Imagens, sintomas e questões de um tempo: A condição masculina a partir de um certo cinema americano contemporâneo

Eu sou melhor que você/ Mas por favor fique comigo que eu não tenho mais ninguém.”
Moreno Veloso

Não pretendo falar aqui de uma safra de filmes, nem uma linha que determinado cinema americano venha seguindo, mas do que alguns filmes, seja isolados, ou juntos, na sua diferença, constroem, discutem e dizem sobre um tempo, especialmente sobre as relações de afetividade em um tempo. Percebi a possibilidade de construir esse fio através de filmes muito diferentes, mas que desassossegam questões sobre certos pontos que dizem respeito a questões de afeto e de um certa condição de gênero na contemporaneidade a partir de um olhar americano.

Há a comédia de grande sucesso no verão americano de 2009 chamada “Hangover” ou, no Brasil, “Se beber não case”. E não somente por seu conteúdo, mas também pelo seu sucesso, é possível notar para além do riso que a película traz, alguns sintomas de um certo gênero de filmes americanos que se consolida: a comédia masculina. Filmes que normalmente se caracterizam por uma certa liberdade no comportamento masculino quando longe de suas mulheres, pelo menos das oficiais. É engraçado perceber a simbologia que o filme constrói com a cidade de Las Vegas, como um lugar para além da moralidade da sua vida cotidiana, um lugar de desbunde, diversão, em certa oposição ao cotidiano careta, comedido, ou simplesmente histérico representado pela mulher de um dos personagens. O filme é hilário no tratamento a isso, e partilhamos do riso insano de determinadas situações. Mas ele parece dizer para além do riso, e do nonsense do tigre de Mike Tyson no quarto de hotel dos três amigos. O filme parece dizer também de uma crise masculina, ou uma crise de valores americanos e da necessidade de radicalização desses valores como possibilidade de felicidade, ou senão, mais fugazmente, como um lugar de diversão.


E é o termo crise que nos leva ao encontro de um outro cinema, uma outra obra também de 2009: O filme “The Girlfriend Experience” de Steven Sodenbergh. Nele acompanhamos Christine: casada, silenciosa, linda, e que trabalha como garota de programa. Acompanhamos o seu cotidiano e seus encontros com seus clientes, sua relação bem-resolvida com o marido que sabe da sua profissão mas demonstra o seu ciúme quando percebe que ela se envolve com um dos clientes. O filme diz de Christine, mas diz muito dos homens que cruzam seu caminho. Enquanto filma Christine, seus encontros e seu cotidiano, Sodenbergh parece sempre querer chamar a atenção para o momento de crise em que passa seu país em um período pré-eleitoral. Vemos os homens que encontram Christine, na fragilidade de quem deseja e precisa pagar por isso, ou não pelo desejo, mas simplesmente por uma companhia. E vemos a crise que se mistura entre as questões financeiras e afetivas, por vezes tão indissociáveis na cultura americana. À certa altura, enquanto a personagem de Sasha Grey tira sua roupa em um dos encontros, o homem tenta lhe convencer a votar em McCain, em uma cena que seria engraçada se não fosse tão melancólica.

A construção feita por Sodenbergh não se resume as “Confissões de uma garota de Programa” que o título brasileiro teima em querer chamar a atenção, mas desses sintomas contemporâneos de homens atrapalhados com o que sentem, o que desejam, e que constroem universos de vida pública e de vida privada em que se opõe questões morais e questões de prazer, quando elas são sempre claramente misturadas e confusas. Talvez venha daí a confusão dos homens que Sodenbergh filma, talvez venha de uma confusão outra maior, da cobrança de posição social, da cobrança de sucesso sexual, ou simplesmente pela falta de jeito de lidar com o desejo, seja por quem ele for.

Em “Se beber, não case” a questão masculina é tratada de forma divertida mas, por vezes, as questões que lhe fogem o controle quando se trabalha com a linguagem tratam também dessa crise, é possível falar disso especialmente quando pensamos no personagem de Ed Helms, o dentista, que vive um casamento falido, e que na tal viagem para Las Vegas, em meio a toda a bagunça que viveram, percebe ternura vinda da personagem de Heather Gaham, a stripper, e vê naquilo uma possibilidade de afeto ou simplesmente uma experiência genuína vivida. Mas não só nisso, a fuga, questão constante, mesmo quando o tema se volta para a “ressaca” do dia posterior a farra, também diz dessa busca por um prazer genuíno, mesmo que fugidio.

E aqui me vejo diante de uma outra obra, que chama pra si um tom já diferente das obras citadas, mas diz sobre a construção desse fio de pensar nossas relações de afetividade na contemporaneidade e a condição masculina nessa costura.

“Two Lovers” de James Gray nos apresenta Leonard, seu cotidiano de trabalho na lavanderia dos pais, as vivências doloridas após a separação da noiva, e sua falta de jeito, vinda talvez de uma sensibilidade e entrega exacerbada, para lidar com suas relações de afeto e desejo.

No início de “Two Lovers” a personagem de Vinessa Shaw, Sandra, diz que quis conhecer Leonard após ir na lavanderia que ele trabalha e ter visto ele chamando a mãe para dançar. E ele lhe diz: “Isso é muito eu mesmo”. Leonard dança com Michelle em uma boate, tenta lhe beijar o pescoço e depois, decepcionado, arranca um resto de papel colado na parede de um poste enquanto a espera. Ali, talvez ainda não saibamos, mas o filme vai tratar de construir e dizer que aquilo é “muito Leonard”, e são em gestos como esse que está a força do filme de James Gray e sua verdade.

Não é fácil dizer do que trata o filme de James Gray, mas o que parece interessar ao drama que James Gray deseja construir são as expectativas e a forma como delas se constitui e se agarra seu protagonista. Expectativas que alimentam e também podem ser tão destrutivas. E aqui saio do eixo do masculino simplesmente, para pensar expectativas demasiado humanas que Gray parece querer radiografar, ou simplesmente olhar. Essas expectativas dizem disso, e os pequenos gestos de Leonard diante de suas decepções dizem também, muito. Dizem de um homem, que visto por um olhar pouco delicado veria somente o dilema de “carreira” e de desejo que sim, está contido na obra, mas que visto com delicadeza, encontramos um drama sobre o desejo de ser feliz, e sobre as expectativas que uma possibilidade de felicidade traz e as imbricações sociais que essa busca e desejo carregam.

Além dos dilemas de carreira e de desejo que Leonard vive, o filme parece querer tratar das peculiaridades de certos momentos em que notamos as expectativas de felicidade do personagem, mesmo as mais frágeis. Como nas várias cenas de espera vividas por Leonard, e tantas vezes vividas por todos em que rezamos para que alguém chegue, porque o não chegar quer dizer desmoronar, quer dizer em um instante perder tudo. E “tudo”, nesse filme, parece ser Michelle, a personagem de Gwineth Paltrow, ou a vibração e energia que ela parece carregar consigo, energia entregue às drogas e ao relacionamento auto-destrutivo. Isso em contraste com a beleza tranquila de Sandra que “invade” a casa de Leonard e lhe diz do seu desejo de forma bastante simples.

A sexualidade com que trata James Gray as mulheres que decide filmar diz muito sobre a confusão de Leonard, desde a energia e o lado perdido mais óbvio de Michele, a sexualidade resolvida de Sandra, um tanto afetada para o protagonista pelas relações de interesse que aquele relacionamento implica para a família dos dois.

É interessante pensar nos personagens um tanto longe do contexto familiar e de pressão de que o filme também fala, pensar em Leonard diante das escolhas, e diante das faltas de escolha do seu desejo. Como na cena em que Leonard ameaça ir embora e a mãe lhe olha e lhe diz que para além de tudo isso, quer que ele seja feliz, para além da possível chantagem das relações de poder e interesse que podiam tomar lugar do filme naquele momento. E a questão é de querer ser feliz mesmo, e do que essa expectativa e desejo envolvem, e dos lugares onde a felicidade se acha.

A questão masculina que procuro trabalhar como fio para pensar os filmes diz disso, diz dessas questões que o filme de Gray procura filmar tão pessoalmente e com tanta proximidade. Esse andarilhar um tanto sem jeito e atrapalhado parece ser um jeito de homens, e mulheres, na sua diferença, quererem ser felizes. E essa busca também tem sua historicidade, as expectativas também, e esses filmes dizem do nosso tempo, dos homens e de seus desejos, quereres, expectativas, que podem levar seja aos impulsos suicidas de Leonard, ou ao encontro de uma garota de programa e ao envolvimento ou não com ela. E essa falta de jeito do homem contemporâneo para lidar com o que o cotidiano pode ser dita por um olhar americano também através da simples e hilária fuga para Las Vegas e a possibilidade de felicidade veloz e frágil que ela representa. São imagens sintomáticas impregnadas dessa carga afetiva mesmo quando a construção central é outra, ou mesmo quando o que se quer mostrar é isso mesmo, a fragilidade que nos submetemos por querermos ser felizes, e como na contemporaneidade nossas indas e vindas mais improváveis dizem disso.

Tainah Negreiros é historiadora. Tem trabalhos voltados para a leitura histórica de obras cinematográficas e de literatura. Possui experiência em projetos educacionais e produções audivisuais independentes que dialogam com a memória, o tempo e a afetividade.

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Este post tem um comentário

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    thiago

    Acho que essa é uma condição não apenas do homem americano, mas do homem atual, o homem do ideal posto de vida, objetivos e conquistas. Estamos todos confusos e presos a uma cultura que cobra atitudes e apresenta em troca esses prazeres fugidios que sofrem de uma relação paradoxal de aceitação e repúdio pela sociedade.

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