Paisagem na neblina (Theo Angelopoulos, 1988)

Álvaro André Zeini Cruz*

Cartaz de "Paisagem na Neblina"

Dentre as inúmeras formas de trajetórias elencadas por Joseph Campbell, – antropólogo norte-americano especialista em mitologia, – e Christopher Vogler – roteirista que desenvolveu a partir da teoria de Campbell um método aplicável à indústria cinematográfica, – a realizada pelos irmãos Voula (Tania Palaiologou) e Alexander (Michalis Zeke) em “Paisagem na neblina”, é, não só, uma jornada consciente – afinal, partiram sabendo das possíveis adversidades enfrentadas durante a viagem, – como também mitológica, pois baseia-se na busca paterna, tema que, como Campbell pontua, vem desde a procura mitológica de Telêmaco pelo pai Ulisses, em “Odisseia”, obra que Bordwell destaca como constante referência na cinematografia de Angelopoulos.

Esta procura, porém, se desenvolverá de maneira distinta para cada um dos personagens de “Paisagem na Neblina”. No cinema clássico – e entende-se por clássico um cinema que dialoga através da identificação direta com a esfera sentimental do espectador, através da trama baseada em causa e efeito e da opção pelo conceito de transparência, discutido por Ismail Xavier, – a chamada “jornada do herói” concebida por Vogler, baseada em “O herói de mil faces”, de Joseph Campbell, é caminho recorrente. Nele, o protagonista (o herói) aponta para o que denominamos um defeito (seu caráter inicial), uma tendência a permanecer no mundo comum, que é rompida pelo incidente incitante, acontecimento que desencadeia o percorrer do caminho e suas transformações, que no final, farão com que o protagonista aceite a mudança em direção oposta. Esta ideia deve ficar mais clara no diagrama abaixo.

Muito embora a filmografia de Angelopoulos se insira na seara do chamado cinema moderno, – que confronta o ilusionismo do clássico através da quebra de uma série de paradigmas, a fim de colocar o espectador em posição crítica/brechtiana diante da obra, – Voula, a protagonista de “Paisagem na Neblina”, cumpre grande parte da jornada do herói, e sua trajetória se encaixa perfeitamente no diagrama acima: no âmbito do defeito, temos a busca incessante pela proteção paterna. Durante o desenrolar da trama, o mentor e, no caso principalmente, as inúmeras provações impostas pelos guardiões do limiar (as expulsões do trem e o estupro), levam ao fim, à mudança: o profundo conhecimento das ameaças externas e a necessidade de aprender a cuidar de si própria e resignar-se com isso, algo que parece sintomático numa personagem que se despede da infância e ensaia seus primeiros passos em direção à adolescência – e é justamente esta a grande mudança presente na jornada.

A transformação de Voula e os perigos que contrapõem seu trajeto são colocados de forma imagética, e o mundo hostil traduz-se com frequência em imagens de máquinas imponentes e opressivas, como as dos fotogramas abaixo.

No entanto, nenhuma cena é tão simbólica e enigmática quanto aquela em que uma enorme mão de concreto é retirada do oceano, sob os olhares de Voula, Alexander e Orestis. Numa análise jungiana, temos na ordem da imagem o momento em que o arquétipo emerge do inconsciente (a água) para tornar-se símbolo, que vale reiterar, é sempre incompleto. A mão, que pode assumir um ideal de proteção, revela a ausência do dedo indicador, ou seja, possui um caráter lacunar, de incompletude. O crítico Sérgio Alpendre vai além ao apontar esta falta como uma recusa em indicar o caminho para aquelas crianças. Não bastasse, a estátua é levada para longe por um helicóptero, desaparecendo no horizonte azul, ou seja, a imagem torna simbólica essa impossibilidade da proteção pretendida pelos irmãos. Orestis, que desenvolve uma relação muito próxima da paterna com Alexander, também cai em si e percebe que não pode vestir a máscara daquele arquétipo idealizado: na cena, ele próprio é uma criança inconformada com os perigos do mundo.

A trajetória de Alexander não será marcada por mudança e isso a afasta da clássica jornada do herói. O caminho trilhado pelo irmão caçula é aquele mais recorrente aos personagens de filmes infantis que saem numa caça ao tesouro e é são movidos por essa busca; nada parece atingir sua determinação. Jung – psiquiatra fundador da psicologia analítica, que fundamenta-se no estudo do inconsciente e seus arquétipos, – pontua que a criança representa “o impulso mais forte, mais inevitável em cada ser, ou seja, a urgência de se realizar”. O anseio de Alexander é, inicialmente, o mesmo de Voula – a busca por proteção. Ela, no entanto, cumpre a passagem da infância para a adolescência e compreende uma série de coisas que não cabem à etapa infantil, longe da transição, de Alexander. Ele termina o filme, portanto, ainda a procura de alguém que o proteja. O gráfico representativo do personagem será o seguinte:

Essa incompatibilidade entre as jornadas fraternas, que partem de um mesmo objetivo e realizam uma mesma trajetória física (uma andança pela Grécia), é proveniente da diferença de momentos em cada um dos personagens se encontra e, sobretudo, dos traumas particulares sofridos por Voula durante a viagem. Pois, se Alexander reconhece em Orestis a figura paterna, Voula pode até vê-lo dessa forma a princípio, mas o despertar da sexualidade e a rememoração da violência (o estupro) fazem com que ela desconfie e repudie o rapaz. Ela acaba agindo assim como sombra de Alexander, pois o impede de chegar à completude ideal de sua procura. O inverso também ocorre: embora Voula chegue ao término consciente do fracasso e da impossibilidade de sua missão, mas também transformada, pois é capaz de proteger a si própria (e, sobretudo, atingiu o ápice na evolução em direção à independência), ela se vê no dever de pensar em Alexander e por isso retornar, atingir um meio tom.

Chegamos então ao emblemático final de “Paisagem na neblina”, em que, em meio à opacidade da névoa e à natureza inóspita, o casal de irmãos encontra uma única e imponente árvore a certa distância. Correm até ela e abraçam-lhe o caule. Deixa-se para traz o mundo das máquinas, complexo e intimidante, para que se realize este retorno ao mundo dos instintos, ao natural, que segundo Jung, acolhe em seu seio o arquétipo da criança abandonada. É mais um plano simbólico, que conclui este confronto entre jornadas proposto por Angelopoulos.

*Alvaro André Zeini Cruz é graduando em Cinema pela Faculdade de Artes do Paraná (FAP)

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Este post tem um comentário

  1. Author Image
    Isabelle Gasparini

    Ótima análise, me esclareceu muitas coisas!

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