O Contraste entre o Formalismo de Eisenstein e o Realismo de Bazin

Ao compararmos a teoria realista de André Bazin com a teoria formalista de Sergei Eisenstein percebemos uma contraposição entre um cinema mimético e um intervencionista, além da diferença essencial sobre o papel da montagem. Essa dicotomia entre formalistas e realistas remonta as diferenças entre Méliès e os Lumière ou a diegese (discurso) versus a mimese (imitação) que resultam, enfim, de um lado, na narração/representação (opacidade) e, de outro, na reprodução (transparência). Assim, para Eisenstein, representante dos formalistas, a montagem determina a organização do material filmado de modo a construir o objeto do filme e tem papel fundamental na construção dialética do pensamento, através das imagens em conflito (choque) entre os planos. Enquanto que, Bazin, representante dos realistas, estrutura sua teoria no respeito fotográfico da unidade espacial do acontecimento para ressaltar o realismo dentro de uma sequência, de acordo, principalmente, com uma dimensão ontológica e estética, como uma forma de mostrar que prescinde da montagem. É preciso, portanto, compreender as teorias desses autores para fundamentar essa distinção.

Ao analisar a obra de Eisenstein, e as considerações teóricas sobre a sua cinematografia e seus escritos, fica evidente que a arte e, especificamente, o cinema, é um instrumento de transformação social, de reconstrução do modo de vida e de tomada de consciência do povo (Xavier, 1994). Assim, o artífice desse processo é o “artista-engenheiro”, arquiteto e construtor do objeto de uma sociedade imersa numa nova realidade pós-revolução. Eisenstein constitui a montagem como objeto central da construção de um cinema revolucionário (o que tem outras implicações para Bazin e sua conceitualização histórica), através da articulação da significação entre os planos, com o propósito de compreender e alavancar a função social do filme através do seu potencial artístico. François Albera e Leandro Saraiva delineiam, em íntima relação com algumas vanguardas artísticas do começo do século XX, como o construtivismo de Eisenstein se apropria de alguns signos, como os elementos geométricos e a máquina, para a “fabricação” de uma arte “utilitária”, para, em vez de decorar, organizar a vida. Quando ainda estava pensando teatro, combateu os espetáculos burgueses em favor do excêntrismo (“frenesi audiovisual”). Em seu manifesto sobre a montagem de atrações contrapõe Stanislavski a favor de Meyerhold, seu professor. O primeiro representa um teatro figurativo-narrativo (estático e de costumes) com identificação psicológica e continuidade de enredo. Já o segundo representa o teatro de “agit-trações” (dinâmico e excêntrico), baseado em estímulos sensoriais e emocionais. Para Eisenstein, a montagem indica o caráter inorgânico e construtivista dessa concepção de teatro; seu aspecto agressivo submete o espectador a uma ação sensorial ou psicológica calculada e verificada experimentalmente; tem por objetivo produzir choques emocionais que determinem um conjunto de possibilidades para a percepção dos aspectos ideológicos do espetáculo.

Em seu primeiro filme, A greve (1924), estudo privilegiado da autoconsciência proletária, Eisenstein, influenciado por esse teatro, busca mobilizar ou impactar o espectador seja no conteúdo narrativo, seja na forma plástica e rítmica do filme. Sem dramas pessoais que provoquem a identificação psicológica do espectador, o proletariado é alçado à personagem principal do filme. São contrapostos patrões aos operários na representação, na interpretação e no espaço. Os primeiros são caricaturais (estereotipados), interpretados de maneira exagerada em ambientes burocráticos enquanto os segundos sempre em conjunto são interpretados de modo naturalista em ambientes simples; o caráter ideológico é sublinhado e exaltado. O filme é dividido em blocos, nos quais os elementos de repetição ao longo da narrativa é que ordenam a montagem, catalisando transformações que servem de vínculo narrativo e de significação. Por exemplo, a palavra “Ho” (mas em russo) tem o “o” transformado em roda de engrenagem da fábrica e a água também é utilizada como elemento de mudança, ela passa da poça para um ambiente plástico passível de transformação (grevistas em reunião) para se tornar uma arma na mão dos revoltosos e, depois, da repressão ao final do filme. Ela é metáfora do tratamento dado à massa do proletariado, de sua dispersão disforme até a composição ordenada de um vetor de ação.

A imagem converge com as palavras e os objetos mecânicos (fabricados) relacionando-se, assim, com os trabalhos gráficos de artistas como Rodchenko e Lissitzki. A montagem metafórica está presente, principalmente, na associação entre o massacre final dos operários e as imagens do sacrifício de um touro, ela apresenta o choque e a descontinuidade. Esses procedimentos buscam produzir um efeito conceitual, uma “associação concordante”, segundo Eisenstein, objetivando a intensificação emocional da cena. A sobreposição das atrações e a orquestração de uma montagem rítmica têm a intenção de reproduzir as tensões dos movimentos sociais. Através de um atordoamento cria uma ruptura que evidencia a fratura narrativa e provoca uma leitura alegorizante do que é visto (Saraiva, 2006). Nesse período, criticado por Vertov, ao utilizar a ficcionalização e a encenação em seus filmes, Eisenstein contra-argumenta. Ele, ao se utilizar elementos teatrais e “excêntricos”, busca, antes de tudo, uma lógica construtiva e, por sua vez, critica os recursos formais de seu antagonista, artisticamente insuficientes. A montagem vertoviana, para Eisenstein, é realizada segundo o princípio de não composição com sua justaposição provocando uma excitação desordenada dos sentidos, sem calcular os efeitos produzidos no espectador, capta apenas a dinâmica externa dos eventos e não as articulações dialéticas da realidade social. Eisenstein propõe a substituição do cine-olho, método de “decodificação” do mundo pela montagem (contemplativo, esteticista e estático), por um cine-punho no qual se constroem variantes rítmicas guiadas por uma orientação ideológica de fundo (idem).

Em O encouraçado Potemkin (1925) Eisenstein se concentra em um episódio específico, a história dos marinheiros amotinados, filmada com excepcional organicidade. Do conflito pontual por causa da carne estragada passa-se ao motim, do motim se desenvolve o levante da cidade e, dele, culmina o movimento revolucionário contra a frota czarista. Cada parte está dividida simetricamente com elementos que pontuam e sintetizam os movimentos do filme, buscando formas capazes de exprimir o fluxo de energia que move as massas. O cerimonial fúnebre para o herói morto no Potemkin começa a partir do deslocamento dos barcos levando o corpo, desfaz-se a névoa, a vela é acessa, algumas pessoas prestam sua homenagem e em seguida um aglomerado irrompe preenchendo a escadaria de Odessa. A energia represada do povo, que marcha sobre a cidade, explode em gritos e punhos levantados. Em represália, a guarda massacra o povo. O tempo é dilatado, cada lance é distorcido e os planos são multiplicados. Nesse momento do filme, uma mãe leva nos braços o filho morto em direção aos soldados de armas em punho. Em planos sucessivos, a tensão crescente é criada pelo conflito de planos, pela desestabilização espaço-temporal e pelo ritmo urgente da fuga do povo escadaria a baixo. Ao final da cena, a mulher é morta com um tiro no olho, a violência suspensa propõe a transcendência e o êxtase. Essa sequência, junto com a das imagens dos leões (dormindo, acordando e em alerta) no fim do filme, denotam o acordar do povo para os conflitos sociais e para a revolução.

No ensaio a “Dramaturgia da Forma do filme”, Eisenstein define a forma como uma filosofia dialética cujo ponto fundamental é questão do “conflito”, e se coloca contra a simples justaposição de segmentos singulares ou de intervalos ritmados. Para ele, duas imobilidades seguidas engendram um conceito de mobilidade, porém, mecanicamente. Isto é, cada elemento não está ao lado, mas por cima do outro. Ele define que o movimento nasce no processo de superposição da impressão conservada da primeira imagem, ou seja, não é mais a justaposição, mas a superposição de imagens – o conflito entre elas – que cria a sensação de movimento e este movimento gera um novo conceito. Por fim, constrói a ideia da prática significante no cinema como tripla dinamização: do emocional, do material e do intelectual.

Por sua vez, Bazin, ao falar das artes plásticas, retoma a discussão sobre a ontologia da imagem fotográfica para falar da realidade e da semelhança. Ele parte da necessidade humana de se defender contra o tempo salvando sua aparência e chega ao ponto em que a fotografia e o cinema, por sua essência, ocupam o lugar da pintura quanto à obsessão pelo realismo. Fator determinante é a objetividade da fotografia, que segundo esse autor, produz uma imagem sem a intervenção criadora do homem, a não ser minimamente na escolha, que se beneficia fortemente da “transferência de realidade da coisa para a sua reprodução” (Bazin, 1991, p.22). Assim, a reprodução mecânica dará maior credibilidade ao cinema considerando as possibilidades de representação realistas do mundo.

A conceituação teórica anterior a Bazin surge na descoberta do valor do real, no período após a 2ª Guerra na Europa, prezando por revogar a mediação aparente entre arte e vida. O cinema, por sua vez, se tornará o objeto de captura do tempo transcorrido, nas palavras de Bazin, “a imagem das coisas é também a imagem da duração delas” (idem, p.24). A produção de uma imagem automaticamente irá produzir uma ligação ontológica e impessoal com o objeto cinematográfico, isso resultará na visão do cinema como representação total e completa da realidade. No sentido de que, além dos elementos básicos como o suporte flexível, da emulsão sensível e da base transparente (ou da instantaneidade), os primeiros homens engenhosos que se arriscaram pela constituição do cinema pensaram em sua totalidade para a representação do mundo, com som, cor e relevo, ou seja, na representação mais realista possível. O cinema sonoro e, depois, a cores permitiu que o mito do cinema total continuasse em voga no pensamento de Bazin, postulando, inclusive, o progresso do realismo cinematográfico com novas perspectivas sobre a história e a estética do cinema em relação ao avanço tecnológico e a busca por maior autenticidade.

Nesse sentido, Bazin se contrapõe ao naturalismo, pois este se distância da aparência do real, ele delimita sua teoria segundo a lógica da essência do real ou do realismo da essência, que se apresenta para além da simples representação, buscando a verdade mesma da ação. Por isso, sua preferência pelos planos-sequência como forma de reconstituição da ação. Quanto à montagem, Bazin distingue as cenas “reais” das cenas sugeridas pela montagem dentro da irrealidade do espetáculo cinematográfico. Diferentemente de Eisenstein, Bazin percebe a montagem como um elemento que depõe contra a realidade do filme na medida em que impossibilita a visão completa de uma cena de forma realista, ou seja, os cortes de vários planos de uma mesma cena podem ser montados arbitrariamente com pedaços os mais variáveis possíveis de objetos e espaços para compô-la, o que diminui a sensação de realidade do todo. Bazin defende, então que essa não é a essência do cinema, pois o fragmento impossibilita a visualização do real na tela, para ele a especificidade do cinema está na representação que respeite a unidade do espaço fotográfico, ou seja, quando dois fatores são fundamentais para a cena simultaneamente, a montagem se torna proibida para garantir o seu realismo.

Então, para que a realidade cinematográfica proposta por esse autor ocorra é preciso que “os acontecimentos representados sejam parcialmente verdadeiros” (Bazin, 1991, p.59). Dessa forma, a credibilidade da obra está intrinsecamente relacionada ao seu valor como registro documental para que se torne uma verdade na imaginação, a autenticidade depende de acreditarmos na representação exposta na tela. Bazin só permite, então, a montagem dentro de limites que não atentem contra a fábula cinematográfica. Exemplo pertinente utilizado pelo autor, a cena em que Calitos, em O Circo, fica preso na jaula do leão, e é mostrado no mesmo plano que o animal, é fundamental para compreender a importância de evitar a montagem, o corte, para manter a continuidade espaço-temporal que determina o grande realismo da sequencia. Bazin destaca ainda o documentário Nannok, o esquimó (Robert Flaherty, 1922), onde também é necessária uma sequência sem cortes para uma visualização/sensação realista mais apurada. Assim, para ele trata-se de “ficções que só ganham sentido ou, em última instância, só tem valor pela realidade integrada ao imaginário. A decupagem é, portanto, comandada pelos aspectos dessa realidade” (Bazin, 1991, p.64).

Em sua análise da evolução da linguagem cinematográfica, Bazin passa pela montagem paralela de D. W. Griffith, pela montagem acelerada de Abel Gance e pela montagem de atrações de Eisenstein, distinguindo estes que acreditaram na imagem daqueles que, como ele, acreditam na realidade da cena, se pautando pelo uso do plano-sequência e da profundidade de campo para manter a integridade do espaço e do tempo do filme. Dessa forma, Bazin delimita que a montagem decifra o mundo empobrecendo os momentos, o realismo proposto tem haver com uma forma de mostrar que, diferente de Eisenstein, que prefere o conflito entre os planos, deseja não tanto a mimese quanto a representação autentica e honesta da mise-en-scene dentro do plano. Enquanto, o primeiro alude a imersão na realidade do filme através da transparência e da unidade do que está sendo reproduzido, o segundo propõe a quebra da narrativa através da montagem em virtude da reflexão sobre que está sendo representado.

Bibliografia

ALBERA, François. Eisenstein e o construtivismo russo. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.

BAZIN, Andre. O cinema: ensaios. Eloisa de Araujo Ribeiro (Trad.). Sao Paulo: Brasiliense, 1991.

EISENSTEIN, Sergei. A Forma do Filme. Rio de Janeiro, Ed. Jorge Zahar, 1990.

SARAIVA, Leandro. Montagem Soviética. In: MASCARELLO, Fernando (org) – História do cinema mundial. Campinas, Papirus, 2006.

STAM, Robert. A fenomenologia do realismo. In: STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Fernando Mascarello (Trad.). Campinas: Papirus, 2003

XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: A opacidade e a transparência. São Paulo: Paz e Terra, 2008.

______________ A construção do pensamento por imagens. In: NOVAES, Adauto (Org.). Artepensamento.  São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

Filmografia

A greve (Sergei Eisenstein, 1924)

O encouraçado Potemkin (Sergei Eisenstein, 1927)

O circo (Charles Chaplin, 1928)

Marcelo Félix Moraes é graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e graduando em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

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Este post tem 2 comentários

  1. Author Image
    Federico

    não entendo nada, então qual é a diferença entre eles, se você dizer que todos os semelhanças

  2. Author Image
    Federico

    não entendo nada, então qual é a diferença entre eles, se você dizer que todos os semelhanças

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