Percepção Digital: Sinestesia, Hiperestesia, Infosensações

Prof. Dr. Sérgio Roclaw Basbaum: TIDD – Programa de Pós-Graduação em Tecnologias da Inteligência e Desing Digital. Depto. de Ciências da Computação. Faculdade de Matemática, Física e Tecnologia – Pontifícia Universidade Católica – São Paulo (PUC-SP) sergiobasbaum@pucsp.br

Caminhos do pensamento

No ano de 1992, quando estudava Cinema na Universidade de São Paulo, iniciei um trabalho de pesquisa envolvendo as relações entre cores e sons, tendo em vista a composição de música para cinema. A pesquisa levou-me, é claro, à questão da sinestesia; mas também aos recursos e ambientes de produção digital de imagens e sons, que, naquele início dos anos 90, já se apresentavam um pouco mais acessíveis e certamente promissores. Como resultado, realizei pouco depois meu mestrado focando-me sobre a sinestesia nas artes a partir de questões que emergem da interseção entre arte, tecnologia e percepção. Este se tornou um pequeno livro, (BASBAUM: 2002), em que se apresentaram para mim, de modo irrecusável, certos vínculos entre as aspirações poéticas de uma possível história da sinestesia nas artes e a emergência dos recursos digitais.

A partir destas primeiras intuições, formalizei pela primeira vez – em 2003, no Subtle Technologies em Toronto – um conceito de “percepção digital”, a partir do qual propunha pensar a sensibilidade nas sociedades tecnológicas.  Estava então já envolvido em minha tese de doutoramento, na qual busquei pensar de maneira um pouco mais extensa estas relações entre arte, tecnologia e percepção e suas implicações na experiência contemporânea (BASBAUM: 2005). Este percurso faz notar – de modo surpreendente até para mim – que já há mais de 15 anos venho trabalhando estes temas. E que, tendo buscado a partir da sinestesia nas artes um caminho de pensamento, outros modos de experimentá-la também emergem de modo irrecusável e surpreendente.

Pensar as relações entre a sinestesia e a cultura contemporânea implica levar em conta a questão da percepção de modo abrangente; demanda levar em conta não somente o problema da percepção como objeto de estudo da filosofia, da fisiologia, da neurologia ou da psicologia – com suas múltiplas implicações em termos de consciência, pensamento e cognição -, mas em suas relações com o sentido de nossa experiência: suas relações com a cultura; e, tratando-se de uma cultura mais e mais tecnológica, a questão da tecnologia. Nesses termos, é possível avançar em relação às posições que propus anteriormente sobre os vínculos – que a esta altura deveriam ser evidentes – entre aquilo que se tem evocado com a palavra “sinestesia” e as manifestações da cultura e da arte contemporâneas, no âmbito daquilo que Charlie Gere (2002) chamou de “cultura digital”.

Aquilo que em mim sente está pensando

Fernando Pessoa, o grande poeta português, disse certa vez que “aquilo que em mim sente, está pensando”. A grande artista brasileira Lygia Clark disse o mesmo, num contexto bastante diverso. O que está dito aí reúne boa parte do esforço filosófico da fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty, na medida em que reconhece a unidade entre sensação e pensamento, abolindo a oposição tradicional entre razão e sensação que sustenta boa parte do pensamento ocidental. De fato, perguntou-se a Merleau-Ponty qual era a razão de seu retorno ao mundo percebido, já que superar as ilusões da percepção era precisamente a meta de toda a filosofia e ciência; ele respondeu que esse retorno era necessário para se compreender a gênese da própria racionalidade, sua natureza e alcance (MERLEAU-PONTY, 1990). Toda a linguagem, toda a ciência, toda a racionalidade e todo o saber partem do mundo percebido. Em primeiro lugar, eu tenho um mundo, cuja origem é o encontro entre meu corpo e um horizonte, um “sistema de coisas”, operado pela percepção.  É a partir daí que a percepção funda em mim uma noção de “verdade” com a qual, muito posteriormente, filosofia e ciência poderão brincar, buscando assegurar as condições dessa “verdade” por meio de uma “lógica” ou de um “método”.

Mas o mundo que a percepção me dá não é o chamado “caos das sensações”, que seria ordenado por meio dos julgamentos da razão, por associação e memória. É anterior à representação, e me dá “coisas” – abertas e inacabadas – ao invés dos “objetos”, idealmente distintos uns dos outros, aos quais a ciência agrega propriedades, igualmente definidas e calculáveis. Ainda que o horizonte aberto pela percepção seja instável, dinâmico, tecendo campos de relações e hierarquias entre coisas e seres que se refazem a cada instante, este mundo pré-objetivo, anterior à linguagem e aos desempenhos da razão, é já um mundo vestido de sentido, de uma direção. Uma das belas lições que se pode extrair da fenomenologia merleau-pontyana é ler a palavra “sentido” em suas múltiplas implicações: os sentidos (corpo) me lançam no sentido (direção) do mundo e me entregam um mundo já banhado de sentido (significação). É sobre essa tese do mundo, dada no perceber, que a razão opera. E nessa percepção, tal qual descrita por Merleau-Ponty, em 1945, “os sentidos traduzem-se uns nos outros sem necessidade de um intérprete” (MERLEAU-PONTY, 1994: 315).

Pensamos como sentimos

Entretanto, muito embora as descrições de Merleau-Ponty tenham retomado de maneira decisiva o papel da percepção na experiência vivida – e mesmo a ciência contemporânea tem retomado caminhos abertos pelo fenomenólogo francês (o grupo do falecido Francisco Varela[1], por exemplo) -, a fenomenologia da percepção não foi capaz de perceber que este berço do sentido não desemboca necessariamente na razão: se assim fosse, a razão, tal qual a conhecemos, não seria uma marca distintiva do pensamento ocidental. Desnecessário lembrar o chauvinismo oitocentista que acompanha qualquer tentativa de afirmar a razão como emblema de uma superioridade do ocidente: a presente realidade global, e mesmo a descoberta de seus próprios limites ao longo do século XX, não mais permitem tomar a razão técnica européia como o ponto mais alto da evolução humana. Devemos então pensar, ainda com Merleau-Ponty, que somente aquela admiração primeira com as coisas, de que nasce todo o pensamento, é que pode nos recordar incessantemente da inesgotável riqueza de sentidos do vivido. De tal forma que a razão desce de seu pedestal para entender-se somente como uma das formas de significar o vivido. Poderosa, sem dúvida; mas sem qualquer direito ao monopólio do acesso às coisas. Aproximada deste modo, a questão da percepção abre-se à multiplicidade das culturas como diferentes modos de celebrar o real.

“Pensamos como sentimos”, afirma o antropólogo canadense David Howes (2003). Howes, Constance Classen (1993) e outros engajados em investigar a antropologia dos sentidos têm mostrado, com muita clareza, que sentimos e percebemos de modo muito diverso de cultura a cultura, de sociedade a sociedade. Sean Day passou muito perto deste problema quando escreveu seus trabalhos sobre metáforas sinestésicas nos anos 1990, mostrando diferentes hierarquias de modalidades perceptivas entre as literaturas inglesa e alemã (DAY, 1996). Mas aí estamos ainda num modo ocidental de apreender o mundo, dominado, sobretudo, por um modo de olhar. São tantos os autores, de tantos campos diferentes que reafirmam a primazia da experiência visual no pensamento e na representação na cultura ocidental[2], que o tema se torna quase tedioso: uma lista breve poderia incluir McLuhan, Heidegger (1977), Freud, Benjamin, Hannah Arendt, Oliver Sacks e mesmo Francis Crick. E até mesmo para o filósofo japonês Nishida Kitarô, é o ponto-de-vista a marca do conhecimento no ocidental. Os mitos gregos falavam no poder do olhar da Medusa; o dramaturgo inglês Samuel Beckett roteirizou um filme em 1965 em que o protagonista procura, a todo custo, esquivar-se a qualquer possibilidade de ser visto, e em que a câmera é um instrumento de morte; na mesma direção, em suas Histoire(s) du Cinema, o cineasta Jean-Luc Godard compara o olhar da câmera – que guarda as imagens do mundo em sais de prata fotossensíveis – à transformação da mulher de Lot em estátua de sal. Man Ray fez, em seu “Motivo perpétuo”, uma incrível síntese dessa leitura do ocidente: um olhar que oscila mecanicamente entre um extremo e outro, sem jamais perder a sua proeminência sobre os demais sentidos no acesso ao real.

Entretanto, os demais sentidos também podem “fazer mundo”, podem significar o vivido. Classen e Howes mostram claramente como outras culturas possuem não um “ponto-de-vista”, mas um “ponto de experiência”: há culturas constituídas por uma primazia do mundo auditivo, culturas orais; há culturas que significam o mundo e elaboram linguagem a partir de uma primazia tátil, como é o caso dos Tzotzil, do México, cujo mundo é compreendido em termos de trocas térmicas; e há também culturas que vivem segundo uma cosmologia olfativa, como é o caso – um de meus favoritos – dos nativos da Ilhas Little Andaman, na Baía de Bengala, que significam seu mundo através da troca dinâmica e volátil de aromas, e que quando perguntam “como vai você”, na verdade estão perguntando “como vai o seu nariz”. (Antes que se diga que trato aqui estes povos como se fossem curiosidades exóticas, é interessante notar que quando o tsunami devastou a costa da Índia no final de 2004, nas Ilhas Andaman todos se salvaram). Há muitos modos de acessar com o mundo vivido, além daqueles da razão. E há, inclusive, culturas sinestésicas: é o caso dos Desana, da Amazônia (América do Sul), cujo modo de significar o mundo se dá a partir de experiências e rituais vividos sob o transe de alucinógenos – resultando numa cultura marcada por relações e cruzamentos entre os diferentes sentidos. Diferentes culturas organizam seu mundo sensorial de modo distinto, e nos ajudam a lembrar a infinita riqueza da experiência vivida. (Nesse sentido, a superação abismal da arte moderna e o salto conceitual admirável levado a cabo pelos artistas brasileiros Hélio Oiticica e Lygia Clark pode ser creditado – é o que diria o crítico inglês Guy Brett (1994) – em grande medida, ao fundo multisensorial e sincrético da cultura brasileira).

O império do olhar

O olho separa, enquadra, foca. À força da representação visual da linguagem oral – a escrita na qual, segundo McLuhan, trocamos ouvidos pelos olhos – devemos não apenas toda a evolução do nosso modelo de conhecimento, mas o desenvolvimento da ciência e com ela o desenvolvimento de uma fala técnica, inequívoca, capaz de fixar na representação essa migração das “coisas” a “objetos”.  A linguagem vivida, falada, é um universo aberto, que se oferece incessantemente à interpretação, que se recria a cada retomada – é inclusive, no dizer de McLuhan, uma extensão de todos os sentidos; ao passo que a representação matemática e os algoritmos são precisos, devem ter uma única leitura possível, por uma máquina. Manifestação de uma tradição cultural obcecada pela idéia de controle do real, nossa linguagem científica facilmente se apodera do mundo vivido e o projeta no grande espelho ideal com o qual pretende engendrar o “ponto arquimediano” a partir do qual se poderia mover todas as coisas (ABRANCHES, 2006). É fácil, então, ler o famoso verso do poeta brasileiro Mário Quintana: “somente a poesia possui as coisas vivas; o resto é necrópsia”. Mas como se pode pensar os vínculos entre a percepção – entendida aqui como berço do sentido e empreendimento coletivo, o modo da cultura relacionar-se com e significar o vivido – e as tecnologias que emergem do empenho e das conquistas desse modo de conhecimento?

Fácil notar as relações entre as próteses tecnológicas do olho humano com as quais se fizeram a história da imagem e da ciência moderna – telescópios, microscópios, perspectiva, câmera escura, fotografia, cinema, e as infoimagens produzidas pelo cálculo informacional. A cada uma destas tecnologias corresponde um modelo de conhecimento, um momento da cultura, de que estes diferentes suportes participam, os quais em alguma medida operacionalizam e também, em grande medida, exprimem. Ler a história das tecnologias da imagem em suas relações com o pensamento moderno é tarefa hoje simples: o estabelecimento da noção de ponto-de-vista, sua consolidação num conceito ideal de sujeito, a mecanização da produção da imagem, o registro objetivo do movimento e da duração, o cálculo do real. Mais sutil, entretanto, é o modo como intervêm nos modos de perceber que fundam a cultura.

Que relações podem ser estabelecidas entre as tecnologias produzidas por um modo de significar o vivido e a percepção que o inaugura? Diversos autores contemporâneos escreveram sobre isso, como Paul Virilio ou Fredrich Kittler; mas o primeiro a observar a interferência decisiva das tecnologias de mediação no modo como percebemos, significamos e experimentamos o mundo foi Walter Benjamin, num artigo dos 1930, hoje célebre. De modo pioneiro, Benjamin (1984) soube notar que a fotografia e o cinema eram, sobretudo, o olhar de uma certa ciência – que criara as condições para a emergência destes aparatos; e que a relação entre um pintor e um cameraman era comparável  à de um curandeiro e um cirurgião: no primeiro caso, entende-se que há algo de inapreensível, de mágico na vida, com o qual se quer estabelecer uma relação; no segundo, trata-se de perceber as coisas como os objetos da ciência. Richard Cytowic pôde notar algo similar quando escreveu que “we no longer observed human physiology directly, but through the lens of technology (…) Patients have been reduced to objects, and physicians to dispassionate feeders of the machines” (CYTOWIC: 2000). Por outro lado, tendo sua imagem potencializada e multiplicada pelo aparelho, o ser humano torna-se mais que humano, espetáculo que ressurge nas telas como um super-homem: a câmera realiza, diz Benjamin, um teste – os vencedores são o astro de cinema e o ditador. Desse modo, a onipresença destas imagens técnicas reinaugurava a experiência, rompendo modos de significação do passado e instalando a ilusão de um mundo reinventado – muito similar à que alguns apologistas da tecnologia fazem hoje.

Mais tarde, já nos anos 60, o canadense Marshall McLuhan (2001) formalizou estas questões extraordinariamente ao dizer que as tecnologias eram “extensões do homem”, e que “o meio é a mensagem”: as tecnologias de mediação intervêm decisivamente no modo como percebemos o mundo, como nos relacionamos com o real, pensamos e formalizamos o conhecimento. Que as imagens da fotografia e do cinema tenham nos feito perceber o real nos termos da distinção sujeito-objeto de onde emergem, leva a indagar em que medida os aparatos que fazem a mediação nas sociedades informacionais nos fazem perceber e experienciar o real nos termos da cibernética – algoritmos, bancos de dados, cálculo. No mundo contemporâneo, todas as instâncias do real, dos afetos à tecnologia de guerra, são mediadas por dispositivos digitais, e pode-se indagar em que medida as obsessões por corpos perfeitos e eficientes, pelas cirurgias plásticas planejadas em computador, pela produtividade, velocidade, performance e eficiência que constituem atualmente os termos do real são sintomas do impacto da mediação digital – e das possibilidades de simulação e cálculo que inaugura.

Mas o que tudo isso tem a ver com “sinestesia e percepção digital”? Recapitulemos: a percepção é o berço do sentido da experiência; e é culturalmente constituída, é um empreendimento coletivo que opera o modo como certa cultura acessa e significa o vivido. De um modo muito sintético, a formulação inicial do conceito de “percepção digital” traçava uma leitura histórica da percepção no ocidente ao longo da modernidade: suas relações com um determinado modelo de conhecimento que realiza, no século XIX, a separação dos sentidos e que desemboca na arte moderna como empreendimento que almeja a especificidade dos suportes – investigando ao limite as possibilidades semióticas e experienciais de tal dissociação. Dado que a percepção é essencialmente uma operação de todos os sentidos, tal separação artificial viria a ser desmontada pela chamada arte contemporânea, que rompe progressivamente com a especificidade de suportes e linguagens produzindo inúmeras e variadas soluções de hibridização dos sentidos e das linguagens, em conjunto com a emergência dos suportes digitais. Hibridização progressiva e sem retorno, de cujo início participam, por exemplo, Fluxus, John Cage, Yannis Xenakis, John Whitney – com suas primeiras formalizações de um conceito de “visual-music” – e os já citados Helio Oiticica e Lygia Clark. Segue-se uma verdadeira epidemia de instalações imersivas que envolvem imagens, sons, por vezes aromas, e muitas vezes sensores de movimento ou interações táteis, não apenas implodindo completamente qualquer possibilidade de uma contemplação sensorialmente especializada nos termos em que operava o modernismo – mesmo em suas eventuais proposições sinestésicas, como é o caso do freqüentemente citado Kandinsky -, mas impondo uma intensa carga de estímulos, operacionalizada cada vez mais em termos informacionais ao espectador. Signos extremos do modo como o intercruzamento perceptivo e as intertraduções sinestésicas entre diferentes modalidades sensoriais tornaram-se o modo corrente de manifestação e experiência na cultura contemporânea estão por toda parte: nas telas do “players”, que acompanham músicas com algoritmos geradores de imagens abstratas – versão automática e esteticamente barata dos trabalhos pioneiros dos irmãos Whitney e outros; no fenômeno dos “VJs”, que acompanham música com imagens em “raves” e outros locais de entretenimento, agregando intensidade ao caráter imersivo da experiência; ou, curiosamente, o fato de que instalações de som, música e imagens abstratas apareçam até mesmo em filmes como da popular boneca infantil Polly Pocket.[3] Por toda a parte, infosensações, produzidas e operacionalizadas pelo cálculo digital, constituem o ambiente vivido, onde se inaugura a experiência do real. Num quadro como este, a palavra sinestesia assume um caráter fascinante, aparece em diferentes áreas do conhecimento. Evoca uma sorte de temas, como se acenasse ao mistério do sentido contemporâneo.

Em meio ao vórtex informacional sinestésico.

A pergunta que se coloca então é: qual o significado da experiência sinestésica? De que modo a percepção do sinesteta significa o mundo? Aqui aparece o desafio contemporâneo do acesso à experiência, que tem inspirado muitas páginas em diferentes disciplinas. Além das dificuldades colocadas aí desde o behaviourismo, há ainda outras normalmente desconsideradas, por exemplo, aquelas impostas pelos limites da linguagem – o chamado círculo hermenêutico. Assim, depoimentos em primeira pessoa estão duplamente presos: às determinações de uma ou outra linguagem, bem como aos limites dos próprios sinestetas em trazer à linguagem sua própria experiência. Não é caso dos artistas e dos filósofos, especialistas no enfrentamento de tais limites.

Nas narrativas de suas experiências com o haxixe, Walter Benjamin descreve uma experiência de audição colorida:

“(…) [vivi ali] minha experiência com a audition colorée. Eu não estava acompanhando atentamente o sentido do que E. me dizia, pois o eco em mim de suas palavras se convertia imediatamente na contemplação de coloridas lantejoulas metálicas, as quais se reuniam até formarem padrões. Tentei explicar-lhe o fenômeno pela comparação com moldes de trabalhos manuais, aquelas lindas cartelas coloridas que encantaram nossa infância (…)” (Benjamin, 1984b: 88).

Esse conflito entre o caráter imediato e volátil das sensações e o mundo simbólico, que se descola da experiência em nome de uma duração de outra natureza, repete-se em depoimentos famosos de sinestetas como Shereshevski – com Luria (1987) – ou artistas como Kandinsky. E verificamos que, em grande medida, há muita consistência entre a experiência buscada pelos artistas – que nem sempre são sinestetas stricto-sensu – aquela experienciada seja por sinestetas como Michael Watson (CYTOWIC, 2000) ou por indivíduos sob influência de drogas, como Walter Benjamin ou o cineasta americano dos anos 1950 aos 70, Harry Smith, que descreve experiências de audição colorida ao escutar as performances de Dizzy Gillespie (SITNEY, 1979). Artistas, sinestetas, filósofos, parecem, enfim, referir-se a um mesmo tipo de experiência – o que parece apontar na direção da tese defendida por Merleau-Ponty, Marks (1978), Cytowic, Gray (1997) e outros, de que somos todos, em alguma medida, menos ou mais intensamente, sinestetas e, que se trata de uma condição estrutural de nosso aparato perceptivo.

Dentro dos limites deste artigo, gostaria de sintetizar as implicações da experiência sinestésica derivada destes autores: trata-se de uma experiência pré-verbal do mundo, mais frequentemente encontrada em crianças e, certamente, parte da experiência dos recém nascidos, que ainda não amadureceram as distinções das áreas cerebrais associadas à diferentes sentidos; uma imersão na sensação, oposta à experiência analítica e racional do mundo; uma experiência do tempo específica, de “agoridade”, de pura imediaticidade, quase como uma dilação, deslocada do tempo linear e objetivo do relógio, que normatiza a experiência ordinária das sociedades ocidentais. Assim, opondo-se a aspectos decisivos da experiência perceptiva normatizada na cultura, a sinestesia se apresenta como um modo particular de consciência, uma gestalt específica, uma construção de mundo que provê uma cognição distinta, inefável – que o sinesteta experimenta, mas não consegue expressar completamente. Tais qualidades levaram Cytowic a comparar a experiência sinestésica ao êxtase espiritual, tal qual descrito por William James em Varieties of Religious Experience.

A partir desta leitura da experiência sinestésica como uma maneira de produzir sentido que é essencialmente pré-verbal – coerente com a descrição de Merleau-Ponty da unidade dos sentidos – é tentador abordarmos o presente dilúvio de infosensações nas sociedades contemporâneas – inclusive o design cuidadoso dos atributos sensíveis das mercadorias, descrito por Howes (2005) como a “hiperestesia” da sociedade de consumo – nos termos daquilo que McLuhan descreveu como o caráter sinestésico das culturas orais da Idade Média: a fala como uma extensão de todos os sentidos e as pessoas imersas numa espécie de espaço acústico, mágico, no qual o efeito fragmentador que vem a reboque da crescente dominância do olho como consequência da palavra impressa ainda não consumou a separação especializada dos sentidos na cultura. Exemplo dessa integração sensorial na Idade Média é a famosa Catedral de Chartres, na qual as luzes que atravessam vitrais coloridos se misturam à reverberação dos coros e aos aromas de incenso, fazendo da presença na catedral uma experiência imersiva ao mesmo tempo religiosa e intensamente sinestésica (RILEY III: 1995), da qual os espetáculos de Lanterna Mágica do jesuíta Athanasius Kircher não poderiam ser senão uma pálida imitação portátil.

Outro modo de considerar a possibilidade de uma relação perceptiva com o mundo estruturada em termos sinestésicos seria o exemplo dos Desana, da Amazônia, citado anteriormente. Para eles, cada um dos aspectos sensoriais da experiência é associado a diferentes significados que codificam valores morais e comportamentos sociais. Cores, sons, aromas, sabores e toques constituem um ambiente sensualmente rico – certamente devedor do intenso emprego ritual de bebidas alucinógenas – e é papel do pajé, precisamente, resguardar e controlar os valores morais, os comportamentos e os pensamentos dos membros da tribo por meio do controle sensorial. Assim, uma vez mais, o controle do campo sensível é o controle sobre o sentido.

Entretanto, apesar do regime perceptivo imersivo e sinestésico da Idade Média oferecer algumas metáforas interessantes para pensarmos a experiência contemporânea; e apesar do rico ponto de experiência sinestésico induzido por alucinógenos dos Desana também oferecer algumas direções interessantes para pensarmos este ambiente contemporâneo tecnologicamente saturado de infosensações e intensamente sinestésico – é importante notar o explícito e cuidadoso controle dos Desana sobre o campo sensível como controle do sentido -, não podemos senão reconhecer que as sociedades tecnológicas têm esta simples e clara especificidade: são tecnologicamente operacionalizadas. Não há maneira pela qual se possa pensar a hiperestesia do capitalismo global nos termos da Natural Magik da Idade Média[4], ou das experiências minuciosamente ritualizadas dos povos da Amazônia Colombiana. As tecnologias, como notamos há pouco, têm um impacto que lhes é próprio sobre a percepção, e, em conseqüência sobre a maneira como a sociedades significam a experiência. Tal impacto está intimamente relacionado à matriz epistemológica da qual uma tecnologia emerge. No caso da presença pervasiva da mediação digital, não podemos senão considerar a instalação corrente do campo perceptivo em grande medida relacionada ao caráter calculador das tecnologias informacionais. Isto significa que estamos criando um ambiente sensível no qual todo o campo percebido é a apresentação de cálculos matemáticos na forma de sensações intercambiáveis, de modo que o fundamento da experiência vivida se dá a partir das interações com a atualização destes cálculos. Por esse motivo podemos comparar, como já fizemos, a percepção digital a um ambiente sinestesicamente saturado, porém com essa distinção: a sinestesia contemporânea é a sinestesia tecnificada, isto é, a instalação do campo percebido como projeção de cálculo.

São Paulo/Granada/Amsterdam/São Paulo, Maio 2007/Maio-Agosto 2008

REFERÊNCIAS

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BASBAUM, Sérgio (2002): Sinestesia, arte e tecnologia – Fundamentos da Cromossonia.São Paulo: Annablume/FAPESP.

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[1] Ver VARELA (1996)

[2] Ver LEVIN (1993)

[3] No filme infantil Ratatouille, produzido pela Pixar em 2007, o ratinho-gourmet, Remy, experiencia uma explícita sinestesia entre sabores e imagens, enquanto enfrenta o chef-de-cuisine Skinner — referência direta ao livro de Cytowic, The man who tasted shapes, e à bibliografia sobre sinestesia, que, de modo geral, atribui ao behaviourismo skinneriano a responsabilidade pelo desaparecimento das pesquisas sobre o tema durante quase 60 anos, a partir da década de 30.

[4] Ver CRARY, 1990.

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Este post tem 4 comentários

  1. Author Image
    MARCIA

    PREZADO DR SÉRGIO R. BASBAUM:
    ADOREI ESTE TEXTO TÃO INTELIGENTE. APESAR DE AINDA SER UM TEXTO DE DIFÍCIL LEITURA RACIONAL ME FOI DE GRANDES ESTÍMULOS E IMPULSOS SENSORIAIS.
    MÁRCIA

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    Lucila Pesce

    Texto inteligente, que nos inspira a ressignificar nossos conceitos sobre a temática anunciada. Muito bom! Lucila Pesce

  3. Author Image
    Leila

    Prezado Sr. Dr. Sérgio

    Obrigado. Seu texto abriu caminho para o trabalho que estou realizando, estou buscando consilhar a reação fisica do vidro,fusing, onde a matéria muda apenas o seu estado de agregação,unindo com tecnologia digital,arte, som e cor, partindo da transparencia de vidro, chegando na cor,depois da mudança de estado.sólido/liquido/sólido. Leila Balen

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