Fotografia, cinema e o digital: as alterações da imagem

Débora Regina Taño *

1. Um breve panorama histórico-técnico

A história tanto da fotografia quanto do cinema tem seu início questionável. Geralmente ambas são contadas a partir dos recursos técnicos que as geraram, entretanto é possível observar por outro âmbito. Primeiramente vejamos a história segundo as técnicas.

A fotografia, como conhecemos hoje, tem sua origem no início do século XIX sem que seja nomeado apenas um autor pela sua invenção. As técnicas que levaram ao surgimento dela foram elaboradas durante muito tempo por diversos cientistas e curiosos com relação à imagem.

Seu sistema de funcionamento a partir de uma câmera obscura com uma entrada de luz era uma técnica conhecida desde o Renascimento e já utilizada pela pintura. O desenvolvimento posterior foi feito com a inclusão de lentes na abertura e da descoberta e implantação de substâncias fotossensíveis que registravam a imagem em vez desta ter de ser pintada por um artista, como era feito anteriormente.

A primeira fotografia produzida (reconhecida) foi feita em 1826 pelo francês Joseph Nicéphore Niépce, que chamou este processo de “heliografia”, uma vez que a imagem se dá pela exposição à luz solar. Anos depois, Daguerre criou um sistema que reduzia o tempo de revelação em um aparelho chamado “daguerreótipo”, que em pouco tempo se espalhou pela Europa.

A partir de então, os avanços foram sendo somados. A fotografia se espalhou e popularizou, chegando até mesmo a ser pensado que ela acabaria com a pintura. Sua função, entretanto, se deu de forma diferente, como será visto posteriormente.

O cinema, por sua vez, teve grande influência da fotografia. Seu sistema óptico de captação e a forma de registro da imagem eram praticamente os mesmos. Entretanto, sua grande diferença se dá no fator do movimento e da projeção. Quanto a isso, o cinema tem como influência a lanterna mágica, que, desde o século XVII, tinha placas de vidro pintadas utilizadas de forma que suas imagens fossem projetadas numa sala para um grande número de pessoas ao mesmo tempo em que um apresentador contava a história. Diversos inventores do fim do século XIX criaram inúmeras máquinas para as mais variadas funções. O cinematógrafo dos irmãos Lumière e os demais aparelhos com a mesma função criados praticamente ao mesmo tempo, como o quinetoscópio, de Edison, nos Estados Unidos, e outros espalhados pela Europa foram mais uma parte das diversas invenções do final do século, que para muitos teria tanta utilidade quanto outras criações, ou seja, utilidade nenhuma. Entretanto, o interesse do público pelo movimento e pelo imaginário que o cinema torna próximo e acessível, e que já era esboçado pelo teatro de sombras e pela lanterna mágica, fizeram do cinema um dos maiores entretenimentos desde então.

O cinematógrafo dos Lumière obteve mais reconhecimento e se espalhou mais do que o quinetoscópio de Edison por dois fatores. Inicialmente pelo fato de o primeiro ser um aparelho leve e de fácil transporte e também por conta de que cinematógrafo ao mesmo tempo filmava e projetava as imagens, sendo necessário apenas inverter as lentes. Com isso, os Lumiére espalharam pelo mundo colaboradores que captavam imagens e distribuíam seu aparelho, ao mesmo tempo em que eram cinegrafistas, eram distribuidores e exibidores, tornando o cinema cada vez mais difundido e acessível.

2. O cinema segundo o movimento e o imaginário

Como dito anteriormente, a história da fotografia e do cinema pode ser abordada de outra forma, além da técnica. O cinema, principalmente, possui fatores que estão presentes na ideia das civilizações desde o início dos tempos e que podem ser considerados a alma cinematográfica: o movimento das imagens e a possibilidade de intervir no imaginário.

Segundo alguns historiadores, as pinturas rupestres já tinham sua intenção de movimentação. Muitos desenhos eram feitos um sobre o outro com pequenas alterações entre eles. Além disso, a grande maioria foi encontrada em lugares absolutamente escuros, no fundo das cavernas, onde só poderiam ser vistos com alguma fonte de luz. Esta, quando variada de posição, deixa visível de cada vez uma parte do desenho, dando a impressão de movimento.

Séculos depois, na Antiguidade grega, Platão elaborara uma sala de projeções. Segundo o conhecido “mito da caverna”, os seres humanos estão voltados para o interior de uma caverna, onde vêem apenas as sombras do dito mundo Ideal refletidas na parede. Teóricos defendem a ideia de que a caverna de Platão pode ser entendida hoje como uma sala de projeção na qual são vistos na parede uma outra realidade, ou, então, um mundo imaginário e não condizente com a realidade do mundo, representados pelos filmes. Outro personagem da história clássica, desta vez romana, Lucrécio, nos deu também uma importante contribuição para o que seria o cinema, contribuição, entretanto, que se perdeu com a história não se sabe o porquê. Lucrécio, poeta romano, descreve em um de seus textos uma forma de imagem em movimento formada a partir de imagens estáticas com pequenas diferenças entre si.

Outro aspecto muito comentado é o fato de que diversos mecanismos presentes no cinema são fruto de pesquisas científicas, ou então, surgiram ocasionalmente a partir destas. Em alguns casos, tinham a intenção de explicar ou confirmar a possibilidade cinematográfica por meio de teorias, que,  posteriormente, foram colocadas como não verdadeiras. Este é o caso da teoria da persistência retiniana. Para seus pesquisadores, no século XIX, a explicação para a imagem cinematográfica, formada a partir das imagens fixas (fotogramas) que ao serem exibidas uma após outra em determinada velocidade forma a imagem em movimento, se dava por conta do poder da retina em fixar em si as imagens, de forma que quando a próxima imagem fosse percebida a anterior ainda estaria presente na retina, possibilitando a fusão das imagens, e, portanto, a impressão de movimento. Esta teoria foi uma das bases para a pesquisa de movimento que gerou o cinema. Entretanto, anos depois, a teoria foi refutada. Soube-se que a fusão das imagens dos fotogramas ocorre no cérebro e não na retina, fazendo com que a imagem cinematográfica seja fundamentalmente uma imagem psíquica.

A partir disso surge uma nova reflexão. A imagem cinematográfica é formada por pequenas imagens estáticas, ou seja, pela descontinuidade. Entretanto seu grande objetivo é passar a continuidade, a ilusão de algo que está acontecendo naquele momento, movimentando-se na frente do espectador. Esta fusão que ocorre no cinema entre a sua parte técnica e a sua intenção ocorre, fundamentalmente, no próprio espectador, que mesmo sabendo que o que ali está é uma obra produzida e descontínua se disponibiliza a acreditar e se envolver com o que está vendo. É esta abertura do espectador que está intrinsecamente ligada à vontade de deixar seu imaginário tomar frente, em alguns momentos.

Em relação ao imaginário, o cinema não foi, sem dúvida, a primeira forma de intervenção. Histórias de um modo geral existem e são contadas desde que as civilizações desenvolveram mecanismos de comunicação e expressão. Além delas, as situações fantasmagóricas e sobrenaturais tiveram, e ainda têm, certo poder de fascínio sobre as pessoas. Durante o século XIX, eram comuns espetáculos de ilusionismo envolvendo fantasmas e demais seres imaginativos. Estes espetáculos serviram de forte base para o cinema em relação ao público, que viu no novo meio uma outra forma de se deixar envolver por algo além de sua própria realidade.

Para muitas pessoas, na época do surgimento do cinema em si, este seguiria os passos da fotografia em seu âmbito documental. Entretanto, não foi isso que ocorreu. A cultura da intervenção do imaginário se fortaleceu cada vez mais com o novo meio, que seguiu o caminho da ilusão e da ficção como seu principal foco.

A partir destas reflexões, fica em aberto a seguinte pergunta: o cinema surgiu, e se mantém, a partir das inovações e criações dos homens da ciência ou dos que sonham? Ou quem sabe de ambos?

3. As mudanças no olhar a partir da imagem

Desde os tempos remotos o homem tem uma relação com a imagem, exemplo disso são os desenhos rupestres. Entretanto houve um momento decisivo nessa relação. A partir do Renascimento o homem passa a colocar na imagem que produz a sua visão, o seu ponto de vista, influenciado pela mudança de pensamento que estava ocorrendo na sociedade a qual punha o homem como centro do mundo. Para tal, utilizavam-se as técnicas da perspectiva.

Neste momento a pintura era a forma, além da escultura, mais utilizada como expressão e formação de imagens. Representavam objetos e paisagens visíveis ou imaginadas, como forma de representá-las em suporte físico, palpável, sujeito às intervenções do tempo e, por ser única, necessitando de cuidados de conservação. Sua produção ocorre com a interação entre o artista, o objeto observado/retratado e a tela. A pintura pode ser dada como uma extensão do artista.

Para a observação de paisagens criaram, ainda no Renascimento, a câmara escura. O pintor observava o que a câmara lhe mostrava e pintava em seguida, reproduzindo o visível. A partir da câmara escura foi possível a criação de uma nova forma de imagem – a fotografia. A passagem de uma para outra se deu a partir do momento em que foi possível não apenas observar algo pela câmara escura, mas também registrar em material foto-sensível.

A fotografia não substituiu a pintura, como muitos pensavam, mas trouxe uma nova forma de observação da imagem e de divulgação da mesma. A própria forma de produção se alterou. Agora a imagem não mais retrata o real, mas sim, o recorta e o reproduz. A fotografia trouxe a noção do documental e por sua matriz ser o negativo, a reprodutibilidade se intensificou, além de sua durabilidade e acesso. Com ela a comunicação de massa se deu, uma vez que a imagem fotográfica dá um recorte do real que pode ser reproduzido inúmeras vezes.

O papel do sujeito também se alterou. O fotógrafo necessita de prontidão para captar o instante desejado, enquanto o pintor precisa ter a habilidade da pintura. A câmera capta o que está na visão do sujeito de acordo com a intensidade da luz disponível. Entretanto é perigoso afirmar que a fotografia sempre reproduz algo real, pois a imagem é mediada pela visão de seu autor, o qual pode omitir ou deixar visível determinado elemento. A visão do sujeito ainda tem um papel importante em relação ao objeto e à imagem, de forma semelhante à pintura, uma vez que ambos se dão pelo ponto de vista de quem as realiza.

Assim como na fotografia, o cinema reproduz o visível. A noção de documento do cinema nem sempre é válida, uma vez que sabemos que existe a ficção e que mesmo no cinema documentário há encenação. Entretanto, por mais que o que se passe diante da câmera seja combinado e encenado é necessário que se passe algo para que a câmera filme. Ela não cria uma imagem do nada, apenas registra algo que se passa diante dela.

Com o tempo e as evoluções tecnológicas, surge uma outra forma de imagem, a chamada pós-fotográfica. Esta, diferentemente das outras, não necessita de um objeto real para representar ou reproduzir. Ela é criada a partir de sequências numéricas do computador.

A desconstrução da idéia de imagem, a qual faz com que esta não precise de algo real para existir, mas simplesmente exista por si, teve seu início com a arte moderna, do impressionismo francês ao surrealismo, passando pelo expressionismo alemão, dadaísmo, entre outros. Estes movimentos das artes plásticas trouxeram consigo a decomposição da imagem, a imagem abstrata.

Após a Segunda Guerra Mundial, com o advento da computação, a lógica matemática se uniu à arte produzindo imagens comandadas pelas matrizes. Esta nova imagem tem por sujeito realizador o programador e sua obra não necessariamente tem alguma relação subjetiva direta com ele. Não há a necessidade do seu olhar propriamente dito, apenas o conhecimento da manipulação das informações computacionais. A imagem não possui, necessariamente, a marca subjetiva do sujeito criador.

O computador traz a possibilidade de experiências, sem que haja a parcela empírica da imagem. Sua composição é à base de números, que são armazenados na memória do computador e podem ser alterados a qualquer momento, por qualquer pessoa. Muitas vezes não é nem mesmo necessário que se conheça as matrizes e regras de programação, uma vez que existem programas já feitos para que as imagens digitais sejam alteradas. Diferentemente das imagens formadas pela fotografia e pela pintura, nas quais é necessário escolher o ângulo de visão antes de fotografar, filmar ou pintar, nas imagens computacionais, muitas vezes, todos os ângulos de visão do objeto estão à disposição, podendo ser escolhido o ponto de vista depois da imagem pronta e alterá-lo de acordo com a vontade ou necessidade. Sua exibição pode acontecer a qualquer momento e em qualquer lugar desde que se tenha uma tela de computador ou um celular, atualmente. A imagem pode ser enviada via internet para os mais diversos lugares do mundo e visualizada ou até mesmo alterada a qualquer momento.

Atualmente, as formas de imagem estão intimamente misturadas. As fotografias digitais possuem características da fotografia tradicional somadas às possibilidades técnicas da imagem infográfica digital. De forma semelhante temos o vídeo/televisão. (Diazepam) Este, que muitas vezes é considerado semelhante ao cinema, não necessariamente o é. A televisão pode, ao mesmo tempo, reproduzir o real, assim como a fotografia e o cinema, tendo uma base tecnológica associada ao computador, mas também pode criar imagens puramente digitais a partir de sintetizadores. Neste ponto ocorre a confluência das bases midiáticas da fotografia/cinema e da infografia digital.

Cada vez mais podemos observar as alterações do olhar nas formas de produção de imagem, uma vez que estas estão se misturando e se inter-relacionando. Com elas, a posição do sujeito e a noção de autoria e individualidade também se alteram dentro da sociedade, que por sua vez continua, assim como a imagem, em constante mutação.

* Débora Regina Taño é graduanda em Imagem e Som pela UFSCar – Universidade Federal de São Carlos.

Referências Bibliográficas

– Arte do video (cópia do livro sem os demais elementos da referência)

– ANDRADE, Leonardo, Apostila de Fotografia para a aula de Fundamentos Tecnológicos do audiovisual, pág 1-2

– MACHADO, Arlindo, Pré-cinemas e pós-cinemas, Papirus Editora, Campinas, 1997, pág 8-74

– MASCARELLO, Fernando (org.), História do Cinema Mundial, Papirus Editora, Campinas, 2006, pág 17-20

– SANTAELLA, Lucia e NOTH, Winfried, “Os três paradigmas da imagem” in Imagem – cognição, semiótica, mídia, Editora Iluminuras, São Paulo, 1998, pág 157-186

Author Image

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

More Posts

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

Este post tem 2 comentários

  1. Author Image

    A história tanto da fotografia quanto do cinema tem seu início questionável. Geralmente ambas são contadas a partir dos recursos técnicos que as geraram, entretanto é possível observar por outro âmbito. Primeiramente vejamos a história segundo as técnicas.

    A fotografia, como conhecemos hoje, tem sua origem no início do século XIX sem que seja nomeado apenas um autor pela sua invenção. As técnicas que levaram ao surgimento dela foram elaboradas durante muito tempo por diversos cientistas e curiosos com relação à imagem.

    Seu sistema de funcionamento a partir de uma câmera obscura com uma entrada de luz era uma técnica conhecida desde o Renascimento e já utilizada pela pintura. O desenvolvimento posterior foi feito com a inclusão de lentes na abertura e da descoberta e implantação de substâncias fotossensíveis que registravam a imagem em vez desta ter de ser pintada por um artista, como era feito anteriormente.

    A primeira fotografia produzida (reconhecida) foi feita em 1826 pelo francês Joseph Nicéphore Niépce, que chamou este processo de “heliografia”, uma vez que a imagem se dá pela exposição à luz solar. Anos depois, Daguerre criou um sistema que reduzia o tempo de revelação em um aparelho chamado “daguerreótipo”, que em pouco tempo se espalhou pela Europa.

    A partir de então, os avanços foram sendo somados. A fotografia se espalhou e popularizou, chegando até mesmo a ser pensado que ela acabaria com a pintura. Sua função, entretanto, se deu de forma diferente, como será visto posteriormente.

  2. Author Image
    Evele brena fernandes dos santos

    E muito bom o cinema muito interessante gostei muito acho muito legal tudo gravação tudo gostei muito mesmo

Deixe uma resposta