Fragmentos de identidades unificados pela língua

Nós temos sempre necessidade de pertencer a alguma coisa; e parece que a liberdade plena seria a de não pertencer a coisa nenhuma. Mas, como é que se pode não pertencer à língua que se aprendeu, à língua com que se comunica e com que se escreve? (José Saramago)

Segundo Stuart Hall (1992) as identidades estão atravessando um processo de fragmentação, de deslocamentos dos sujeitos, à proporção do avanço dos tempos modernos. Hall explica, desenvolve, argumenta sobre como os sujeitos antes tidos como unificados, de identidades estáveis, estão sofrendo crises identitárias, descentrações do antigo “eu” intacto, durante a Modernidade Tardia, orientando-se por uma construção do sujeito moderno, pelas culturas nacionais, pelas localidades e por tudo o que a globalização é capaz de envolver.

A partir, sobretudo, desse embasamento teórico, pretendo aqui analisar o documentário dirigido por Victor Lopes, Língua – vidas em português (2003, Brasil/ Portugal).


Interessante desde o título, o filme vai buscar as diferenças nos países habitados por falantes do português, que mantêm entre si essa similaridade, essa intimidade, responsável por traçar a linha suporte do tema abordado. Entre Brasil, Portugal, Índia, Moçambique, Angola, Guiné-Bissau, China e Japão são registrados depoimentos e estatísticas de usuários da Língua Portuguesa, acentuando-se seus respectivos perfis: padeiro, escritor, empresário, ilustrador, músico, fazendeiro, ambulante, bancário, pastor, militar, cantor, professor, poeta, comerciante, sacerdote, religioso, cozinheiro, garçom, estudante, secretário, aposentado.

Na verdade, já a escolha do gênero permite-me fazer incursões: sob o prisma da reflexão sobre identidades, pode-se dizer que um documentário carrega a responsabilidade de expor quaisquer identidades, características peculiares, perfis que merecem destaque (seja de um em especial, seja de vários, seja de seres, seja de lugares). É esse o propósito dos flagrantes, dos depoimentos, das imagens, das performances da realidade.

Daí para o título desse longa-metragem delimita-se o assunto central, o tema que será recuperado a cada novo personagem; especifica-se a qual identidade se refere o contexto do filme: “Língua – vidas em português”. Mais interessante é notar que o subtítulo é capaz de atiçar reflexões, de reunir toda a riqueza documentada no enredo, além de revelar o que teria mobilizado o diretor: a beleza e a comoção emergentes quando vidas, sob diferentes formas, unem-se somente pelo aspecto de partilharem da mesma língua.

Quando se fala em construção de identidades, quando se analisa esse processo, deve-se compreender que a linguagem característica de cada região entra na discussão automaticamente:

As línguas são a própria expressão das identidades de quem delas se apropria. Logo, quem transita entre diversos idiomas está redefinindo sua própria identidade. Dito de outra forma, quem aprende uma língua nova está se redefinindo como uma nova pessoa. (RAJAGOPALAN, 2003, p.69)

Língua como pátria, como origem, como berço. Nascemos envolvidos na língua local e, a partir do momento em que começamos a apreendê-la, travamos uma relação de dependência, de cumplicidade, de reverência à linguagem que escolhemos para manter a comunicação. Acolhe-nos e nos embala no ritmo de seus vocábulos, de sua evolução. É a ela que recorrem quando vem a necessidade de contactar o mundo. Faz parte do falante, assim como este faz parte dela – interfere em sua configuração como usuário, como mais um entre tantos indivíduos diferentes que por ela também foram atingidos, colaborando para o firmamento, dispersão e fortalecimento da mesma, da língua.  

No filme, José Saramago discorre sobre a questão do pertencimento. Do mesmo modo como é colocada a condição de pertencer sobre as culturas, sobre as identidades nacionais defendidas por Stuart Hall, aqui ela se encaixa na língua. É necessário um sentimento de pertencimento, de identificação nacional para que o indivíduo se encontre, se refugie, construa a sua imagem. Quanto à língua, é impossível desvinculá-la do mesmo sentimento: elemento-chave para a construção do seu “eu”, é aquilo que permite adaptar-se àquele universo, entregando-se a ela, pertencendo a ela.

Acerca da Língua Portuguesa, sabe-se que, como comentado no documentário, a “língua-mãe” teria vindo de Portugal e contaminado suas colônias – como no Brasil e na África – impondo-lhes, com esse artifício, o peso, a forte presença da identidade dominadora como obrigatoriamente hegemônica. A partir da língua, identifica-se o colonizador e o colonizado – que é obrigado a usar do mesmo idioma a fim de converter-se em colonizado civilizado, e estar ainda mais sujeito à exploração, à subordinação. Assim, o português foi se infiltrando entre brasileiros, angolanos, moçambicanos, indianos…   Com o tempo, curvando-se às diferenças, às necessidades, às primeiras identidades de cada povo, responsável pela reconfiguração da nova língua nos moldes de sua preferência, permitindo-lhe a forma conhecida hoje:

Eu acho que a Língua Portuguesa é hoje, talvez, uma das línguas européias com maior vivacidade, com maior dinamismo. A língua passou a ser gerida por outros mecanismos de cultura, povos (depois de colonizados) que introduziram na língua fatores de mudança, coloração, que tornaram o Português hoje realmente uma língua que aceita muito, que é capaz de introduzir tonalidades, variações, que enriquecem muito a Língua Portuguesa, não só do ponto de vista lingüístico, mas o quanto ela pode traduzir culturas. […]A língua sujou-se no sentido em que é capaz de casar com o chão” – depoimento oral do biólogo e escritor Mia Couto, em Moçambique.

Em Língua – vidas em português comparam-se povos lusófonos, reforçam-se suas diferenças. Há uma preocupação com a paisagem local, os rituais, as crenças, as aspirações e histórias de cada personagem: cada peça é igualmente importante no imenso mosaico de culturas e identidades que é escancarado aos olhos do espectador. Na Índia, um ilustrador e um músico contam sobre a importância da casa onde moram, pertencente a seus antepassados, antigamente membros de uma aldeia. São anedotas, tradições que se prendem à casa e que os levam a se identificarem com ela. Cabe aqui a ideia de Benedict Anderson sobre as identidades nacionais como comunidades imaginadas: a identidade de uma nação toma forma a partir de estórias, memórias, imagens, cuja função consiste em erguer uma comunidade imaginada, fantasiada, idealizada, para que, a partir dela, o indivíduo possa encontrar-se, conhecer-se. No caso, a comunidade imaginada se encaixa na identidade da aldeia dos antepassados, primeiramente hindu, mas que mais tarde converte-se ao cristianismo com a chegada dos portugueses. As músicas tocadas e a manutenção do ambiente como tal pelos personagens são artifícios que explicitam sua terna e necessária prisão às lembranças, às origens, ao passado – sagrado por possibilitar a sustentação de suas identidades. “O que faz a memória é a palavra, a conversa familiar, a cultura que passa boca a boca”, Martinho da Vila acrescenta a importância da língua nesse processo de construção de tradições, de identidades. Paralelamente a isso, Saramago comenta o passado da língua, seu primeiro estágio de sons, de ruídos – antepassados ansiosos por comunicação – posteriormente tornados palavras, que foram crescendo em quantidade e variedade, compondo os diferentes idiomas; tudo para que se aprimorassem as possibilidades de expressarmos sentimentos, emoções, pensamentos. Foram-se construindo, uma a uma, identidades linguísticas.

Dessa mesma maneira que o nosso “eu” está em constante transformação, passando eternamente por processos de identificação, também as línguas o fazem – o que se torna, aliás, uma das principais dificuldades para os lingüistas:

Os nossos conceitos básicos relativos à linguagem foram em grande parte herdados do século XIX, quando imperava o lema “Uma nação, uma língua, uma cultura”. Previsivelmente eles estão se mostrando cada vez mais incapazes de corresponder à realidade vivida neste novo milênio, realidade marcada de forma acentuada por novos fenômenos e tendências irreversíveis como a globalização e a interação entre culturas, com conseqüências diretas sobre a vida e o comportamento cotidiano dos povos, inclusive no que diz respeito a hábitos e costumes lingüísticos. (RAJAGOPALAN, 2003, p.25)

Como explicação da atualidade acima citada, Rajagopalan aprofunda-se em fatos:

Vivemos num mundo globalizado. Isso significa que os destinos dos diferentes povos que habitam a terra se encontram cada vez mais interligados e imbricados uns nos outros – fenômeno que vem sendo chamado de “transnacionalização” da nossa vida cultural e econômica (Robins,1997). O outro lado dessa mesma moeda se chama “desterritorialização” das pessoas – que, por motivos diversos, tornam-se, em número cada vez maior, cidadãs do mundo – e suas práticas identitárias (Krause e Renwick,1996). Essa nova relação entre as pessoas das diferentes regiões do mundo, das mais variadas etnias e línguas, de histórias e tradições diferentes, se deu como conseqüência imediata do rompimento das barreiras que, até pouco tempo atrás, pareciam intransponíveis e serviam de impedimento a qualquer forma de aproximação entre os povos, a não ser com propósitos nada amigáveis. Estou me referindo às inúmeras barreiras comerciais, econômicas, culturais e às restrições à livre circulação de informações entre países, barreiras que estão desmoronando com rapidez impressionante.

Considerando o fenômeno mencionado, portanto, deve-se entender por principais frutos dessa chamada globalização, que irão atingir as identidades, além da compressão espaço-tempo, também a emergência desse multiculturalismo. Acerca do primeiro, considerando a colocação de Stuart Hall:

Todas as identidades estão localizadas no espaço e no tempo simbólicos. Elas têm suas “geografias imaginárias”, suas “paisagens” características, seu senso de “lugar”, de “casa/lar” , bem como suas localizações no tempo – nas tradições inventadas que ligam passado e presente, em mitos de origem que projetam o presente de volta ao passado, em narrativas de nação que conectam o indivíduo a eventos históricos nacionais mais amplos, mais importantes.

Isso quer dizer que, com a compressão espaço-tempo gerada pela globalização, isto é, o encurtamento das distâncias entre os lugares e o imediatismo das informações, chega-se a desintegrar o universo característico de cada povo, já que, agora, ele é invadido, contaminado, bombardeado por traços e influências de culturas antes alheias. Como resultado, tem-se o segundo fruto, o multiculturalismo. Sobre isso, Hall, continua:

Alguns teóricos culturais argumentam que a tendência em direção a uma maior interdependência global está levando ao colapso de todas as identidades culturais fortes e está produzindo aquela fragmentação de códigos culturais, aquela multiplicidade de estilos, aquela ênfase no efêmero, no flutuante, no impermanente e na diferença e no pluralismo cultural. […] Os fluxos culturais, entre as nações, e o consumismo global criam possibilidades de “identidades partilhadas” – como “consumidores” para os mesmos bens, “clientes” para os mesmos serviços, “públicos” para as mesmas mensagens e imagens. […]À medida em que as culturas nacionais tornam-se mais expostas a influências externas, é difícil conservar as identidades culturais intactas ou impedir que elas se tornem enfraquecidas através do bombardeamento e da infiltração cultural. […](As identidades) parecem flutuar livremente.

Analogamente, considerando a intimidade entre linguagem-cultura-identidade, o multilinguismo também viria a aparecer:

[..]o multilinguismo está se tornando cada vez mais a norma e não a exceção em nosso mundo.[…]Este aumento exponencial, e, ao que parece, irreversível, de casos de multilinguismo se deve, de um lado, a ondas migratórias envolvendo grandes massas de população no cenário mundial pós-guerra, e, do outro lado, à popularização da informática e ao encurtamento de distâncias entre continentes, resultando no contato crescente entre povos.(RAJAGOPALAN, 2003, p.27)

Naturalmente, em se tratando de exposições culturais, a mundialização é um dos assuntos que mais permeia o filme. Mia Couto, ao revelar a importância de viagens para seus trabalhos como escritor, lembra-nos o que de fato ocorre: “os povos diferentes têm que viajar entre si, têm que se atravessar, têm que se deixar trocar. No fundo, não se está a viajar do ponto de vista geográfico, mas está-se a viajar por pessoas”. Encaixam-se, aí, as migrações, também muito abordadas no documentário. Em especial, no Japão, um grupo de jovens chega a falar em crise de identidades: tendo nascido no Brasil, contam sobre as identidades brasileira e japonesa que se confundem em seu interior, devido ao círculo família/amigos quando no Brasil :  “sou japonês dentro de casa e brasileiro fora dela”. Somado a isso, ficam também explícitas confusões com a própria língua que se fala ali, no depoimento. Mais de uma vez ocorrem misturas de, por exemplo, português com inglês, evidenciando, além de uma possível crise de identidades, a hegemonia da língua ali mais importante, que insiste em não se deixar esconder.


Em outro momento, aparece um grupo de jovens estudantes em Portugal, que, para mostrar sua atualização, fazem comentários sobre o tal multiculturalismo; sobre o cruzamento de culturas; a interligação de costumes; sobre a perda gradual de alguns valores e identidades; sobre a ocidentalização: “…somos todos iguais uns aos outros, mas, se calhar, todos iguais à América. É tudo igual à América. O jovem daqui deve ser igual ao jovem da França, da China, por causa da América, a maneira de pensar, a cultura, o hip-hop, o rap”. Sobre esse último fenômeno, Kevin Robins justifica a escolha do termo: “o capitalismo global é, na verdade, um processo de ocidentalização – a exportação das mercadorias, dos valores, das prioridades, das formas de vida ocidentais”. Martinho da Vila, no documentário, exemplifica o efeito: “Estados Unidos, Nova York, Miami, esses lugares você encontra em qualquer lugar do mundo. Quer dizer, você viaja para o mesmo lugar. Você não precisa de Miami para ter as coisas que estão em Miami; estão aqui, estão na Europa toda”. O personagem Dinho, no Grande Hotel em Moçambique, também expõe a realidade do fenômeno: ao sofrer contaminações de propagandas, divulgações do universo idealizado ocidental, através de antenas parabólicas, acredita no “mundo melhor dos EUA” e revela a influência do rap americano, através de frases em inglês em suas composições. O escritor João Ubaldo Ribeiro, no Brasil, percebe: “importamos não só o vocabulário, mas a sintaxe, a maneira de pensar e colocar o raciocínio americanos” :

A identidade linguística do cidadão do mundo globalizado também se acha rasgada ao meio pelas forças de submissão ao poder avassalador da influência estrangeira (representada pela língua inglesa) e de resistência e enfrentamento com ingerências sofridas. A recente mobilização política contra estrangeirismos em diversos países, inclusive o Brasil, pode ser vista como uma forma de enfrentamento. (RAJAGOPALAN, 2003, p.61)

Em contraponto a todo esse contexto de influências, de interferências identitárias, no filme aparece um casal africano, em Moçambique, cujo discurso parece apontar para um caso à parte: apesar de muçulmanos, de seguirem as rezas, de realmente acreditarem e se ampararem em sua religião, arriscam-se em algumas subversões.     Não seguem, por exemplo, exigências no vestuário, na maneira como se apresentam à sociedade:

Eu, ao ver a minha imagem, nem parece que sou muçulmano, porque na nossa religião não acontece nada disso, essas fitas no cabelo, essas coisas todas. […]Um homem macho diz que nunca hei de pôr umas calças cor-de-rosa. Para mim, eu acho o máximo pôr umas calças cor-de-rosa. Eu acho que era para nascer menina e houve uma falha e nasci homem, mas com um pensamento feminino de certa forma.

Ou seja, além de esbarrar na questão do entrelace interior de identidades sexuais, subverte no vestuário simplesmente por seguir o que mais gosta, aquilo com que mais se identifica, o que prefere. Independentemente de qualquer desaprovação ou preconceito, criam a sua própria identidade, a partir do que eles acham certo: “Nós gostamos da nossa loucura. Estamos em África, mas em África há vida”. É como se se julgassem na responsabilidade de provar aos outros a possibilidade de ser diferente, de obedecer a si próprio, de mergulhar em liberdades, em prazeres próprios que satisfaçam sua identidade. Encaixar-se-iam, talvez, no conceito de “sujeito soberano” de John Locke, uma vez que parecem apenas fazer reverência a seus próprios instintos? Ou porque parecem de fato saber como moldar a sua própria identidade? De qualquer forma, pode-se dizer que sujeitos soberanos só podem existir na mente do indivíduo para servir de apoio, de conforto, para sustentar a confiança que temos em nós mesmos, como se fôssemos nossos comandantes, nossos próprios guias, os responsáveis por nosso caráter, por nossa identidade.

Entretanto, sabe-se que a realidade consiste num processo de invasões, de mestiçagens do “eu” com a sociedade. Nem mesmo o que pensamos deve ser considerado de nossa autoria. Tudo é construído partindo-se de relações anteriores. “Os homens fazem a história, mas apenas sob as condições que lhes são dadas”, Marx já dizia. O filósofo existencialista Jean Paul Sartre desenvolve todo um discurso em torno dessa consideração, sintetizando-a através de sua célebre frase “o inferno são os outros”. Defende que todas nossas as escolhas levam à transformação do mundo para que ele se adapte ao seu projeto – projeto esse diferente para cada um, o que faz com que as pessoas entrem em conflito sempre que os projetos se sobrepõem. Diz que o homem por si só não pode se conhecer em sua totalidade; que só através dos olhos das outras pessoas é que alguém consegue se ver como parte do mundo. Sem a convivência, ninguém pode se perceber por inteiro, mas pode ter acesso à sua própria essência, ainda que temporária. O inferno são os outros porque, embora sejam eles que impossibilitem a concretização dos nossos projetos, colocando-se sempre no nosso caminho, não podemos evitar tal convivência. Sem eles, o próprio projeto fundamental não faria sentido: “o outro é o mediador indispensável entre mim e mim mesmo”. É o que também explica nossa identidade prismada, o fato de não termos domínio sobre ela. São os outros os responsáveis pela minha identidade. Somos fragmentos de aspectos alheios com os quais nos identificamos, de outras culturas, de outras influências, de confluências, de contaminações externas – assim como as línguas. Tudo é multifacetado, mosaicos de fatores externos.

Retomando a Língua Portuguesa, em específico, no que diz respeito a sua estrutura, Stuart Hall usa Ferdinand de Saussure para algumas considerações. Segundo Saussure, não somos nós os autores dos significados que expressamos na língua: esta é um sistema social, e não individual. Saussure defende que falar uma língua significa ativar a imensa gama de significados já embutidos nela e em nossa cultura. Por outro lado, dentro desse contexto, sobre a postura de Saussure encontram-se algumas críticas:

Do modo como é conceituada, a língua é tradicionalmente entendida como algo fechado em si e auto-sufuciente. Para Saussure (1959), o pai da linguística moderna, tratava-se de uma questão óbvia demais para merecer qualquer discussão mais aprofundada. […]o fato é que o conceito de “língua” que os estudiosos adotaram a priori, ou seja, antes mesmo de qualquer verificação empírica, não admite qualquer possibilidade de que as línguas encontradas no mundo real – sobretudo nos dias de hoje, quando os contatos entre os povos estão se processando na velocidade da luz e em volumes inimagináveis algumas décadas atrás – possam evidenciar instabilidades, não passageiras, mas estruturais e constitutivas. […] O que torna o conceito clássico da língua cada vez mais difícil de sustentar é que ele abriga não só a idéia de auto-suficiência, mas também faz vistas grossas às heterogeneidades que marcam todas as comunidades da fala. Isto é, as diferenças são tratadas como fenômenos contingentes a ser estudados num segundo momento. Nas palavras de Fairclough (1992), a língua é abordada como ela poderia ser num mundo ideal e paradisíaco e não como ela de fato é em nosso mundo vivido. (RAJAGOPALAN, 2003, p.26 e 27)

Ainda acerca da estrutura lingüística no português, Martinho da Vila observa, em depoimento, a diferença de significados dentro dessa língua, por exemplo, da palavra “colono”: “colonizador” para Portugal; e “aquele que trabalha na terra”, para o interior do RJ. “Uma mesma língua, mas que não é falada da mesma maneira”, como coloca Teresa Salgueiro, vocalista da banda portuguesa “Madre Deus”, que, na época de seu depoimento para o filme, realizava um show no Rio de Janeiro. A cantora, ainda, confessa o prazer dos portugueses ao se reconhecerem nos brasileiros, e vice-versa: a comunicação atiça uma vontade de aproximação, ainda que haja diferenças – há certa curiosidade, certa admiração. Aqui, inclusive, cabe um detalhe interessante: no que diz respeito à edição, o diretor, ali, interessa-se em fundir dois estilos musicais portugueses diferentes. Para anunciar o depoimento da banda, ele capta uma senhora lavrando a terra em um ambiente na África, em cuja cena ouve-se sua humilde cantoria, que acompanha os movimentos da enxada. Por meio da montagem, há a preocupação em contrastar esse cantarolar de uma gente simples com a majestosa canção da banda “Madre Deus”, que agora aparece no palco, atraindo um público mais elitizado. Além disso, cabe enfatizar aspectos da decupagem: as posições de câmera reservam atenção aos registros dos personagens (suas feições) e ao que serve para ilustrar o português, para ilustrar os depoimentos (paisagens, ambientes do cotidiano) enquanto se desenvolve o discurso em voz over. Há também o uso de closes, como forma de aproximação dos rituais, das expressões, das diferenças. A narração é construída pela montagem, pelos arranjos dos depoimentos e só é interrompida pelos mapas que fornecem a informação sobre a quantidade de falantes do português no país em que é anunciado o personagem. Tudo serve para acentuar os contrastes culturais: cada um narra uma história, a sua história… Aquilo que sabe de melhor.

Assim, aos poucos o espectador é conduzido à conclusão, à articulação de todos os elementos registrados, todo o entrelace de localidades que constituem um global de mesma língua, de intersecção de identidades. “Não há uma Língua Portuguesa; há línguas em português” – Saramago conclui, exemplificando todos os inúmeros usos no filme retratados, as ramificações que da língua foram feitas, todas as traduções culturais que o português foi capaz de realizar. Ela “é um corpo espalhado pelo mundo” – Saramago ainda coloca. “A língua transitando, se espalhando pelo mundo. Ela é de todos, e só tem uma permanência se ela está agregada no cotidiano das pessoas. É uma língua aberta, permeável, que tem ‘jogo de cintura'” sintetiza o diretor do documentário, Victor Lopes, em entrevista disponível nos extras do DVD.

Por fim, o filme se encerra com as vozes de crianças repetindo frases ditadas pela professora, ilustradas com a imagem de um pôr-do-sol, representando o fim do dia, que logo irá recomeçar. É o tempo cíclico – que simboliza a ideia do eterno processo em que o mundo se envolve na construção de identidades, de relações, de cruzamentos. É um tempo cíclico metaforizado pela frase das crianças submetidas àquilo que ganha importância para uma melhor adaptação a todo esse universo linguístico: a alfabetização.

Portanto, atravessando diferenças de nacionalidades, etnias, idades, condições, objetivos, cotidianos, empregos, religiões, ideologias, descendências, habilidades, sexualidades, fama expõe-se um universo interior e exterior fragmentado, como um quebra-cabeças embaralhado, que de qualquer forma garante um sentido. São retratos de mosaicos interiores que se projetam para fora e vão tomar o mundo, o global: partindo-se de identidades culturais para reciclar identidades linguísticas, que, simultaneamente, constituirão a identidade mundial: “somos um eterno ‘ tornar-me’, um vir-a-ser que nunca se completa” – como diria Sartre.

BIBLIOGRAFIA:

HALL, Stuart (2002) A Identidade Cultural na pós-modernidade. 7a edição. Rio de Janeiro: DP&A.

RAJAGOPALAN, Kanavillil. (2003)  . Por uma lingüística crítica: linguagem, identidade e a questão ética. São Paulo: Parábola Editorial.

SARTRE, J. P. In www.wikipedia.org

JANEIRO, Antóno. Moçambique para todos. Disponível em : <http://macua.blogs.com/moambique_para_todos/2006/11/beira_grande_ho.html> Acesso em 19/ 11/ 2006.

FILMOGRAFIA:

Língua – vidas em português – Victor Lopes, 2002, BR/Portugal.

Aline de Oliveira Penna é graduada em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).


Intervenção minha.

As expressões entre aspas, utilizadas por Stuart Hall, remetem a Edward  Said.

Localizado em Beira, Moçambique, o (ex) Grande Hotel , construído na década de 50 , encontra-se hoje em avançado estado de degradação. Em seus quatro pisos habitam cerca de 3700 pessoas, entre agentes policiais, funcionários da Entreposto – até há pouco detentora do imóvel,  posteriormente oferecido ao governo provincial – vendedores ambulantes e desempregados. O edifício não dispõe de água, energia elétrica, casas de banho, ou outros aspectos condizentes a uma boa habitabilidade. (Dados retirados de http://macua.blogs.com/moambique_para_todos/2006/11/beira_grande_ho.html).

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Este post tem 2 comentários

  1. Author Image
    Tomas

    Exmo Srs
    Gostei do vosso trabalho sobretudo o “Fragmentos de identidades unificados pela língua”.
    Gostaria de ter mais detalhes da vossa identificacao para poder citar no meu trabalho de pesquisa.

    Muito Obrigado
    Tomas Dzeco

  2. Author Image
    Aline Penna

    Prezado Tomas,
    Agradeço pelo elogio ao meu artigo e peço desculpas por tanta demora em te retornar, fazia algum tempo que eu não dava uma olhada aqui no site.
    Segue meu email para contato se ainda houver interesse e estiver em tempo: alineopenna@gmail:disqus.com
    Obrigada
    Aline Penna

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