O deslumbre tecnológico de produção no cinema brasileiro dos anos 1950/1960

Que a palavra deslumbre possui um significado muito grande e pouco palpável, não se duvida. Mas que através dela se torna possível analisar toda uma mentalidade que perpassa um certo tipo de pensar, de uma certa visão de mundo, cremos que possível.

Este texto pretende não esmiuçar, mas sim apontar dados que nos permite lançar mais luz à compreensão de o porquê do cinema brasileiro não se conseguir se firmar como uma atividade industrial, nem como algo que tem respaldo e orgulho entre sua população na atualidade. Motivos para este suposto fracasso se encontram entre os diversos historiadores; aqui se pretende olhar a questão de um outro ponto de vista, ligado ao dia-a-dia do fazer cinema.

Os anos 1950/1960 são anos de profundas transformações tanto no modo de se fazer os filmes, nas liberdades quanto à linguagem assim como nas inovações tecnológicas. No cinema brasileiro, correspondem estes anos ao surgimento e fracasso das tentativas industriais baseadas em grandes estúdios, como a Vera Cruz, Maristela e Atlântida (esta com certo sucesso, o que faltou foi continuidade), e a resposta com o chamado cinema independente, representado mais facilmente pelo chamado Cinema Novo.

Em todas estas manifestações há o que se pode chamar do deslumbre tecnológico de produção. Vamos primeiro entender um pouco o contexto para depois proceder à análise.

No cinema mundial, os anos 1950/1960 são marcados pelo despontamento do cinema europeu como um cinema de qualidade, de referência cultural, um cinema menos preso às rígidas regras como o era o filme clássico norte-americano. Além da temática e drama em si, o que representava uma grande atração pelo cinema europeu era uma certa liberdade formal, e a presença cada vez mais constante dos filmes realizados em locação. Se por um lado agregava naturalismo aos tipos de dramas que os filmes narravam, por outro, filmar em cenários naturais permitia a que cinematografias mais pobres tivessem o insight de que uma forma mais barata de cinema era possível.

Para permitir esta liberdade de escolha, um fator fundamental foi que nestes anos o aparecimento de novos equipamentos facilitou esta tomada de posição. Não podemos esquecer que uma câmera Mitchell, a câmera clássica do cinema de Hollywood, em seu modelo BNC podia facilmente pesar cerca de 65 kg, o que, convenhamos, é um grande incômodo quando em ambientes reais, seja para transportar, seja pelo tamanho que ocupava. A difusão das câmeras da Arriflex e Éclair, com os modelos Arri II (e suas variantes) e Cameflex permitiu o uso destas câmeras de modo diferenciado, como o uso de câmera na mão e uma facilidade maior para se filmar nas locações. Na década de 1960 aparecem as câmeras de 16 mm leves, autoblimpadas e com motor cristal, que grande impacto teve sobre os documentaristas.

Na parte do som, nesta época aparecem os primeiros gravadores portáteis para cinema, como o Nagras, mais uma vez tornando a filmagem em locação facilitada. Também é a época onde surgem os formatos de tela larga 1:1,85 (EUA) / 1:1,66 (Europa) e o Cinemascope, numa reação à introdução da televisão colorida nos EUA.  Contra uma ASA máxima de 160 (em preto e branco) nos anos trinta, salta-se para uma ASA de 400 na filmagem de Acossado (À bout de souffle, 1960), de Jean-Luc Godard, e a maior difusão do colorido através do processo Eastmancolor, que era muito mais barato que o Technicolor.

Jean-Luc Godard
Jean-Luc Godard

Nesta época surge na França a Nouvelle Vague, um cinema feito com poucos recursos e muita liberdade formal. Para tal, utilizam-se extensivamente as locações, a câmera na mão ou no ombro do operador e este numa cadeira de rodas (imitando um travelling, lógico que sem a mesma estabilidade, mas que era rápido e barato). Para se iluminar, recorre-se ao uso de photofloods direcionadas ao teto, o que acaba por se diferenciar da luz mais recortada que era feita nos estúdios à época. Por outro lado, este tipo de iluminação soa mais natural, mais “realista”, e vai exercer muita influência na fotografia de cinema moderna.

Gostaria de salientar que estas mudanças tecnológicas e de produção não podem ser vistas com um marco, como algo que começa a ser copiado por todos após aparecer. O mais próximo da verdade é tentarmos entender que, na busca por se realizar filmes, os cineastas desprovidos de capital começam por contornar os custos através destas soluções. Por tentativas e erros, acertos e desacertos, vemos nesta época filmes com aspectos “modernos” convivendo com os filmes de caráter mais conservador. No Brasil, poderíamos exemplificar dando como referências São Paulo S/A (Luís Sérgio Person,1964) e O Pagador de Promessas (Anselmo Duarte, 1962), respectivamente. Sem juízos de valor, sendo um grande filme cada um à sua maneira.

No Brasil não podemos falar de tecnologia de equipamentos cinematográficos nacionais, pois o País nunca conseguiu produzir equipamentos de ponta. Isto pode ser uma das causas primeiras pelo o que chamamos de deslumbre pelos equipamentos. Sem querer cair em psicologismos reles, mas é algo fácil de observar, há no brasileiro certa associação entre os equipamentos novos e a modernidade. Seria algo como, inconscientemente, o sujeito se crê estar um pouco acima da média ao utilizá-los, ele se diferencia da “plebe ignara” que produz um cinema nacional tão medíocre aos seus olhos. De certa forma, estar utilizando um equipamento moderno, os mesmos equipamentos que as cinematografias consolidadas utilizam, ajuda-nos a se desvencilhar do peso de um cinema que não consegue se aceitar.

Para evitar incorrermos em mais generalizações, deixemos este tópico, já que se crê que a idéia está clara.

O que mais nos interessa em nossa análise do deslumbre é os aspectos da produção, nela contida o uso que se faz dos equipamentos. Nos anos 1950/1960 o Brasil caracteriza-se por dois pensamentos em relação ao que funcionaria como modo de produção. De um lado, um modo de produção baseado em estúdios, cujo grande representante do ponto de vista do deslumbre é a Vera Cruz. De outro, um modo de produção baseado na Nouvelle Vague e Neo-realismo italiano, um cinema de poucos recursos e de um modo de produção mais simplificado, “independente”, como as pessoas do Cinema Novo chamavam.

A Vera Cruz contrata, como uma parte de sua equipe de técnicos, estrangeiros para trabalhar em seus filmes. Há nisso o que chamamos de deslumbre. Sem querer fazer eco aos cineastas nacionalistas da época, nem negando o grande avanço que estes técnicos propiciaram ao cinema brasileiro, o que se caracteriza como deslumbre é a total falta de critério nas suas contratações. E deslumbre não é mais que isso, fazer uma ação por ouvir falar, repetir algo sem discutir. Explico: se por um lado o pessoal da parte técnica era de competência, por outro muitos deles eram principiantes na função que viriam a assumir, exceção feita a Chick Fowle, que já tinha ao menos quatro filmes como diretor de fotografia. Para topar vir ao Brasil, além dos bons salários, havia a possibilidade destes técnicos virem a assumir no Brasil as funções principais. Na Inglaterra, por exemplo, de onde grande parte destes técnicos era oriunda, a hierarquia era extremamente rígida, e esta era uma maneira de pular etapas na carreira. Operadores de câmera passariam a diretores de fotografia, e assim por diante. Apesar de ser um estímulo aos técnicos, há um inconveniente nisso para o estúdio, que é que estas pessoas acabem por sentir certa insegurança. Problema que poderia ser administrado, mas a gerência da produção (principalmente) e a direção dos filmes não eram de pessoas ligadas ao cinema. No melhor dos casos era um assistente de direção (Tom Payne). O caso do irmão do Franco Zampari na administração foi sempre citado como a de alguém que nada entendia do ofício. E a direção do primeiro filme, Caiçara (Adolfo Celi, 1950), foi feita por um diretor de teatro do TBC, Adolfo Celi. Ou seja, eram contratados bons técnicos, porém com certa inexperiência e inseguros em suas funções atuais, e, por outro lado, as pessoas que deveriam fazer com que a produção tivesse ritmo, ou seja, os produtores e diretores, não tinham conhecimento técnico suficiente. Esta combinação acabou por gerar filmagens muito demoradas, e talvez preciosismos desnecessários. Os técnicos acabaram por sobrepujar a produção. Anselmo Duarte conta que a cena do circo em Tico-Tico no Fubá (Adolfo Celi,1952) demorou cerca de um mês para ser filmada, e o que vemos no filme são apenas alguns minutos deste material imenso. Assim, a adequação entre equipe e produção só funcionava no papel. Desperdício desta monta numa cinematografia pobre é quase fatal. Claro, há exemplos no cinema mundial de fracassos e desorganização retumbantes, como o caso de Cleópatra (Cleopatra, Joseph L. Mankiewicz, 1963). Porém, esta contava com uma Fox por trás, enquanto a Vera Cruz ainda era um capital incipiente.  Isto por si não explica o motivo da falência da Vera Cruz, mas pode ser colocado entre a miríade de problemas que contribuíram para tal.

A compra de equipamentos joga mais luz à discussão. Os estrangeiros, sem ninguém para podá-los com argumentos técnicos e racionais, fazem uma lista de compras de equipamentos ideal. Ao invés de passar por discussão, a opção para economizar é comprar equipamentos diferentes e mais baratos, e que não cumpriam suas funções; quando não acabavam por deixar de comprar coisas baratíssimas, porém importantes, como tule. Sem aviso, sem discussão. Só para comparar, poderia a Vera Cruz ter optado pelas câmeras Arri, como fez a Itália no pós-guerra, mais barata e de fácil manejo, abdicando do som direto, porém com um tipo de produção mais leve?

Esta questão poderia ser respondida se a Vera Cruz tivesse claro que tipo de produção queria. Na mentalidade de seus dirigentes, bastava o filme ser bom. Mas que é um filme bom? Em termos de mercado, é melhor um filme bom ou um filme que se paga? Para esta última questão supomos que a Vera Cruz não tinha claramente definido seu intuito. Bastava um deslumbre: o filme bom, o que quer dizer bem feito do ponto de vista técnico, triunfaria.    . abdicndo do som direto de fado pelas ccompraas de equipametosazer o Ou seja, contratava-deles era

Se pegarmos o caso da Maristela, há um documento elucidativo. O filme produzido para sua divulgação, O cinema nacional em marcha (Mário Civelli, 1951), tem quase que exclusivamente por enfoque os equipamentos. Vemos geradores, quadros de luz, na palavra deles o maior parque de luz visto no País, o som, mas nada se fala da intenção de seus filmes, das suas estrelas nem de que tipo de filmes a Maristela queria produzir. Esquece-se da empresa, esquece-se dos filmes, esquece-se dos atores e se detém no capital, nos equipamentos que por milagre irão produzir, supõe uma mentalidade deslumbrada, os filmes, como que por mágica.

Recentemente houve um fato no cinema mundial que poucos perceberam. Enquanto Cidade de Deus (Fernando Meirelles, 2002) buscava o Oscar de filme estrangeiro pela via de uma produção grande para nossos padrões, com transfer do filme em sua totalidade (o que poucos filmes no cinema mundial faziam à época), quem acabou por ganhar o prêmio foi um filme gravado com um Nagra IV e uma câmera Arri BL2 com mais 25 anos, Um Homem Sem Passado (Mies Vailla Menneisyyttä, 2002), dirigido por Aki Kaurismäki. Para muitos de nós, estes dois equipamentos são coisas do passado, mas isto não impediu este fime de ganhar o prêmio no país da quintessência da tecnologia do cinema.

Um Homem Sem Passado, dirigido por Aki Kaurismäki
"Um Homem Sem Passado", dirigido por Aki Kaurismäki

A tentativa mais efetiva de industrialização do cinema brasileiro não conseguiu se desvencilhar dessa relação confusa com a tecnologia.

As tentativas que vão contra o modelo proposto por Vera Cruz e Maristela conseguem uma melhor relação custo-benefício com os equipamentos. Porém, em relação à produção há problemas, há um deslumbre por certas questões e mitos. Roberto Santos, por exemplo, fala da filmagem de um produtor independente, Maurício Morey, e que este conseguiu filmar no interior e em locação com uma Arriflex. Porém, ao falar da sua filmagem em O grande momento (Roberto Santos, 1958), diz que só usou a Arriflex na cena da bicicleta. Nas suas palavras:

“Mas o restante do filme foi feito com uma Newal – uma filhote da Mitchell, com rolo de 300 metros – e uma Debrie pesadona que tinha na Maristela. A Arriflex era uma câmera tão precária, do nosso ponto de vista, que não passava pela cabeça de ninguém filmar com uma Arriflex se houvesse a possibilidade de filmar com uma Mitchell, eu acho que as razões disso são evidentes: porque uma qualidade pior se se pode ter melhor qualidade?”

No mesmo depoimento, Roberto Santos declara que não filmou O Grande Momento em locação, pois os custos eram proibitivos, por conta, entre outros fatores, do transporte e da não possibilidade de uso do som direto. Não tirando o mérito do filme, mas será que se ele filmasse em locação, usando uma Arriflex, dublando o diálogo, como faziam os italianos, o filme seria melhor? Curiosamente, muitos acham a cena da bicicleta o que havia de melhor no filme. Poderia, se a opção fosse esta, haver cenas ainda melhores? São perguntas sem respostas, mas é inegável em seu discurso uma certa admiração pelas câmeras Mitchell, pelo simples fato das Arriflex serem muito simples. Não estaria correta a opção italiana de usar extensivamente as Arris nos anos 1950 como opção às outras câmeras, e ser isto o mais adequado a nós?

Modelos das câmeras Mitchell, Arriflex e Cameflex, respectivamente.
Câmeras Mitchell, Arriflex e Cameflex, respectivamente.

Conforme dito anteriormente, nos anos 1960, em sintonia com o que os cineastas jovens esperavam das câmeras, a Éclair lança em 1964, baseada no protótipo usado por Jean Rouche em Crônica de um Verão (Chronique d´um été, Jean Rouch e Edgar Morin,1960), a sua câmera NPR, que é o acrônimo de Noiseless Portable Reflex. Anos antes, Richard Leacock e Donn Alan Pennebaker adaptam um Auricon Cine Voice para conseguir o mesmo que a NPR conseguiu anos depois com mais leveza. Pois bem, filmar em 16mm e com som direto em documentário é uma busca tremenda nos anos 1960.  Contrariando isto, os cineastas do Cinema Novo optam por filmá-los em uma Arriflex. As desvantagens são algumas: o rolo de filme dura menos (são quatro minutos do 35mm ante onze do 16mm nos rolos de 120 metros), não é uma câmera para som direto (para este fim é necessário o blimp, que era mito pesado, pois de aço, inviabilizando a portabilidade da câmera), o custo de produção é maior. Ao contrário de Roberto Santos, que não optou pela Arri, a opção por ela aqui é também incorreta. Os cineastas mencionam que não faziam em 16mm os documentários, pois os laboratórios na época eram ruins. Será que este argumento subsiste? A televisão não usava extensivamente os filme 16mm, tanto para a exibição dos longas em sua grade como também para a kinescopia? A única resposta que convence é a impossibilidade de fazer o blow up (ampliação do 16mm para o 35mm) bem feito no Brasil, mas não a revelação. E mesmo para o blow up, não se poderia fazê-lo fora do país? Lembremos que vários destes cineastas eram filhos de pessoas importantes do governo, ou tinham estudado fora, como Joaquim Pedro, por exemplo, que chegou a estudar com documentaristas americanos. E não poderiam os técnicos desses filmes acompanhar o processo nos laboratórios brasileiros, tentando junto ao laboratório melhorar seus procedimentos, como fez Rex Endsleigh e Chick Fowley com a Rex filmes quando na Vera Cruz?

Para contornar o barulho que a Arriflex fazia sem o blimp (e utilizá-lo era abdicar de uma das grandes vantagens das Arri, seu leve peso) uma das soluções adotadas era filmar com lente teleobjetivas de até 300mm! Para se ter uma idéia, obter um primeiro plano com esta lente é necessário afastar a câmera a cerca de 10 metros do entrevistado, perdendo toda intimidade entre documentarista e depoente. Ademais, é necessário lembrar que teleobjetivas geram o efeito visual de separar o sujeito do fundo pelo desfoque e por diminuir o fundo em relação ao objeto principal, sendo por isto utilizada nos closes da linguagem clássica. Num contexto de filmes com gravação de documentário in loco, onde a ambientação é importante, seria esta uma boa solução? Ou seria uma solução de compromisso?

Acompanhem a seqüência de eventos. Não se usa o 16mm, pois os laboratórios são ruins. Para contornar isto, usa-se uma câmera não apropriada à proposta, e isto incorre que se tem de usar o blimp ou enquadrar com lentes não indicadas para este tipo de produção. Não parece uma relação com os equipamentos muito sagaz como a que, vamos ler abaixo, estabeleceram cineastas documentaristas norte-americanos na impossibilidade do equipamento ideal.

Porém, a relação ente deslumbre no tocante aos equipamentos no Cinema Novo é menor que nos casos anteriores. Arraial do Cabo (Paulo César Saraceni e Mário Carneiro, 1960), por exemplo, foi filmado com uma Cameflex, que apesar de barulhenta, era leve como as Arriflexes, e consideremos que na época de sua realização não havia disponível a Éclair NPR e cremos que no Brasil nem as Auricon. No caso da ficção a opção pelas Arriflex, como em Vidas Secas (Nélson Pereira dos Santos, 1963) e Porto das Caixas (Paulo César Saraceni, 1962), e pela Cameflex, em São Paulo S/A (Luís Sérgio Person,1964), foi acertadíssima. E o princípio deste movimento é feito de filmes totalmente executado de acordo com seu tipo de produção, com pouquíssimos recursos.

São Paulo S/A, dirigido por Luís Sérgio Person
"São Paulo S/A", dirigido por Luís Sérgio Person

De qualquer maneira, o que percebemos no período, com em outros também, é que as soluções adotadas são quase que automáticas. Por exemplo, Leacock e Pennebaker fizeram adaptações na câmera para que fosse possível a sua utilização de acordo com suas intenções. Conta-se também que carregavam colimadores consigo, para conferir a calibração das lentes, o que é de um apuro técnico de grande rigor. Raramente no Brasil se percebe esta sofisticação, esta intervenção nos equipamentos de acordo com o tipo de produção que se pretende. Claro, há escusas por sermos um país periférico onde também estas intervenções são contingenciadas, mas isto não explica tudo.

Uma questão que se considera polêmica é a questão da exposição em alguns filmes do Cinema Novo. Uma das justificativas para o fato dos filmes serem “estourados” (no jargão técnico “superexpostos”) seria que a luz do nordeste é assim, forte e diferenciada. Em relação à luz do sol de outros países, e dentro destes os de cinematografia mais fortes, o único fato relevante é que ela é mais azimutal, ou seja, tem um ângulo de incidência mais alto, devido à nossa baixa latitude. Ou seja, mais do que potente, ela é mais incisiva, a pino. Ainda que fosse mais potente, para o olho humano isto é indiferente, já que a pupila se adapta aos variados tipos de luz, ajustando o olho para a intensidade que há. Assim, por que seria a luz do nordeste “estourada”? A resposta dada por estes cineastas é arbitrária, é muito mais um discurso do que algo que define alguma realidade desta luz. Em relação ao Vidas Secas, diz Victor Breggman, responsável técnico do Laboratório Líder, onde o filme foi processado e copiado:

“Então, o verão ele queria quente, quente para ele era superexposto, ele estourou a luz, e o verão eu tive que copiar separado, não pude copiar com a mesma voltagem, não dava. Eu fiz supervoltagem no copiador. Quando eu copiava os filmes a 80-90 volt, eu tive que copiar o verão dele a 120.”

Imagine se do filme fossem tiradas inúmeras cópias. Se para cada cópia havia que fazer parte separada, por conta da supervoltagem, seria inviável. Assim, do ponto de vista do padrão de laboratório tais cenas estavam com exposição errada. Para um cinema barato, ter que pagar por cada cópia mais caro que o normal (pois com dificuldades fora do padrão) é complicado. Para corroborar ainda que a discussão sobre a luz do nordeste é mais discurso que realidade recorramos a Ricardo Aranovich. Este diz que Glauber Rocha reconheceu, depois de muitos anos, que seus filmes deveriam ter mais qualidade técnica. Pois Ricardo sempre defendeu que, pro Cinema Novo ter mais projeção internacional, deveria ter mais rigor técnico, mais padrão.

Talvez tal discurso esconda o fato de que boas partes desses cineastas eram inexperientes e talvez tivessem ido longe demais em seus experimentos. No caso específico de “Vidas Secas”, sabemos que Luiz Carlos Barreto, seu fotógrafo, era fotojornalista. Acontece que em foto estática a correção de erros de exposição é mais fácil, pois o processo é todo manual, com muitas variações de banho e de copiagem. Porém, num laboratório de cinema, por ser industrial, estas coisas são mais limitadas, ou necessitam de testes para se obter resultados. O que, evidentemente, não foi feito.

Se olharmos mapas de insolação (a medição da energia da radiação solar ao chegar à Terra) veremos que o nordeste brasileiro recebe menos energia do sol do que várias partes do mundo. Este sol “inclemente” ocorre em países de tradição cinematográfica mais forte, e nem por isso seus filmes optaram por uma luz estourada.

Tange ao discurso proferido pelos cineastas no começo do Cinema Novo, onde vêem o público quase como inimigo, e, ademais, quando imaginam um cinema de autor quase sem ter que prestar contas a ninguém, um deslumbre evidente. Imaginar que um diretor não seja obrigado a discutir suas opções com ninguém é algo quase sobrenatural, cinematografia nenhuma conta com este mimo. É o sonho do melhor dos mundos, ou seja, alguém entra com o dinheiro e os cineastas fazem o filme que querem. É esta mentalidade que vai moldar a Embrafilme enquanto produtora de filmes, e as leis subseqüentes de apoio estatal ao cinema. Quando Celso Amorim declara, enquanto presidente da Embrafilme, que Hong Kong não era um modelo de cinema a seguir, não faz voz a seus amigos de cinema onde foi assistente de direção? Enquanto o Brasil se afundou na produção na crise nos anos 90, Hong Kong se manteve e se fortaleceu como pólo produtor de filmes, gerando cineastas do porte de Wong Kar Wai e Johh Woo.

Uma coisa que mentalidades deslumbradas não percebem é que as soluções muitas vezes não são decididas por antecipação, por uma mente brilhante que enxerga o futuro e faz a aposta, e sim por uma série de tentativas, de erros e acertos. O cinema nigeriano, hoje considerado a terceira indústria de cinema do mundo, opta pela distribuição home video (antes em VHS e agora em DVD) desde seu início. Saem de menos que o cinema brasileiro em qualquer época, e agora é uma indústria de duzentos milhões de dólares por ano. Os sucessos industriais são relações de adequação do produto ao seu mercado, e às soluções encontradas pelas pessoas para tal surtir efeito.

Assim como da Hong Kong antiga, os filmes nigerianos não são os filmes que gostamos de ver como intelectuais, o que chamamos tradicionalmente de cinema. São filmes que seu público gosta de ver. E é esta visão que tanto as tentativas de um cinema de estúdio no Brasil como seus oponentes não conseguiram perceber. Concordavam sem se dar conta em suas discordâncias.

O que sobrou em deslumbre faltou em vislumbre.

Seria muito injusto se não fizéssemos uma reparação. Olhar os fatos com o distanciamento do tempo torna as coisas mais fáceis. Não se pretende com esta discussão uma “caça às bruxas”, ficar apontando defeitos, como se estas pessoas fossem um bando de ingênuos e pueris. Olhar de longe e de fora é tarefa cômoda. A Vera Cruz foi um dos empreendimentos empresariais mais corajosos que se teve na indústria brasileira, e teve um público imenso, o que não quer dizer que cobriu seus custos. O Cinema Novo trouxe um bom reconhecimento pro Brasil em festivais e intelectuais internacionais. Mas, se queremos aprender algo com o passado, se queremos estabelecer com ele uma relação crítica e sadia, devemos nos interrogar o porquê de certas escolhas. E quem sabe, na busca destas respostas, encontrarmos idéias pro presente. E, vale lembrar, por exemplo que durante estes anos, há o caso da Atlântida, que conseguia fazer filmes e obter lucro, mantendo uma relação saudável entre sua receita e seu modo de produção.
Adriano Barbuto é Diretor de Fotografia e professor do curso de Imagem e Som na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

Referências bibliográficas

AUTRAN, Arthur. O pensamento industrial cinematográfico brasileiro. Dissertação (Doutorado em Multimeios). 2004. Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas.

BANDELE, Biyi. Welcome to Nollywood. Disponível em: <http://film.guardian.co.uk/ features/ featurepages/0,,2141813,00.html>. Acesso em: 08 jul. 2008.

BERNARDET, Jean-Claude. Brasil em tempo de cinema. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

BORGES, Tide. A introdução do som direto no cinema documentário brasileiro na década de 1960. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Artes). 2008. Escola de Comunicações e Artes – ECA, Universidade de São Paulo, São Paulo.

CML. Lista de discussão. Disponível em: www.cinematography.net. Acesso em: 24 maio 2008.

EARTH OBSERVATORY. Disponível em: <http://earthobservatory. nasa.gov/Newsroom/NewImages/images.php3?img_id=4803>. Acesso em: 12 jul. 2008.

ESCOREL, Lauro. Entrevista com Ricardo Aronovich. Disponível em: <www.abcine.org.br>. Acesso em 08 jul. 2008.

GALVÃO, Maria Rita. Burguesia e cinema: O caso Vera Cruz. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981.

IMDB. Disponível em: <http://www.imdb.com/name/nm0288626/>. Acesso em: 08 jul. 2008.

SALT, Barry. Film style  & technology: history and analysis. London: Starword, 1992.

SCHETTINO, Paulo B. C. Diálogos sobre a tecnologia do cinema brasileiro. Cotia: Ateliê Editorial, 2007.

SCHNIDER, M. L. The Eclair story. American Cinematographer, Los Angeles, v. 56, n. 4, apr. 1975.

WIKIPEDIA. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/ Cinema_of_Nigeria >. Acesso em: 08 jul. 2008.

______. Disponível em: http://en.wikipedia.org/wiki/Insolation. Acesso em: 12 jul. 2008.

Author Image

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

More Posts

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

Este post tem 6 comentários

  1. Author Image

    Meu caro Barbuto,
    Escrevo para dizer que gostei muito de teu texto. Vem acrescentar detalhes técnicos e, principalmente, o deslumbramento que a tecnologia de ponta produz na cabeça de realizadores.Como professores de escolas de cinema, ambos que somos, temos a obrigação de fazer ver pelos nossos alunos que na maioria das vezes – e a história ensina, o bom resultado obtido depende da cabeça de quem faz em detrimento das condições.
    Como é dificil ensinar teoria, hoje. E, no entanto, cada vez mais creio que o mais importante é saber porque se faz, de um modo ou de outro. Esses saberes separam o amador – bom por amar – do profissional que detém a razão sobre seu objetivo.
    De novo, parabéns pelo teu texto.
    Um abraço
    Paulo Schettino

  2. Author Image
    Mauro Pinheiro Jr

    Me desculpe, mas eu entendi direito que o Sr considera a opção estética da fotografia de Vidas Secas um equívoco? De onde vem a propriedade para julgar decisões dos profissionais citados?

    Vamos considerar que por algum motivo eu ache que é importante usar negativo 50D para as noturnas de um longa. Se o produtor aceitar a lista de luz, o assistente de direção oferecer um plano de filmagem confortável e o diretor concordar que vale a pena o esforço, será que alguém, 40 anos depois, ao ler em algum lugar as especificações técnicas do filme vai ter o direito de julgar a minha decisão como errada?

    A impressão que dá é que se o Sr fosse escrever sobre Picasso, diria que foi um erro pintar Guernica com tal tamanho. Assim, o quadro acaba viajando menos devido à dificuldade de transporte e menos pessoas têm acesso à obra.

  3. Author Image
    Daniel Moreno

    Hum..inevitável fazer dois comentários a respeito do post anterior:

    1-A propriedade de citar, julgar, avaliar a decisão de “outros profissionais”, de Picasso ou quem quer que seja é assegurada pela Constituição. Não há coroporativismo ou patrulha ideológica que impeça o livre exercício da crítica e do pensamento (ao menos aqui, em Cuba, Coréia do Norte, é outra história…).

    2-Sobre a alusão a Guernica, a obra merece críticas bem mais importantes e que nada têm a ver com o “tamanho” do quadro. Sugiro a leitura da obra de Paul Johnson, “Tempos Modernos”, na página 281. Guernica é um exemplo histórico de arte a serviço da manipulação ideológica.

    Felizmente Johnson é um espírito livre, a patrulha na Inglaterra é menor que no Brasil, e ele pôde sentir-se livre para descer a lenha no “deus” Picasso. E por favor chega de fundamentalismos estéticos.

  4. Author Image
    Luciano Martins

    Parabéns ao Sr. Adriano Barbuto pelo artigo. No Brasil é muito raro encontrar textos técnicos sobre cinema com tanto rigor. Além disso, o Sr. Adriano Barbuto tem a coragem e a lucidez de abordar questões estéticas sob um viés pluralista quanto ao tema e associa a isso considerações em um polêmico, um tabu, aspecto dentro da produção cinematográfica nacional: as escolhas estéticas conjugadas às escolhas orçamentárias. Os filmes do Cinema Novo merecem uma abordagem mais desprovida de “deslumbre” por parte do pensamento brasileiro.

  5. Author Image
    Wilson Bonifácio

    Muito interessante seu artigo a respeito do “modus operandi” do cinema brasileiro do período dos 50 e 60. Inquestionável texto fundamentado em análise e pesquisa criteriosa, distante das paixões que sempre permeiam o debate do cinema brasileiro, principalmente dos anos 60. Sua pesquisa traz um novo olhar para o fracasso do cinema industrial paulista e principalmente sobre os mitos da genialidade inconteste do cinema novo. Mitos que ainda parecem tabus e não podem sofrer uma critica.

  6. Author Image
    Reinaldo da Silva Parreiras

    ideas de filme HERBIE NO BRASIL o herbie no RJ andando nos cabo do pão se açucar ele caindo de paraqueda em cima do CRISTO REDENTOR PASSANDO NOS PONTO TURISMO DO RJ ATE NAS FAVELAS FAZENDO AMIZADE COM AS CRIANÇAS PASSANDO POR CADA ESTADO E CADA TRADIÇÃO

Deixe uma resposta