Midialogia: dos saberes e fazeres da cultura midiática

Iara Iis Schiavinatto é Professora Doutora do Departamento de Multimeios, Mídia e Comunicação – Unicamp e Coordenadora Associada do Curso de Graduação em Midialogia

Gilberto Alexandre Sobrinho é Professor Doutor do Departamento de Multimeios, Mídia e Comunicação – Unicamp e Coordenador do Curso de Graduação em Midialogia

1.

Em Seis propostas para o próximo milênio, Ítalo Calvino enumera e discorre sobre os valores literários destes tempos já iniciados: a leveza, a rapidez, a exatidão, a visibilidade, a consistência e a multiplicidade. Deste ensaio, retemos componentes fundamentais de sua escrita, a saber, o pensamento como resistência, as palavras como o lugar do distanciamento e da reflexão e um olhar que tensiona temporalidades e tradições. Ali, a narrativa romanesca edifica-se como o lugar da vivência humana transmutada em linguagem. Há em cada digressão o gesto atualizado sobre as transformações e suas semioses. As mudanças na paisagem são aceleradas vertiginosamente, há uma floresta de signos que contamina literário e mesmo sem se referir a um fenômeno destes tempos, está implicada a midiatização da experiência.

A mídia alterou significativamente as relações sociais, culturais, econômicas, políticas e transformou a comunicação em objeto do conhecimento e o século XX testemunhou mudanças sem precedentes. O que é a mídia? Apresentar suas características é um caminho para desenhar sua definição: 1) ela abrange uma quantidade imensa de pessoas, daí os imperativos de raça, gênero e nação serem constituintes de seu alcance e de suas tensões 2) os produtos midiáticos são multimodais (incluem a fala, a escrita, o áudio, o não-verbal,  as formas visuais de comunicação e suas inter-relações); 3) os produtos midiáticos empregam tecnologias; 4) corporações industriais são envolvidas na produção midiática; 5) há freqüentemente múltipla autoria; 6) a regulamentação da mídia cabe aos governos.

Do surgimento e do impacto das imagens fotográficas aos territórios da hipermídia vemos adensar um processo em que as máquinas de imagens e de sons alteram significativamente a paisagem e uma cultura midiática reelabora a sensibilidade e a sociabilidade, os saberes e as relações de poder. A esfera pública ganha contornos diferenciados num tempo-espaço em que a velocidade é valor e a paisagem se contamina por telas múltiplas, com apropriações e usos diferenciados.  O curso de graduação em Midialogia problematiza essas emergências.

2.

A grade curricular do curso de Comunicação Social – Habilitação em Midialogia operacionaliza os seguintes objetivos acadêmicos e pedagógicos: estudar o saber-pensar, o saber-fazer[1], o saber-estar e o saber-ser das culturas midiáticas, seus sentidos, estatutos, condicionantes, eficácias, singularidades; matizar historicamente a elaboração da linguagem e seus significados por meio dessas mídias; nuançar a partir e dentro da antropologia o lugar e os significados destes processos comunicacionais e de elaboração dos sentidos que são instituídos pelas mídias e pelas produções audiovisuais; privilegiar histórica e conceitualmente o debate do saber-fazer e da técnica na sociedade a fim de embasar uma boa formação de domínio da linguagem destes meios por parte do graduando; implementar oficinas de produção e realização; garantir uma formação dos estudantes com familiaridade com as linguagens e referências das Ciências Humanas e da área de Tecnologia das mídias; formar um profissional capaz de dialogar interdisciplinariamente sobre culturas das mídias; o ensino decorre das práticas de pesquisa de professores e estudantes; o processo de ensino-aprendizagem exige freqüência cultural, social e tecnológica nesta área; esmiuçar os significados ético-político explícitos e implícitos. Estes problemas de saber-ser e saber-estar atravessam todas as disciplinas em menor ou maior escala, contudo sempre é motivo de discussão em sala de aula quanto aos modos de intervir e configurar a esfera pública.

Neste sentido, o curso de Midialogia distingue-se de uma formação profissional, comum na área de Comunicação Social, fragmentada e/ou circunscrita em especialidades muito fechadas. Porque Midialogia, aqui, presume um campo do saber e de interesses marcado pelo trabalho constante como os conceitos e questões referentes à construção das culturas midiáticas, das obras audiovisuais, suas linguagem e narrativas. Neste sentido, a noção de meio audiovisual implica um necessário fundamento na linguagem construída historicamente e um profundo sentido antropológico que marque a diferença, reconhecendo-a e respeitando-a, percebendo-a num processo social. Nesta direção, essa formação acontece num fundo humanístico, sabendo que seus produtos são obras da cultura e nela se conformam.

Com a criação e implantação desse curso, a Unicamp contribui decisivamente na questão do saber das culturas midiáticas e atende a uma demanda social por vagas nessa área de conhecimento de Comunicação Social e formação profissional. Além disso, entra em um debate fundamental da fundação e constituição da esfera pública embaralhada à esfera privada na atualidade.

Por sua vez, o profissional formado poderá atuar na elaboração, produção e finalização da obra audiovisual, sabendo o processo de conformação de cada meio audiovisual e dos meios entre si – sejam eles privados, públicos ou comunitários. Pode criar produtos audiovisuais, como produção em rádio, fotografia, vídeo, cinema, obras em multimídia e na Web, sendo capaz de compreender um campo em permanente mudança por ter, em sua formação, a oportunidade efetiva de estudar, por exemplo, as tecnologias digitais emergentes, envolvendo computação gráfica, multimídia e Internet.

Há a intenção de formar um profissional com uma visão horizontal dos meios audiovisuais e com habilidades específicas em cada meio audiovisual, que vai da fotografia/ cinema às hipermídias. Para tanto, em cada meio audiovisual o estudante contará com um Projeto (Fotografia, Som, Rádio, TV/Vídeo, Multimídia/WEB, Cinema), mais estudos históricos, críticos e teóricos, e mais uma gama de eletivas, a fim de que possa ao longo do curso verticalizar sua formação.

Um profissional formado em Midialogia não está aberto a toda Comunicação Social, desde Relações Públicas até Rádio; pelo contrário, há um interesse centrado em enfocar a produção audiovisual em várias mídias, suportes e linguagem, bem como sabe se inserir e atuar em uma cultura das mídias.

Esse profissional poderá atuar em suas áreas específicas: som, fotografia, cinema, vídeo, computação gráfica, hipermídias, na produção, realização e recepção desses produtos, com um decisivo interesse crítico e analítico nestes meios audiovisuais, podendo desenvolver uma carreira de realizador e/ou crítico, por exemplo. Além de sua possível atuação no âmbito interdisciplinar da Comunicação, na docência e pesquisa.

Acrescente-se que nos parece importante saber que não pretendemos duplicar o mercado das culturas das mídias, não cabe reproduzir dentro do curso suas formas de produção e realização, mas conhecê-las e debatê-las, ensaiar outras maneiras de atuar nestas culturas das mídias, sem negar esta presença do mercado, mas focando, sobretudo que este profissional atuará em um mundo do trabalho. Esta expressão se deve à necessidade do graduado ter noção de que há uma mudança capital nos modos de produção do emprego, um bem cada vez mais escasso no Ocidente, e um aumento significativo da jornada de trabalho, cativada também por estas tecnologias midiáticas. Logo, o graduado deve ter claro para si a importância de continuar sua formação através de vários itinerários: a educação continuada, a freqüência cultural, o trabalho com as línguas, a experiência no estrangeiro, a capacidade de coordenar equipes e se por outros desafios, a crescente força que sua network adquiriu. Nesta medida, dentro da graduação há um debate reiterado sobre as condições do mundo do trabalho e suas mais recentes re-configurações e que, nesta noção de mundo do trabalho, assinala-se a capacidade de operacionalização da carreira por parte do trabalhador e não apenas a determinação se restringe às demandas do mercado. Esta postura não é ingênua, antes procura indicar a precisão do graduado ter consciência das condições de trabalho na sua área e as exigências requeridas dele e, por outro lado, a extensão e validade de suas decisões.

Neste item, é interessante relatar uma experiência dentro do curso. Ao conjunto de professores pareceu impróprio dar nome ao profissional formado em Midialogia. Seria mais pertinente e apropriado que, aos poucos, os estudantes escolhessem um nome para si. Entre as turmas de 2004 e 2006, acabou-se optando pelo nome midiálogos, porque pressupõe continuo diálogo com o outro, consigo, sobre o fazer e saber, sobre as condições de atuação e profissionalização, sobre os sentidos éticos e políticos dos feitos e ditos. Esta escolha já demonstra uma formação universitária que permite esta decisão por meio do funcionamento do curso.


[1] Saber-fazer retoma a noção antiga de technè como comentou Philippe Dubois: Segundo J.-P. Vernant, os gregos, dotados de um ‘verdadeiro pensamento técnico’ , entendiam-no em um sentido fundamentalmente ‘instrumentalista’ , os tchnai sendo assimilados a um conjunto de ‘ regras do ofício’, a um ‘saber prático adquirido pelo aprendizado’ e visando exclusivamente à eficácia e à produtividade ( a exigência do sucesso no resultado é a única medida da ‘boa técnica’). A noção de technè na Grécia clássica é uma categoria intermediaria do fazer: pesar de liberta das esferas do mágico e do religioso da época arcaica, ela ainda não se inscreve completamente no domínio da ciência, que definira  época moderna… a technè remete à idéia de um instrumento ao qual o homem recorre para lutar contra uma potência superior , em particular a da natureza. Ele pode assim dominar uma força que lhe escaparia sem tal instrumento e que, uma vez controlada e canalizada para os seus fins, lhe permite ultrapassar certos limites.

O autor refere-se ao artigo Remarques sur lês forms et lês limites de la pense technique chez lês Grecs de Vernant publicado em Mythe et penseé chez lês Grecs. Paris: Maspero, 1974, p. 44-64. A citação de Dubois encontra-se em Máquinas de imagens: uma questão de linha geral. Cinema, vídeo, Godard. São Paulo: Cosac Naify, 2004,  p. 32, n. 2.

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Este post tem 2 comentários

  1. Author Image
    Enilson Araujo da Silva

    Este artigo mostra a necessidade de uma busca das contribuições da mídia na construção dos saberes/conhecimento, muito necessária no âmbito das escolas na atualidade. Quais as influências na sociedade futura e como se pode beneficiar do acervo midiático.
    Boa publicação.

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