Michel Gondry e a convergência de mídias

por Roger Mestriner*

1. Histórico e características de Michel Gondry

Michel Gondry iniciou sua carreira em videoclipes utilizando-os como campo de experimentação ao agregar e citar mídias diversas em seus vídeos, já trabalhando a questão da incorporação das mídias digitais. Ele começa a realizar videoclipes de sua própria banda, chamada Oui Oui, no qual atuava como baterista. Identificando-se mais com a produção audiovisual do que com a musical, Michel Gondry passa a produzir vídeos para outros grupos, como Je danse le Mia para o grupo francês de rap IAM, e Human Behavior e Army of Me para a cantora Björk.

Michel Gondry ajudou a dar vida nova aos videoclipes durante os anos 90. Diante da volatilidade da informação e dos cortes numerosos na cena apresentada, características constantes dos videoclipes, Gondry opta pela ilusão em frente às câmeras; à ausência do corte, sendo o plano-seqüência uma de suas marcas registradas; e às imagens em função do ritmo, não da letra da música. As imagens poderosas e enigmáticas criadas por ele questionam a percepção de realidade, utilizando os recursos oferecidos pela mídia de forma extremamente inventiva e pueril, feito uma criança explorando brinquedos novos.

Gondry faz do videoclipe um campo de possibilidades, o qual ele usa a fim de explorar seu próprio universo intelectual e emocional. Gondry se desprende da idéia da transição literal da letra da música em imagens, “deixando os músicos com os quais trabalha em segundo plano (…) e mesmo assim se mantém fiel ao espírito do clipe (como mídia), que é a ilustração para o som” , apoiando-se principalmente no ritmo da música e criando uma seqüência de imagens rítmicas, tendo como fio narrativo um enredo geralmente ilógico. Por exemplo, em Let Forever Be, feito para o grupo inglês The Chemical Brothers, Gondry parte do princípio de fractais – padrões geométricos encontrados na natureza – para mostrar a percepção caótica que uma balconista tem de sua vida; e para Fell In Love With a Girl, produzido para o grupo The White Stripes, ele realizou uma animação usando blocos plásticos de Lego.

Revolucionário e buscando prever as tendências, introduziu ao público o efeito bullet time, imortalizado no filme Matrix: um sistema de câmeras ligadas uma à outra, alinhadas horizontalmente para que cada uma captasse um frame do mesmo instante. Essa técnica foi usada pela primeira vez no videoclipe Army of Me, de Björk, e em escala maior e de forma mais sofisticada em Like a Rolling Stone, dos Rolling Stones, e nos comercias de Smirnoff e Gap.

Gondry busca fazer o efeito especial acontecer sempre diante das câmeras, usando o mínimo possível de efeitos digitais na pós-produção. A quebra de referenciais visuais, ângulos inusitados, falsas alterações de imagem, planos revertidos, projeções e sobreposições são alguns dos recursos muito utilizados por ele com maestria. Os recursos que ele utiliza não parecem datados, pois não ocorre o deslumbre técnico permitido pelo tempo da concepção, afinal, a técnica aqui é sabiamente usada em prol da história e mensagem que se quer passar.

2. Advento do digital e Gondry como um dos destaques desse momento

As novas relações que se estabelecem entre o espectador e a obra fílmica com o advento das mídias digitais determinam uma ampla revisão dos métodos do pensar e do fazer audiovisual. Nesse espaço de convergência, as vantagens criativas que as mídias digitais oferecem são enormes, possibilitando uma maior liberdade de expressão a custos menores, ao mesmo tempo em que não representam necessariamente um movimento de ruptura ou de abandono das antigas formas de narrar, sinalizando para um movimento de reconfiguração da narrativa a partir do diálogo que se estabelece entre os diferentes suportes expressivos em imagem e som.

Assim sendo, Michel Gondry mantém o sistema de trabalho visto até então em sua transição para o cinema: uma nova mídia para explorar seu universo pessoal. Gondry é bem-sucedido ao ambientar suas histórias surreais em um mundo fantástico, semelhante ao nosso, mas com regras próprias e utilizando uma técnica ou conceito simples e expandindo-o a níveis incríveis. Seus trabalhos refletem a aura competente e brincalhona de um homem que se diverte com o que faz e que não perdeu a alma lúdica, que faz dele um criativo compulsivo.

A seguinte análise que realizo de alguns dos principais videoclipes dirigidos por Michel Gondry e de seu principal filme procura desvendar as técnicas utilizadas e encontrar os significados subjetivos pretendidos com tal técnica, ilustrando, assim, a maestria técnica e narrativa de Gondry e o uso sábio da convergência de mídias.

2.1 The Chemical Brothers – Let Forever Be


Baseado no princípio dos fractais – de encontrar geometria na natureza ou em histórias -, Gondry conta a história de uma mulher que confunde realidade e fantasia e termina sufocada por sua rotina.

Essa mulher, em seus delírios, multiplica-se em sete dançarinas e começa a fundir (ou não discernir) o mundo real e o fantasioso, enquanto um misterioso baterista assombra-a ao decorrer do vídeo.

As imagens foram captadas com DVCAM nas cenas do “mundo real” e com película 35mm nas cenas com as dançarinas, sendo posteriormente fundidas utilizando efeitos de morph e imagens geradas por computador (CGI – Computer Generated Images), criando o efeito caleidoscópico desejado para transportar o espectador entre realidades.

Em seu videoclipe mais delirante e visualmente arrebatador, Michel Gondry retrata a confusão da vida moderna, a escravização do indivíduo ao relógio e às obrigações que vão contra seu real desejo, e como a falta de tempo ao lúdico faz com que ele invada a realidade para se expressar.

2.2 Massive Attack – Protection


Em um único take de seis minutos, o vídeo mostra um edifício de seis andares e seus moradores. Passeando pelos apartamentos, a câmera examina a vida dos moradores através de cada janela.

Os movimentos das pessoas são pesados, mal se movem, enquanto outros desafiam as leis da gravidade. Esse efeito foi conseguido graças à forma como o cenário foi construído. Mesmo parecendo ser um alto edifício de seis andares, ele foi construído no chão, e os personagens estão deitados sobre o cenário. Alguns espelhos e projeções foram usados para mostrar o corredor do prédio e o tráfico da rua, e certas partes do cenário são removíveis, para que a câmera atravessasse as paredes do edifício.

O ângulo de filmagem e a posição dos atores nos transmitem a sensação de estranhamento sutil e torpor desejados pelo diretor: a câmera se move de forma não-usual, atores parecem presos a paredes e objetos de cena e até os tecidos das roupas se comportam de forma incomum. O vídeo e a música são lentos e contemplativos e, aliados à imaginação de Gondry na concepção, o espectador mantém-se atento à possibilidade do fantástico.

2.3 Kylie Minogue – Come Into My World


Nesse videoclipe, a cantora Kylie Minogue anda pelo trecho de uma cidade e, quando volta ao ponto de partida, uma “nova” Kylie Minogue se junta a ela. Esse processo se dá até o fim do vídeo, quando quatro Kylies Minogues dividem a tela. Junto a isso, as pessoas ao fundo também se multiplicam e repetem suas ações com poucas variações.

Esse efeito foi obtido através da filmagem de um plano-seqüência sobreposto em loop, com trajetórias demarcadas para todos os cidadãos que povoam o vídeo, câmera sobre trilhos, sempre executando o mesmo movimento à mesma velocidade, e tratamento de imagem na pós-produção.

Assim, Gondry nos mostra como a massa popular é dinâmica e interessante, e como o drama humano, apesar de estar sempre se repetindo, nunca é nada menos que fascinante. Essa idéia da repetição será expandida em seu principal filme realizado, Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças.

2.4 The Rolling Stones – Like A Rolling Stone


Esse videoclipe contém os primórdios do bullet time, efeito imortalizado em Matrix, no qual várias câmeras ligadas uma à outra e alinhadas horizontalmente capturam diferentes frames do mesmo instante. Com essas imagens captadas, um software modela o ambiente e torna possível criar uma cena onde uma câmera virtual passeia livremente em um momento congelado.

Outro efeito desse vídeo consiste na captação de imagens em 4 frames por segundo e a transição entre um frame e outro, para completar os 24 frames necessários para a composição de um segundo, foi feito digitalmente com morph. Uma festa real foi organizada e o diretor andava por entre as pessoas captando as imagens como um fotógrafo comum.

Tais efeitos buscam emular o efeito embriagado e delirante da protagonista em busca de drogas, que contrastam com os flashbacks equilibrados e sólidos de uma festa luxuosa e lasciva, talvez lembranças do efeito desejado com as drogas. Fica a impressão de que a realidade pode ser distorcida com um simples movimento, a constante simbiose entre o corpo e o mundo que o cerca.

2.5 The White Stripes – Dead Leaves and the Dirty Ground


Em sua segunda parceria com The White Stripes, Gondry utiliza apenas projeção para mostrar em flashback como um bando de baderneiros destrói a casa de Jack White e também seu relacionamento com Meg.

A casa parece contar o que aconteceu para Jack. Após sua saída, um bando de baderneiros invade a casa e a destrói. No fim de tudo, Meg faz suas malas e também vai embora. Momentos carinhosos entre o casal antes da destruição também são relatados nas paredes. As imagens projetadas sobre o cenário e o personagem principal dão a idéia de sua passividade diante do fluxo das lembranças.

Com esse recurso, Gondry mostra a enxurrada emocional que nos toma quando voltamos a um lugar onde algo importante nos aconteceu. Mais uma vez, o tema do indivíduo intimamente ligado à realidade que o cerca.

2.6 Gondry em Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças


Em Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (Eternal Sunshine of the Spotless Mind), ele parece se sentir confortável e familiarizado com o dispositivo cinematográfico. Conseqüentemente, conseguiu grande reconhecimento crítico e popular. Com roteiro de Charlie Kaufman, um dos novos grandes nomes do cinema contemporâneo, busca abordar questões clássicas de forma surpreendente e inovadora, misturando o surreal e o comum em narrativas temporalmente fragmentadas. Um encontro ideal de mentes inventivas e compulsivas.

Brilho Eterno conta a história de um rapaz, Joel, que descobre que foi apagado da memória de sua ex-namorada, Clementine, por uma empresa especializada, chamada Lacuna Inc. Ele decide passar pelo mesmo procedimento, mas se arrepende tardiamente e tenta desesperadamente guardar Clementine em algum canto obscuro de sua mente. Joel passa então a reviver e comentar suas lembranças.

Desfoque, mudanças de luz e perspectivas forçadas são alguns dos truques utilizados por Gondry em Brilho Eterno para melhor expor a idéia principal do roteiro – o esvanecimento de memórias – e criar um clima nostálgico e reconfortante.

O filme conta com vários planos-seqüência que mostram a interpolação de memórias sobre o fim da relação de Joel com Clementine, criando cenas de fluxo de consciência dentro do plano. Perspectiva forçada lança Jim Carrey à estatura de uma criança quando em suas memórias infantis.

O roteiro cinematográfico de Brilho Eterno espelha a tendência de exigir uma posição ativa do espectador ao suprimir informações, quebrar a linearidade temporal e inserir antecipações de fatos que acontecerão. O filme se estrutura como a própria memória viva e pulsante – momentos de digressão ao passado com constantes lembretes de uma linha presente linear.

Brilho Eterno busca o diálogo com o público ao alimentar suas expectativas com um roteiro repleto de informações e visualmente inventivo, de forma a encher a mente da platéia e fazendo com que ela se coloque em posição de alerta. É exigido esforço do espectador para que tudo faça sentido na primeira vez, e tal complexidade funciona como um convite a assistir ao filme múltiplas vezes, a fim de descobrir o que foi perdido. Enquanto o filme acompanha as memórias de Joel de trás para frente – do fim para o início de seu relacionamento com Clementine, pois durante a trama explica-se que, para apagar as memórias, o processo inicia-se a partir da mais recente, seguindo para as mais antigas – o núcleo narrativo dos profissionais da Lacuna Inc. trata de manter o filme numa estrutura linear convencional, ou seja, existem dois núcleos dramáticos com linhas temporais opostas. Desta forma, o espectador não perde totalmente a referência de uma história linear, sendo constantemente lembrado, durante as idas e vindas de um núcleo para o outro, que as linhas temporais de cada núcleo seguem em direções diferentes, até o fim da operação.

Uma vez encerrada a operação, o filme retoma seu prólogo, que na verdade foi um flashforward, e dá continuidade a ele, esclarecendo-o e alterando a percepção do espectador diante do início do filme, que mostrava Joel e Clementine se conhecendo. Por se tratar do início do filme, a impressão inicial é que acompanhamos o início do namoro do casal e há um lapso temporal, aos 20 minutos do filme, que corta (presume-se) para o fim da relação. Ao retomar esse prólogo dentro da linha diegética do filme, o espectador entende melhor esse momento inicial e remonta os acontecimentos até então. Faz-se necessária uma posição ativa do espectador perante a obra para melhor entendê-la.

A possibilidade de constante reinício da vida amorosa a partir do zero remete ao universo cyberpunk, onde a memória é tratada como algo palpável, como um arquivo de computador; e também à própria natureza do videogame, com seu constante start e game over.

A cena final do filme, com Joel e Clementine correndo pelo litoral da praia, sendo essa cena repetida três vezes até o evanescimento, retorna a uma questão já apresentada por ele no vídeo Come Into My World: a constante repetição do drama humano, sempre fascinante.

3. Conclusão

O advento das mídias digitais exige participação ativa do indivíduo e promovem transformações nas estratégias narrativas atuais, que são assimiladas pelas outras mídias. Com sua bagagem agora direcionada a uma nova mídia, Michel Gondry prova que o cinema contemporâneo ainda é capaz de surpreender e continuar a nos fazer refletir sobre a condição humana, e ainda produz uma obra atraente diante desse novo panorama que se traça com a incorporação de diversas mídias.

Gondry busca sempre fazer o incrível acontecer diante das câmeras, um jogo constante de ilusionismo. Brinca com as possibilidades do dispositivo cinematográfico para extrair o fantástico de ações cotidianas, almejando balançar nossa percepção de realidade e inserindo poesia no dia-a-dia. Ao iludir o público com um único plano-seqüência, deixa a impressão de que a magia é real, que o fantástico foi apreendido no instante em que aconteceu e, portanto, a realidade pode ser mágica, basta ter olhos para enxergar além.

*Roger Mestriner é graduando em Imagem e Som pela UFSCar. Atua como produtor audiovisual no Instituto de Estudos Avançados na USP São Carlos e desenvolve a pesquisa de iniciação científica “A Influência das Mídias Digitais no Cinema de Michel Gondry”, sob a orientação do Prof. Dr. João Carlos Massarolo, além de outros trabalhos no meio audiovisual.

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Este post tem 4 comentários

  1. Author Image
    Felipe Cazale

    Excelente texto!

  2. Author Image
    luana

    quem é o autor desse artigo? por favor, forneçam as informações necessárias para podermos fazer uma citação! 😀

    valeu!

  3. Author Image
    luana

    obrigada! eu percebi minha comida de bola, mas obrigada por atualizar a informações! 😀

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