O cinema (algo vivo entre nós)

Rodrigo Grota dirigiu os curtas Booker Pittman (2008) e Satori Uso (2007).

Em 2002, em Londrina (PR), quando ainda atuava como jornalista, conheci o poeta londrinense Rodrigo Garcia Lopes em meio ao lançamento do seu livro Polivox. Entre uma conversa e outra, ele me apresentou uma folha amarelada de jornal (de 1985) que trazia a fotinho de um senhor japonês e alguns haicais devidamente acompanhados por uma discreta notícia biográfica. Subitamente Garcia Lopes me perguntou: “Grota, você conhece esse poeta, o Satori Uso?” Confessei imediatamente que não, e revelei achar curioso o fato de um senhor tão resignado ter morado nos EUA e ter conhecido e vivido ao lado de grandes nomes da geração beatnik. Eis que veio a revelação: “Bom, o Satori Uso não existe – é uma criação minha – sou autor dos haicais atribuídos a ele”. Fiquei impressionado com a inventividade de Garcia Lopes, e fui aprofundando o assunto. Ele me contou que na época todos acreditaram ao ler o jornal que realmente existira na região de Londrina a figura do agricultor que escrevia haicais mas que não queria publicar a sua obra. Até o Leminski ao ler a matéria publicada na Folha de Londrina chegou a ligar para o Garcia Lopes: “Po, Rodrigo, me apresenta o Satori. Quero conhecer esse cara”, teria dito o escritor de Curitiba. Em meio a essa conversa, a partir de algum impulso que não sei explicar de onde veio, fiz a seguinte sugestão: “Po, bicho, vamo fazer um documentário sobre esse cara como se ele existisse”. Nascia assim o filme Satori Uso, curta rodado em março de 2006 e que só foi estrear em agosto de 2007 no Festival de Cinema de Gramado, no qual recebeu três prêmios: Melhor Filme (Crítica), Melhor Fotografia (para Carlos Ebert) e Prêmio de Aquisição do Canal Brasil.

Muito do que ocorreu com esse filme se deve pela existência de um grupo de amigos que queriam fazer filmes e se sentiam totalmente isolados em Londrina. Foi graças a esse sentimento de isolamento que surgiu a Kinoarte – Instituto de Cinema e Vídeo de Londrina. Criada em julho de 2003, a Kinoarte era formada inicialmente por amigos que haviam se conhecido em uma Oficina de Super-8 promovida pela Mostra Londrina de Cinema. Até aquele momento eu havia participado de dois curtas na cidade como assistente de produção e nunca havia feito um curso regular de cinema. O pouco que eu sabia vinha dos filmes que pegava em locadora, gravava da TV a cabo ou trocava com colecionadores.

Na fase em que rodamos o Satori Uso a Kinoarte já havia produzido alguns filmes – quase dez, eu acho. Eu havia dirigido três desses filmes (todos em suporte digital): Londrina em Três Movimentos (2004), Inimigo Público n.1 (2005) e O Quinto Postulado (2006). No início, como eu nunca tinha feito um filme, pensei em adotar um método a conta gotas: a cada filme iria me preocupar com um aspecto técnico ou de linguagem fundamental em uma narrativa. Sob esse conceito, pode-se dizer que o nosso primeiro filme, o Londrina em Três Movimentos, tinha basicamente duas preocupações centrais: a primeira estava atrelada à fotografia – como se enquadra, como se cria um plano, como se posiciona a câmera? A segunda estava diretamente relacionada à montagem: como unir imagem e som? Como criar essa seqüência de imagens? Tentar uma ordem racional? Seguir mais a intuição? Essas eram algumas das questões que surgiam e que eu sempre tentava resolver seguindo uma resposta intuitiva. Passados alguns anos posso dizer que o aspecto mais positivo de ter realizado esse primeiro filme foi conquistar a certeza de que dava pra fazer cinema mesmo estando isolado dos grandes centros, das grandes discussões, festivais etc. Estávamos isolados em uma cidade mediana (cerca de 500 mil habitantes) e ultra animados a fazer filmes – foi aí que começamos a perceber que não importava muito se você estava com uma equipe inexperiente, com poucos recursos, poucos equipamentos etc. O que realmente importa em um filme não está necessariamente ligado a esse aspecto material – e sim, a um sentimento, a uma energia criativa que é compartilhada por um grupo de pessoas que decidem se arriscar.

Still do curta "Satori Uso" por Meg Yamagute

No segundo filme, colocamos a nós mesmos dois novos desafios: agora haveria uma história, e também contaríamos com atores (No Londrina…, a cidade aparece vazia, sem a figura humana). Foi o que ocorreu em O Quinto Postulado, creio que o filme mais difícil que dirigi. Inicialmente pelo fato de ser um roteiro escrito por outra pessoa -José de Resende Júnior, professor de Filosofia e amigo, estava muito animado com a idéia de adaptarmos um princípio de Euclides: aquela famosa suposição de que duas retas paralelas se cruzam no infinito. A outra dificuldade era estabelecer uma relação de continuidade entre os planos que não fosse óbvia e que ao mesmo tempo fizesse a história avançar. O filme foi rodado em julho de 2005, com um orçamento de R$ 28 mil. Conseguimos contar uma história, criar uma abordagem visual e sonora interessante, mas avaliando hoje percebo que não soubemos nos adaptar a uma forma de produção própria de um cinema mais narrativo.

Já no terceiro filme, Inimigo Público n.1, a idéia era realizar um documentário sobre um show de Arrigo Barnabé realizado em setembro de 2004 no Sesc Vila Mariana, em São Paulo. O filme acabou com a duração de 46 minutos e nunca fora apresentado, resultando mais em um exercício aproximativo de um longa que queremos produzir sobre a obra do Arrigo: O Homem Crocodilo.

Veio então Satori Uso. Em novembro de 2005, havíamos contado com uma Oficina de Cinematografia Digital conduzida por Carlos Ebert. Esse curso integrava um projeto maior, as Oficinas Kinoarte, que (com patrocínio da Prefeitura de Londrina) conseguiu levar à cidade cineastas que nos ensinaram muito: Andrea Tonacci, Joel Pizzini, Ruy Guerra, Walter Lima Jr. Marçal Aquino, Hilton Lacerda, Kiko Goifman, o próprio Ebert. Como até hoje não há um curso de cinema em Londrina, foi essa a solução que encontramos: tentar trazer profissionais que admirávamos para que pudéssemos trocar idéias e compartilhar de suas experiências.

Still do curta "Satori Uso" por Meg Yamagute

Apresentei o roteiro ao Ebert e ele topou fotografar, sugerindo que rodássemos em digital, com uma Sony Z1 que ele tinha. Inicialmente fiquei preocupado – pois a idéia central do curta Satori Uso era apresentar cenas de um suposto filme feito nos anos 60, em 16mm,  por um cineasta americano inexistente, o Jim Kleist. Criar a personagem de Kleist acabou sendo a forma que encontrei de ser mais fiel à idéia original de Garcia Lopes quando ele criara o Satori. Pensei: para ser realmente fiel à idéia do Rodrigo, vou ter de criar também um heterônimo – um cineasta que vivia entre os beats, conhecera Satori Uso nos EUA e que se orgulhava de nunca ter completado um filme, pois acreditava que finalizar uma obra era retirar parte de sua energia vital.

Todos entusiasmados com o novo roteiro, iniciamos a pré-produção sem um QG para concentrar a equipe. Equipe, aliás, que era muito modesta, pois os produtores (Bruno Gehring, Caio Cesaro e Guilherme Peraro), por exemplo, tinham apenas um assistente (Argel Medeiros). Eu, enquanto diretor, contava com apenas uma assistente (Mariana Soares). Enfim: as reuniões ocorriam na minha casa e era lá que pensávamos o filme e imaginávamos onde filmar, como filmar etc. O meu companheiro mais fiel nessa fase era o diretor de arte do filme, José de Aguiar, que topava avançar madrugada afora pensando nem sempre assuntos totalmente relacionados ao filme em si.

Uma semana antes da filmagem começou a bater um desespero. Pela primeira vez eu iria comandar uma equipe com um fotógrafo profissional, com o qual tivéramos pouco contato até então. Havia uma atriz de São Paulo, a Caren Utino, que iria interpretar Satine, a musa do poeta Satori. E o roteiro não era muito preciso em relação à decupagem: eram descrições de planos bem gerais (algo como “uma folha se move”). Havia optado por esse tipo de roteiro pois mantinha um sonho secreto de realizar o filme praticamente sem roteiro. Queria que as cenas nascessem no set, que descobríssemos o filme no calor do momento, na locação, sentindo as possibilidades que cada lugar e momento iriam oferecer. Poucos dias antes de filmar, comecei a me concentrar e deixei os telefones desligados – fiquei revendo alguns filmes como Persona,do Bergman, Espelho, do Tarkovski, 8 e Meio, do Fellini, enfim – filmes que me mostravam o tipo de cinema em que eu acreditava, propostas com as quais eu queria dialogar, mas me sentia inseguro. Afinal, a proposta era tentar chegar ao set um pouco cru diante das imagens, permitir que elas nascessem na hora. Uma semana antes das filmagens eu até havia visitado as locações junto ao Anderson Craveiro e ao produtor Peraro, mas mesmo assim ainda mantinha algumas inseguranças.

A idéia de criar no set prevaleceu durante as filmagens, mas me fez sofrer muito. Primeiro porque um set de filmagens invariavelmente é um ambiente inadequado para a criação – geralmente não se tem o tempo ideal para criar um plano. Ainda nesse aspecto contávamos com um fotógrafo que era (e é até hoje) muito rápido, o que exigia soluções imediatas da direção (e isso foi muito bom). O diretor, enquanto responsável pela condução estética de um filme, acaba fazendo um trabalho duplo e que exige muita concentração – ao mesmo tempo deve lidar com problemas pragmáticos de produção, arte, aspectos técnicos, e também tentar preservar em sua mente uma espécie de sentimento daquilo que é o filme. Creio que esse processo não é exatamente como Bresson sugere em Notas sobre o Cinematógrafo, obra na qual ele indica que o diretor deve ver o filme antes em sua mente. No meu caso, especialmente no caso do Satori Uso, eu consegui pré-visualizar o sentimento que queria em algumas cenas, mas não conseguia antever o que seria filmado, salvo raríssimas exceções. Dessa forma, creio que um diretor, quando está entrando no set, pode até esquecer detalhes do roteiro, especificidades daquela cena, mas nunca deve se distanciar do sentimento que originou aquele filme, pois é esse terreno interno de incertezas que irá guiar toda a sua postura diante do mundo, do cinema, daquele filme…  Há uma frase do Jim Kleist que abre o filme (e que criei em um fim de noite em um buteco da Frei Caneca) que tenta resumir um pouco essa idéia: “O cinema deveria ser como a vida, fluído, orgânico, fragmento. Mas ele é como a morte – insiste no eterno”.

Por isso acredito que um estudante de cinema ou qualquer pessoa interessada em realizar um filme deve antes de tudo se preocupar em conhecer a si mesmo. Cada filme será um registro do que você e sua equipe eram naquela fase de sua vida – não há como escapar disso. Todos os conceitos, os aspectos técnicos – aquilo que podemos resumir como linguagem – tudo isso é essencial, mas deveria vir como uma segunda preocupação. Ter domínio ou consciência em relação à forma do filme vai ajudar a expressar algo, mas necessariamente não irá resultar em um filme verdadeiro, que esteja relacionado àquilo de mais vivo e orgânico que existe em você e você mal compreende, mal consegue descrever. O cinema tem esse potencial de criar esse diálogo, de romper limites internos que você provavelmente desconhceça. Um filme pode ser, portanto, um gesto essencialmente verdadeiro, e necessariamente coletivo, pois essa auto-descoberta só ocorrerá quando se iniciar o diálogo com a figura do outro, aquilo que não é apenas individual – enfim, a criação em conjunto com a equipe, a abertura para o que não é necessariamente seu.

Cartaz de Booker Pittman
Cartaz de "Booker Pittman"

Na época da filmagem do Satori, enquanto diretor, eu acreditava que devia estar atento a todos os detalhes, todos os pormenores, não deixar nada ocorrer sem o meu consentimento. Após a experiência de ter visto alguns filmes do Cassavetes (logo após as filmagens do Satori, o nosso produtor Peraro apareceu com uma caixa de DVDs preciosa), e de ter rodado outros filmes (principalmente Booker Pittman), penso hoje que um diretor não deve exercer tanto o papel dessa figura centralizadora que controla tudo e a todos. Hoje me sinto mais seguro em relação à nossa equipe na Kinoarte e sinto que todos trabalhamos dentro de um mesmo pensamento, preservando as hierarquias, mas respeitando a visão que cada um pode ter do filme. É muito mais saudável estar aberto ao erro, àquilo que não é compreendido de forma imediata, e que talvez o desafie a buscar novas formas de apreensão do que avançar em um terreno já conhecido. Por isso acho que cada vez mais é difícil dirigir um filme: pois cada vez mais a relação consigo mesmo vai se tornando complexa, a relação com a equipe vai se aprofundando, e questões mais verdadeiras e mais desafiadoras surgem. No momento, por exemplo, estou montando o nosso último filme, Haruo Ohara, e me mantenho silenciosamente aterrorizado por não saber ainda o caminho que o filme vai seguir. Esse medo, no entanto, é vida – e o cinema é e sempre será algo vivo entre nós.

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Este post tem um comentário

  1. Author Image
    Fernanda

    Belo texto sobre o fazer cinematografico e o autoconhecimento do artista!

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