontrado, por exemplo, no filme Pacto de Sangue, em que há uma cena em que o casal de protagonistas está sentado em um sofá, abraçado, e a câmera recua até o ponto em que ficam em quadro os dois abajures acesos que marcam os lados esquerdo e direito do quadro, com o sofá ao meio; há um corte e se passa para o personagem que faz a narração; depois dessa narração, há outro corte, que leva de novo à cena do sofá, com o mesmo enquadramento antes do corte que levou à narração; os dois abajures estão marcando o quadro como antes, só que agora as luzes estão apagadas e apenas um deles está aceso, e, além disso, o homem está deitado e fumando do lado esquerdo do sofá e a mulher, do outro lado, retoca seu batom. Essa cena – construída por meio de uma elipse temporal – mostra que o casal acabou de fazer sexo, mas é algo tão sutil e inteligente, que se torna mais interessante deixá-la subentendida, ao invés de mostrá-la de forma mais explícita. (Alprazolam)

Já a psicologia anormal está presente, por exemplo, no filme Laura, em que um detetive da polícia se apaixona por uma mulher que já está morta, mas que, segundo o relato de terceiros, parecia ser uma grande mulher – além de ser muito bela; e em certa cena, um fugaz personagem que acompanha as investigações questiona o detetive, acusando-o de necrófilo. Mas também há atos de violência sádica no film noir, como a cena do filme Os Corruptos (1953), de Fritz Lang, na qual um personagem queima e deforma o rosto de outra, jogando-lhe café fervendo.

Além disso, há uma ferrenha crítica ao capitalismo nos filmes noir, o que mais uma vez faz com que essas produções destoem da produção hollywoodiana dominante da época, a qual normalmente glorificava o modo de vida capitalista e a ambição – Laura é uma exceção, pois a personagem que dá título ao filme é uma mulher totalmente decidida e ambiciosa, mas a sua ambição não é vista em nenhum momento no filme como algo prejudicial. Essa crítica é feita, pois as personagens do film noir normalmente se relacionam (de forma hipócrita) por causa de um objetivo, que é quase sempre ligado ao dinheiro – e essas personagens usarão quaisquer métodos, para que alcancem seus objetivos, até matarão, caso seja necessário. Em Pacto de Sangue e em O Destino Bate à sua Porta (1946), mulheres casadas traem os maridos com outros homens e planejam com esses o assassinato daqueles, a fim de conseguirem o dinheiro decorrente de um seguro de vida; em Rififi, um grupo de ladrões se une para roubar uma joalheria – roubo que acontece durante uma famosa cena que acontece sem nenhum diálogo, apenas mostrando como eles realizam o furto, durante aproximadamente 30 minutos do filme; no filme O Mensageiro do Diabo, um homem persegue duas crianças, com o intuito de roubar-lhes 10 mil dólares; e em O Terceiro Homem (1949), um personagem enriquece por meio do tráfico de remédios.

Quanto aos elementos narrativos, a narração em off é uma constante nos filmes noir, devido ao fato de essas produções fazerem muito uso do recurso do flashback. A narração em off está presente em filmes como O Terceiro Homem – em que há uma instância narrativa no início do filme –, em Pacto de Sangue – em que o assassino faz a narração – e em Crepúsculo dos Deuses – no qual há uma inovação no personagem que narra, pois logo no início ele mesmo avisa que é o homem morto que aparece na tela, boiando na piscina, e que contará toda a história. Já o flashback é usado como um elemento para explicar de forma mais rápida a narrativa, mas em alguns filmes noir esse recurso é utilizado como forma de inserir maior complexidade à narrativa – como ocorre em Fuga do Passado; essa complexidade é outro fato que distância o cinema noir do cinema majoritário hollywoodiano de então, sendo que esse segundo estava sempre buscando construir narrativas bastante fáceis de ser compreendidas, ao invés de complicá-las.

A femme fatale

A Beira do Abismo – 1947

Logo após a Segunda Guerra Mundial, um novo conflito teve início, mas agora, ligado a motivos culturais e sociais: a guerra dos sexos. Os homens foram acometidos por uma crise de identidade em decorrência da modificação de papéis durante a guerra e, para expressar sua situação, eles buscaram a redefinição da masculinidade através da propagação de filmes com temáticas semelhantes – posteriormente denominados noir. Esses filmes traziam heróis (anti-heróis) com características derrotistas, isolados e extremamente ambíguos, porém, com freqüente exacerbação da masculinidade pela necessidade de auto-afirmação. Inclusive, esta valorização da virilidade masculina é considerada uma das “problemáticas” do noir, pois é um assunto freqüente que nunca é realmente articulado.

A femme fatale surge, então, como uma metáfora da independência feminina. Essa nova mulher é apresentada com uma figura sedutora, malévola e passível de punição – o que não acontecia em outros gêneros e surgiu para reforçar o papel superior do homem na sociedade, como aquele que geralmente estabelece a punição, e restabelecer o equilíbrio da mesma. A figura que essa personagem representa – a qual geralmente é mostrada fumando cigarros, bebendo, vestida com roupas provocantes – é atrativa, irresistível, misteriosa, perigosa, interesseira, sensual, orgulhosa, irresponsável, desesperada e manipuladora, levando o homem sempre ao perigo, à destruição – acarretando a dissolução da entidade familiar ou desses próprios personagens masculinos –, pois sabe ser feminina e frágil, a fim de atraí-lo e controlá-lo, visando a obter o que deseja. Essas características evidenciam uma personagem de construção complexa, com nuances de personalidade. Ela ainda representa um ataque direto à instituição familiar tradicional, haja vista que, para ela, o casamento – o qual é comumente tratado de forma negativa pelo film noir – é associado à infelicidade, ao tédio e à abstinência do romance e dos desejos sexuais. O protagonista masculino passa o filme todo tentando dominar ou converter essa mulher, entretanto, raras são as vezes em que ela se deixa converter, freqüentemente preferindo a captura ou até mesmo a morte – o que reitera a independência e a não-adaptação dessa mulher aos padrões aceitos na época.

A mulher considerada mais comum e submissa somente aparece no noir, para contrastar com a femme fatale e provar o fracasso de uma relação estável – e nesse ponto entra novamente a abordagem das relações hipócritas e de conveniência criticadas pelo film noir – como o casamento, sugerindo que as concepções tradicionalmente dominantes de felicidade e de família na sociedade são desinteressantes e inaplicáveis, no contexto em questão. Essa mulher comum é apresentada como obediente, confiável, verdadeira e amável, e recebe enquadramentos diferentes da femme fatale, sendo retratada fora da escuridão típica do gênero, utilizando as técnicas do filme clássico – com luz normal, câmera no nível dos olhos e em espaços abertos –, ou seja, é situada em um campo afastado da mise-en-scéne perturbadora e sedutora dessa mulher fatal.

As femmes fatales dos filmes noir freqüentemente eram interpretadas por atrizes como, por exemplo: Rita Haywoth, Lauren Bacall, Joan Crawford, Peggy Cummings, Gene Tierney, Barbara Stanwyck, Veronica Lake e Jane Greer. O sentimento masculino de fragilidade perante à ameaça dessa mulher sedutora foi imortalizado pela célebre frase dita por Humphrey Bogart – no filme Confissão (1947), de John Cromwell –, dirigindo-se à personagem de Lizabeth Scott: Esqueci de lhe dizer, mas não confio em mulheres.

O noir é um gênero?

Há uma grande dúvida em torno de como o film noir deve ser caracterizado. É um gênero, uma tendência de produção, um movimento, um estilo? Esse questionamento sobre essa concepção ocorre, dentre outros motivos, devido ao fato de que, na época em que os filmes desse gênero eram produzidos – década de 1940, majoritariamente –, ainda não havia a denominação film noir. Esse termo foi surgir apenas na década de 1950 e foi cunhado por críticos franceses; como alguns filmes noir foram produzidos no período da guerra, houve um entrave para que essas produções chegassem rapidamente aos mercados europeus, o que acabou conduzindo a uma leva grande – porém bem posterior às datas de estréia nos Estados Unidos – de filmes com as características noir. Quando essa leva chegou à França, alguns críticos, vendo vários desses filmes de uma vez, acabaram encontrando características em comum e, então, cunhando o termo noir. Dessa forma, muitos criticam a classificação como gênero, pois o termo que define esses filmes foi criado posteriormente às suas produções.

No entanto, essa não é a única crítica que recai sobre o cinema noir. Também existe o fato de que nunca é possível encontrar todas as características que definem essa categoria em um único filme. Algumas das principais obras, assim como outras mais periféricas, não apresentam vários dos aspectos considerados fundamentais. Pode-se citar como exemplo Laura, que não contém nenhum corte de big close-up para plano geral em plongée, ou O Mensageiro do Diabo, em que não há a presença da femme fatale. Mas também geralmente se encontram em outros gêneros características típicas do film noir, como o uso do flashback e da fotografia marcada por contrastes e sombras. Além disso, há o fato de que o noir atende a uma multiplicidade de gêneros. Há westerns que podem ser considerados filmes noirSua Única Saída (1947), de Raoul Walsh –, policiais, thrillers, melodramas – Amar Foi Minha Ruína (1945), de John M. Stahl.

Que o film noir é um gênero há muitas contestações, mas não há como negar sua existência e múltipla produtividade: teórica, crítica, cinefílica e industrial. Mas ele pode ser considerado como um fenômeno cult? Talvez, já que até hoje continua conquistando admiradores, que defendem a sua existência. É difícil defini-lo, mas ele existe. Gênero, tendência de produção, movimento, estilo? A dúvida e as discussões ainda continuarão a existir. Mas o universo diegético do film noir é tão duvidoso, que a dúvida quanto a ele ser ou não um gênero pode passar despercebida e sem importância para um fã; para este fã, que tanto aprecia dúvidas, mais uma referente a uma simples postulação pode simplesmente se agregar a todo o universo duvidoso do film noir.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

MASCARELLO, Fernando. “Film Noir”. MASCARELLO, Fernando (org.). História do cinema mundial, Campinas: Papirus, 2006, p. 177 – 188.

COURSODON, Jean-Pierre. “La evolución de los gêneros”. RIAMBAU, Esteve e TORREIRO, Casimiro (org.). História General del Cine, Volumen III – Estados Unidos (1932-1955), Madrid: Ediciones Cátedra, 1996, p. 278-287.

Daniele Alves Arruda, Edilaine Ferreira Leandro, Gustavo Henrique dos Santos Aguiar, João Alfredo Alineri Ramos, Mariana Moretto e Lívia Teixeira Duarte são graduando no curso de Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos – UFSCar.

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Este post tem 2 comentários

  1. Author Image
    yury

    gostei muito do texto. Não conheco filmes noir,mas a partir da leitura do texto pude ter uma noção detalhada sobre obras cinematograficas e sobre as características desse tipo de filme.Muito interessante e instigante, acredito que o universo do film noir deve ser bastante cativante e interessante.

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    Rodrigo Lopes de Oliveira

    Sempre fui fã de filmes noir e o testo foi bastante feliz em citar alguns detalhes e nuances de filmes que eu desconhecia, por exemplo a cena de sexo descrita em Pacto de Sangue o diálogo de Bogart em Confissão. Aliás, esse filme é o próximo da minha lista de compras. Abraços!

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