Mulheres à beira de um ataque de nervos – escolhas estilísticas (cor e quadro)

INTRODUÇÃO

Sobre o filme Mulheres à beira de um ataque de nervos (1987), importante é ressaltar que as considerações a que se propõem este trabalho não são restringidas unicamente a esta obra em especial, mas sim, um crescendo estilístico onipresente na filmografia do importante diretor espanhol, e talvez um dos mais inventivos em exercício, Pedro Almodóvar (1951-), que tem um amadurecimento e reciclagem de suas bagagens artísticas característicos – cada filme é novo, porém, semelhante ao anterior -, muito embora essa regra não seja válida a toda sua filmografia, pode-se inferir que sua mise-en-scène é sim reconhecível e admirável.

Dentre títulos premiados como Ata-me (1989), Tudo Sobre Minha Mãe (1999), Fale com Ela (2002) e o mais recente Volver (2006), o filme escolhido para este estudo é uma comédia singular que o projetou ao cenário cinematográfico contemporâneo, a partir do sucesso de crítica e de público.

A análise aqui pretendida será focalizar-nos na imagem, e na forma com que Almodóvar constrói significados e símbolos a partir de usos estilísticos, precisamente cor e enquadramento. Sendo estes tão bem trabalhados a criar um universo barroco e condizente às características esféricas da personagem principal, Pepa, uma mulher que sofre amargurada à espera de notícias de seu amado Ivan, que está de partida.

Valemo-nos, sobretudo, do livro “Conversas com Almodóvar” de Frederic Strauss (Ed. Jorge Zahar) para analisar esse filme e sua construção, tendo sido também necessário recorrermos a cenas do filme em questão, a fim de melhor elucidar o mosaico colorido com o qual Almodóvar cria uma atmosfera ímpar de paixão, sofrimento, loucura e poesia.

AS CORES, ESCOLHAS DRAMATÚRGICAS

Sobre as cores, há de se dizer da repetição do azul, amarelo e vermelho, sobretudo esta última. Ela se faz presente tanto nos objetos do cenário, como nas paredes, na decoração, no figurino, e na própria composição da protagonista, tal qual na cor de esmalte e no batom.

Salvo o já conhecido a que essa cor remete, a paixão, o sangue, Almodóvar, ainda na entrevista ao crítico Frederic Strauss diz da representação do vermelho na cultura chinesa onde “é a cor dos condenados à morte. Isso faz dele uma cor especificamente humana, já que todos os seres humanos estão condenados à morte” (p.113).

O vermelho, sobretudo, não é preponderante nos planos e sequências, como cor única, mas sim, integrante numa composição viva e colorida, reflexo da própria cultura espanhola. No entanto, Almodóvar diz que “a vitalidade das minhas cores é uma forma de lutar contra a austeridade de minhas origens (La Mancha). Minha mãe se vestiu de negro durante quase toda a vida. Desde os três anos foi condenada a fazer luto por diferentes mortes na família. Minhas cores são uma espécie de resposta natural originada no ventre da minha mãe para me rebelar contra a austeridade obrigatória” (p.112).

Além de um caráter de rebelião contra sua própria formação/educação, Almodóvar foi criado em plena explosão pop, nada mais natural que tal escola artística repercutisse no seu fazer cinematográfico, não só como mero enfeite, mas sim, e principalmente “correspondente ao meu próprio caráter e ao de minhas personagens, que são muito barrocas no que se refere ao comportamento”, logo “a explosão de cores combina muito bem com esse tipo de dramaturgia” (pp.112-113).

A dramaturgia almodovariana advém do veio feminino, e para ele se volta; a mulher é retratada com peso visual e discursivo, sendo ela a responsável pelo curso da estória, do enredo, do conflito, não tão somente sozinha, mas em reflexo do abandono pelo homem, aqui, Iván. As personagens femininas, em reflexo à atitude masculina, revoltam-se e se deparam com um mosaico de inter-relações impossíveis, incomunicáveis, restando a ela ou a elas a loucura de seus atos: tanto Pepa, que está literalmente à beira de um ataque de nervos, ou Lúcia, que vive num tempo de nostalgias, do passado, vestindo roupas antigas e negando seu próprio filho, Carlos, personagem vivido por Antonio Banderas.

Em Pepa, o vermelho é extremamente significativo e condizente à moral da personagem, permeia seu universo, seu quarto, seu apartamento e suas roupas, aqui, essa cor substitui o preto, uma vez que representa um luto sofrido por ela após saber que seu amor, Iván, está deixando-a para seguir com outra. Seu luto é muito bem representado pela cor vermelha de seu figurino, condizente com sua característica passional, impulsiva. Ela se impregna dessa cor como forma de expulsar ou exteriorizar todo seu interior.

Enquanto em Lucía, as cores são mais apagadas, desgastadas, surradas, tendendo ao branco e cinza. Talvez uma ligação à forma com que esta personagem se relaciona com o passado, fazendo dele maneira de esquecer a realidade, reiterado, como já dito, também nas suas vestimentas.

ele umase relaciona com o passado, fazendo dele uma forma de esquecer a realidade

O barroco é, pois, em Mulher à beira de um ataque de nervos, uma estética-chave para retratar tantos personagens envoltos na mesma trama, não só quando se vêem os excessos de informações sobre elas, seus exageros, suas características às vezes caricatas, mas também a partir do cenário, do ambiente, figurino, objetos cênicos, etc. São estórias insólitas, que se entrecruzam, envolvendo mulheres arrasadas pelo amor e consumidas pela vulnerabilidade.

O QUADRO, UMA MANEIRA INUSITADA DE RECORTAR

Quanto ao quadro em Mulheres à beira de um ataque de nervos, é necessário especificar o enquadramento como forma de dar informações e pistas sobre os personagens, usando de um trabalho equilibrado com as cores e os objetos. Logo de início, vemos um plano de um bilhete de Ivan a Pepa na contracapa de um LP, o mesmo quadro também está permeado por um cinzeiro amarelo cheio de cinzas e cigarros inacabados, e um copo de um líquido qualquer. O bilhete é o de mais importante, todo rabiscado com vermelho e verde, traz de informação a sugestão de um amor extremamente passional, impulsivo, instável. Esse plano se insere na sequência inicial, de apresentação, em que Pepa descreve sua relação com Ivan, enquanto a câmera passeia pelo seu apartamento a revelar a instabilidade de Pepa, a personagem principal.

Ainda referente ao barroco, aqui esse estilo se faz presente na grande quantidade de informação a que o quadro se utiliza , nunca limpo, sempre em excesso, enquadra os personagens envoltos em objetos extremamente coloridos. Por exemplo, na cena do taxista, Pepa está perseguindo Lucía, e esta é enquadrada através do pára brisa, mais ao fundo, e por fim, vê se a face do motorista no retrovisor. É inusitado e muito bem composto, sempre se valendo de recortes feitos pelos excessivos objetos da cena, reveladores de seus personagens.

A profundidade de campo é um recurso muito utilizado no filme, uma vez que mesmo havendo uma ação principal em primeiro plano, os demais personagens estão ao fundo enquadrados, movimentando-se ou simplesmente compondo o quadro. Pode-se notar isto nas cenas referentes ao apartamento de Pepa, quando da presença dos personagens Carlos, Candela e Marisa.

Enquanto na fotografia, especificamente na iluminação, a luz não tem nuanças de cores, e sim, mantem-se constante no decorrer do filme, não é, tampouco, contrastada, e sim, equilibrada e realista. Importante notar que as cores saltam aos olhos a partir dos objetos cênicos, figurino, cenografia, e não através de filtros de luz, sendo essa uma característica recorrente do cinema de Almodóvar.

Enfim, o quadro, aqui, é forma de retrabalhar os personagens, servir a nós espectadores como meio de informar sem necessariamente mostrar-nos a ação, ele é caminho a se entender suas personalidades, ainda que implicitamente.

O ESTILO POP

Em Almodóvar e principalmente no filme a que estamos nos debruçando, a análise do estilo pop se faz importante. Muito arraigado em sua forma de retrabalhar cor/forma nos objetos ordinários. Quanto à cor, apesar do estilo barroco, já acima analisado, nota-se pouca variação da paleta de cor nos objetos e cenários, não mais que cinco, sendo especialmente preferido, como já mencionado, o vermelho, azul e amarelo. Bem como a arte pop, contemporânea à formação do cineasta, há o uso de cores fortes, chapadas, inseridas num contexto ordinário, aqui, através dos objetos como telefone, cabine telefônica, utensílios domésticos, entre outros. E juntamente a isso vale acrescentar, a acentuação da forma geométrica.

Mesmo na caracterização dos personagens, em especial Lucía, o pop vê-se mais presente a partir de um estereótipo sessentista ou setentista, completamente explicado diegeticamente, já que há a recusa do tempo presente na moral e na personalidade de tal personagem.

Suas vestimentas são extremamente geométricas e retro, acentuadas pelo cabelo e pela maquiagem.

Não exclusivamente em Lucía, mas também em Candela e Pepa. Na primeira, pelo uso dos brincos, formatos de cafeteiras (estetização de objetos comuns), mini-saia, vestido com listras. Já na segunda, blusas com círculos compõem uma faceta até mesmo moral, indícios de personalidade, esférica, desconcertada e desajustada ao todo. Há, pois, a valorização de geometrias e cores simples, porém com grande peso visual tanto que por momentos Almodóvar assume o exagero ou até mesmo o falso, como forma de compor um universo descolado do tempo, da cronologia, do contemporâneo.

Não tão somente aos personagens, figurinos e cenários, o estilo pop é muito bem representado nos créditos iniciais da película, donde há imagens femininas recortadas de revistas de moda dos anos 60, e dispostas a apresentar facetas femininas que serão abordadas na trama; são um prólogo ao universo feminino como bem diz o próprio Almodóvar: “Quanto ao aspecto visual dos créditos de abertura, colaborei com ativamente com Juan Gatti, que é designer e trabalhava com moda (…) propus a Gatti recortar fotos de revistas femininas dos anos 1950 e 1960 e com elas fazer uma colagem com a idéia de que o público entrasse no filme como se folheasse uma revista de moda. É uma forma de introduzir o tema na linha de algumas comédias norte-americanas (…). Gosto muito deste tipo de abertura e queria estabelecer uma estética pop elegante para introduzir o espectador no universo feminino de que o filme vai falar” (p.110).

CONCLUSÃO

Em Mulheres à beira de um ataque de nervos, Almodóvar utiliza muito bem a presença das formas geométricas, do quadro e, principalmente, da cor como meios de representar um universo feminino passional e exagerado. Almodóvar faz uma organização destes elementos para poder evidenciar as diferenças de cada personagem num contexto onde as tramas se interligam e se confundem.

Sua mise-en-scène é ordenada de forma a confrontar cada personagem e suas características, a partir da reutilização ou de nova utilização de um mesmo conceito: objetos e cenários extravagantes e over. Tudo isso é marca do seu cinema kitsch e atemporal, que extravasa às telas paixões, frustrações, impedimentos de forma quase teatral e irrealista.

Almodóvar, nesse filme também, faz uma ode ao próprio cinema, às comédias norte-americanas e ao melodrama, readaptados ao universo espanhol, e regidos com maestria por um cineasta extremamente inventivo tanto no roteiro quanto na regência dos dados estítilicos, principalmente a composição de quadro, já que se priorizam os objetos e o mundo que cerca os personagens, a revelar-nos mais sobre eles.

FICHA TÉCNICA

Título original: Mujeres al borde de um ataque de nervios

Ano de produção: 1987

Roteiro e direção: Pedro Almodóvar

Fotografia: José Luis Alcaine

Som: Guilles Ortion

Montagem: José Salcedo

Cenários: Félix Murcia

Música: Bernardo Bonezzi

Canções: “Soy Infeliz” interpretada por Lola Beltrán e “Puro Teatro”, por La Lupe

Elenco: Carmen Maura (Pepa), Fernando Guillén (Ivan), Julieta Serrano (Lucía), Antonio Banderas (Carlos), María Barranco (Candela), Rossy de Palma (Marisa), Kiti Manver (Paulina), Loles Leon (Cristina), Chus Lampreave (porteira), Guillermo Montesinos (motorista de táxi), Francisca Caballero (locutora de Tv), Augustín Almodóvar (empregado da agência imobiliária).

Produção: El Deseo S.A

Duração: 1h35

BIBLIOGRAFIA

STRAUSS, Federico. Conversas com Almodóvar. Tradução de Sandra Monteiro e João de Freire. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

Juan Ignácio Garcia Chicote é graduando em Diseño de Imagen y Sonido pela Universidad de Buenos Aires (UBA)
Matheus Chiaratti é graduando em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

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Este post tem um comentário

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    Carolina Guimarães Freitas Matos

    Puxa vida, um post que fala o tempo inteiro sobre o figurino e não menciona o figurinista na ficha técnica…

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