O cinema da Boca e as Pornochanchadas

Marcella Grecco*

Muitos dos que transitam hoje pela região dos bairros da Luz e Santa Cecília, na cidade de São Paulo, nem imaginam a importância que tal localização exerceu na herança cultural do cinema brasileiro. Local de prostituição e tráfico de drogas, fora anteriormente um cantinho de efervescência cultural e berço de um cinema popular que vinha para acalmar os ânimos de uma sociedade controlada por um governo militar.

Essa pequena área na região central de São Paulo tinha ligações com o cinema desde a década de 20, quando empresas distribuidoras se instalaram ali devido a proximidade da rodoviária e da estação ferroviária da Luz que facilitava o transporte dos filmes para o interior e outras capitais. Com o passar dos anos diversas produtoras também se instalaram lá, usufruindo da facilidade de transporte e do grande número de aluguéis baratos. No fim da década de 50 já havia todo um comércio voltado para o cinema na região, existiam diversas “lojas de equipamento de filmagem, oficinas de manutenção e empresas de aluguel de câmeras e refletores.” (BARCINSKI; FINOTTI, 1998, p. 159).

Estação da Luz na cidade de São Paulo

O cinema da Boca do Lixo desenvolveu-se principalmente num período entre 1972 a 1982. Já a partir da década de 60 a região começou a se destacar na produção de filmes devido ao apoio recebido pelo governo militar, através de medidas implantadas pelo Instituto Nacional de Cinema (INC), criado em 1966.

O apoio do governo viria não somente com a criação de empresas como a Embrafilme em 1969, que sucedeu o INC, ou órgãos como o CONCINE estabelecido em 1973, mas também com a criação de leis com o intuito de estimular e proteger a produção nacional, como a lei de obrigatoriedade de exibição de filmes brasileiros nos circuitos.

Segundo RAMOS (1987), a explosão do cinema brasileiro viria com a instituição em 1968 dessa lei de obrigatoriedade de exibição de filmes nacionais, pois, com o país protegido da invasão de filmes estrangeiros havia uma reserva de mercado para ser preenchida e, assim, deu-se início a um verdadeiro sistema de substituição de importações, sendo produzido maciçamente similares nacionais aos filmes estrangeiros.

Começou então uma produção em escala industrial de filmes para ocupar esse espaço reservado ao cinema nacional no mercado exibidor. Ao lado das grandes produções da Embrafilme eram também realizados filmes com uma pequena quantidade de capital privado na região da Boca do Lixo.

O epicentro da produção da Boca era um bar localizado na Rua do Triunfo chamado Soberano. Era lá que todos os profissionais, jornalistas e amantes de cinema se encontravam para discutir os mais recentes lançamentos e combinar futuras produções. Os filmes da Boca caracterizavam-se principalmente por tentar estabelecer um diálogo com o grande público, distanciando-se daquele cinema propenso a intelectual dos cinemanovistas, que criticava a realidade social brasileira permanecendo, entretanto, como um cinema para a elite e não para as massas.

Em busca deste diálogo a produção da Boca tornou-se muito heterogênea. Devido à influencia do Cinema Marginal apresentava em sua maioria filmes que exploravam aspectos violentos e agressivos, apontando pontos fracos de nossa sociedade freqüentemente sustentando-se em elementos como o deboche e a ironia.

O cinema da Boca era uma versão menos “fina” do Cinema Marginal, feito do povo para o povo, apropriava-se de tudo descrito acima e ainda acrescentava elementos típicos de um gênero que viria a ser conhecido como pornochanchada: humor e erotismo.

Segundo ABREU (2006), os profissionais da Boca eram majoritariamente “formados pela vida” com uma cultura cinematográfica baseada em filmes B e muito dispostos a ocupar a demanda criada pela reserva de mercado através das leis do governo militar. Entretanto, havia também alguns cineastas de classe média que foram incorporados ao grupo e contribuíram com filmes mais elaborados estética e tematicamente. Visivelmente marcados com um olhar autoral, podemos destacar Walter Hugo Khouri, Rogério Sganzerla, Carlos Reichenbach e Guilherme de Almeida Prado.

Apesar de certa persistência na realização de um cinema mais autoral, pode-se dizer que na Boca do Lixo havia uma indústria que priorizava os produtores e não os diretores. Os produtores por sua vez eram subordinados aos interesses dos distribuidores e exibidores que apoiavam a produção daquilo que o povo queria ver. Assim muitos filmes eram feitos sob encomenda e o diretor era um mero executor de tarefa.

Baixo orçamento, pouco tempo disponível e um filme encomendado, era assim que funcionava a Boca do Lixo. E o que o povo queria ver? Os similares dos produtos estrangeiros que já não podiam mais entrar no país. A isso, adicionou-se um toque final de erotismo e começou assim a linha de montagem das pornochanchadas.

2. As pornochanchadas

Década de 70, auge da ditadura militar. Um período próspero para o país aos olhos daqueles que ignoravam as torturas e proibições. Época de milagre econômico, nacionalismo exacerbado e apoio à cultura. Eram os grandes cinemas de rua que traziam o entretenimento, ao alcance do povo, eles estavam localizados nos centros urbanos e espelhavam o retrato social do momento com filmes influenciados pela onda da “revolução sexual” e da liberdade feminina.

Desde os anos 60 alguns filmes brasileiros apresentavam, ainda que de forma sutil, uma inclinação ao erótico com filmes como o de Roberto Farias, Toda donzela tem um pai que é uma fera, de 1966 e Os Paqueras, de 1969, de Reginaldo Faria.

Premeditando o sucesso que aconteceria com a introdução definitiva de temas mais maliciosos, a sutil comédia erótica passou a ser chamada de pornochanchada, nomeação que viria a ser notavelmente abrangente, e dá-se início a uma produção incessante de filmes com baixo orçamento e muito apelo ao erótico.

O nome pornochanchada remete a um estilo bem comum no cinema brasileiro, mistura de comédia com toques de picardia, chamado de chanchada, que fez muito sucesso principalmente durante as décadas de 40 e 50 com os temas carnavalescos da Atlântida. Nota-se, portanto, que inicialmente pornochanchada tinha uma relação com comédia, mas, com a ampliação da produção da Boca, passaram a ser produzidos filmes de todos os gêneros com apelo erótico que eram indiscriminadamente identificados também como pornochanchadas. Assim o termo passava de comédia erótica a praticamente qualquer filme de baixo orçamento voltado para segmentos populares do público.

As pornochanchadas atraíam um alvo incomum: pequenos comerciantes, donos de bar, de restaurantes, pessoas humildes que, ao assisti-las, identificavam-se com as situações e com os personagens, pois, cineastas e público faziam parte de uma mesma realidade social, o que garantia um diálogo eficiente principalmente entre o público masculino.

Realidade social que vinha fantasiada de situações mirabolantes com as pornochanchadas agindo, segundo ABREU (2006), como uma “vampira de gêneros“, apropriando-se de tudo que lhe servisse nos diversos tipos de filmes. Os principais alvos eram os grandes sucessos do momento produzidos nos EUA e grande parte de produções ligadas ao cinema B, principalmente do cinema italiano que se fazia muito presente no Brasil da época.

Porém, ainda que seja muito característico das pornochanchadas a paródia de filmes estrangeiros, elas conseguiam manter um aspecto nacional apresentando um Brasil tipificado, forjando clichês retirados do cotidiano das classes trabalhadoras e inspirando-se nas chanchadas da Atlântida e no Teatro Revista. Com o passar do tempo e com a consolidação da produção da Boca vimos o surgimento de certas divisões no cinema da área:

Em termos estéticos, os resultados da produção da Boca do Cinema são muito díspares. Aparentemente, boa parte dos filmes carece de qualidade, mas diretores como Osvaldo de Oliveira, Jean Garrett, Ody Fraga e Cláudio Cunha ainda esperam por uma avaliação crítica menos marcada pelo moralismo e pelo elitismo cultural. (AUTRAN, Webgrafia).

O nível de erotismo e o tratamento dado a ele variava muito de diretor para diretor. Alguns filmes traziam em seus títulos muito mais insinuação erótica do que tinham a oferecer e hoje mesmo podemos observar como a maioria deles, apesar de eróticos, eram bem conservadores e inocentes. Conservadores no enredo, pois, apesar dos dilemas polêmicos predominava no fim a ordem e os bons costumes e, inocentes, quando relacionamos o que eles ofereciam nos títulos apelativos e o que era mostrado nos cinemas.

Muitos se esforçavam para buscar um aspecto menos vulgar em seus filmes como Mulher, mulher (1979) filme de Jean Garret escrito em parceria com Ody Fraga. Este, aliás, era considerado o intelectual da Boca do Lixo e foi um dos profissionais mais requisitados e atuantes no cinema paulista. Dirigiu muitos filmes e escrevia roteiros da noite para o dia, alguns sob encomenda, com mero valor comercial, e outros que rendiam filmes de muito bom gosto no contexto da Boca, como A dama da Zona (1979). Filme que se destaca pela fotografia e pelo trabalho de câmera de Carlos Reichenbach, assim como pela produção de Cláudio Cunha, que selecionou para os papéis principais atrizes como Marlene Silva e Marlene França, bastante conhecidas pelo público devido a seus trabalhos na televisão.

Cena do filme A Dama da Zona (1979) de Ody Fraga

Ao contrário do que se pensa, a produção da Boca do Lixo não se baseava apenas em pornochanchadas. Estas merecem maior destaque pelo imenso contingente de filmes produzidos no período, mas havia também um grande número de filmes de drama, policiais e até mesmo de horror, como os de José Mojica Marins, que eram produzidos na região contando com a infra-estrutura disponível para o baixo orçamento.

Com a aplicação de uma fórmula indicada por ABREU (2006) que somava produção de baixo custo a um título apelativo e a muito erotismo, vimos o surgimento de um cinema popular brasileiro que levava o público masculino a freqüentar assiduamente as grandes salas dos centros urbanos e as mulheres a sonhar em ser a nova musa da pornochanchada, assim como Helena Ramos.

Alguns chegaram a apontar as pornochanchadas como politicamente de direita e ligadas ao regime militar por não apresentarem nenhum caráter contestador e por servirem, aparentemente, para distrair o público dos problemas sociais e políticos da época.

Outros afirmam que elas serviam meramente como forma de espairecimento para uma classe popular desiludida com as promessas do milagre econômico que atingira apenas a classe média. Algo que talvez pudesse confirmar isto é o fato de elas terem sido produzidas por pessoas provenientes dessa mesma classe popular e que não estavam interessadas em discutir nada, apenas se divertir.

Fenômenos de bilheteria no Brasil, as pornochanchadas foram um enorme sucesso no período, entretanto, a crise econômica que viria a atingir o país nos anos 80 afetou também toda a produção cinematográfica e, juntamente com outros fatores, observamos a falência da Boca que conseguiu levar as camadas populares ao cinema de uma maneira que, até então, não vimos nunca mais.

3. A falência da Boca

A crise econômica dos anos 80 afetaria o país em todos os sentidos e a indústria cinematográfica, que vinha ganhando força com o decorrer do regime militar, viu-se em uma complicada situação financeira.  Faltava dinheiro não só para produzir filmes como também às pessoas que queriam ir ao cinema assistir a esses filmes.

Neste período o cinema da Boca já se encontrava em agonia, o que viria a piorar cada vez mais devido à situação da Embrafilme, que perdia força política e acabou abrindo brechas na lei de obrigatoriedade de exibição de filmes nacionais.  As grandes distribuidoras estrangeiras, atentas ao que estava acontecendo no país, começaram a pressionar os exibidores a desrespeitar a lei de obrigatoriedade e muitas salas simplesmente pararam de passar filmes brasileiros.

Juntamente com essa situação de crise no país observamos o esgotamento da fórmula: produção de baixo custo, título apelativo e erotismo. Não somente pela enorme quantidade de filmes que já haviam sido produzidos seguindo tal temática como, também, por eles insinuarem algo nos títulos que não condizia com o que era visto nos cinemas, levando a um esgotamento no público.

Com o afrouxamento da censura os filmes passaram a apresentar o erotismo de forma cada vez mais intensa indo em direção daquilo que representaria o cinema da Boca nos anos seguintes, a pornografia.

A invasão dos filmes estrangeiros mudou o mercado cinematográfico do país que se viu na situação de ter que concorrer com grandes líderes do mercado. Assim, os filmes pornográficos vindos de fora atraíram o público masculino, antes fiéis às pornochanchadas e a Boca do Lixo, tentando se adaptar a tal situação, passou a produzir maciçamente filmes pornográficos brasileiros, que entretanto, não atraíam tanto o público como o produto estrangeiro.

A onda do sexo explícito viria a estigmatizar as salas de cinema nos centros urbanos, que já estavam diminuindo consideravelmente devido à crise econômica, transformando-se em templos evangélicos, cassinos ou estacionamentos, por exemplo. Somado a isso, o aparecimento do vídeo-cassete e mais recentemente do DVD, fizeram com que as pessoas começassem a procurar formas de diversão em suas próprias casas, esvaziando as salas de cinema.

A situação do cinema brasileiro piorou ainda mais com a chegada da Era Collor, na qual vimos a extinção da Embrafilme, do Concine e de leis de incentivo à produção.

Somente a partir de 1995 o cinema brasileiro parece começar a se recuperar e movimentar-se num sentido de retomada, com novos mecanismos de apoio à produção, instituídos pelo governo do presidente Fernando Henrique Cardoso. Entretanto, ainda hoje existem muitas dificuldades, como encontrar salas para exibição dos filmes nacionais e espaço para divulgação na mídia.

Fica a dúvida se esse cinema irá conseguir atrair novamente as camadas mais populares apesar do alto custo dos ingressos e de temáticas que, mesmo retratando socialmente o país, parecem não dialogar de forma eficaz com a grande massa, sendo majoritária ainda a presença das classes mais abastadas nos cinemas.

* Marcella Grecco é graduada em Comunicação Social – hab. em Midialogia pela UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas)

4. Referências Bibliográficas

ABREU, Nuno César de. Boca do lixo: cinema e classes populares. Campinas: UNICAMP, 2006.

AUTRAN, Arthur. A Boca: centro do cinema voltado para o público popular. Dossiê Galante. Portal Heco. Disponível em: < http://www.heco.com.br/galante/ensaios/02_02.php>. Acesso em: 01 jun. 2009.

FINOTTI, Ivan; BARCINSKI, André. Maldito: a vida e o cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão. São Paulo: Editora 34, 1998.

RAMOS, Fernão. Cinema Marginal (1968/1973) – A representação em seu limite. São Paulo: Brasiliense / Embrafilme, 1987.

RAMOS, Fernão (org.). História do cinema brasileiro. São Paulo: Art Editora, 1987.

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Este post tem um comentário

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    Neste meu comentario, nao vou me aprofundar no tema, apenas faco uma visao saudosa dos tempos das comedias eroticas, que eram divertidas, mesmo que de gosto discutivel. Felizmente temos a memoria cinematografica nacional garantida pelos poucos canais que ainda se dedicam a exibir essas ‘perolas’, e mesmo atraves da internet, com os inumeros sites de partilha. Tudo pelo bem de uma boa diversao.

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