Se podes ouvir, escuta: Relações audiovisuais do filme Ensaio Sobre a Cegueira e considerações sobre seu processo criativo

Kira Pereira é mestranda em Técnicas e Poéticas da Comunicação – USP, com projeto sobre o processo de criação do som no cinema. É graduada em Cinema e Vídeo pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, com especialização em Som.
Desde 1997 vem realizando projetos audiovisuais independentes, atuando profissionalmente a partir de 1998, a princípio como produtora, assistente de direção e editora de imagens, depois se concentrando em sua área de especialização, o Som, atuando tanto na captação como na edição.
Hoje é professora do Instituto Criar de TV e Cinema e atua como freelancer como técnica e editora de som.

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Este artigo vem divulgar resultados parciais de uma pesquisa de mestrado ainda em andamento que aborda a gênese do processo de criação do som no filme Ensaio sobre a cegueira. O filme é baseado no livro homônimo de José Saramago, teve sua adaptação para o cinema feita por Don McKellar, tem direção de Fernando Meirelles, som direto de Guilherme Ayrosa, montagem de Daniel Rezende, edição de som de Alessandro Laroca e música assinada pelo grupo mineiro Uakti. A pesquisa pretende dar conta de cada uma destas etapas ou funções como momentos fundamentais para a criação do som de um filme, e estudá-las usando como base a teoria da Crítica Genética.

A idéia da Crítica Genética é reconstruir, compreender e analisar a gênese criativa de obras de arte a partir de registros materiais da criação. Diários e anotações do(s) artista(s), bem como projetos e esboços, são índices de como se deu este processo. Reflexões posteriores, como entrevistas ou palestras, guardadas as suas particularidades, também são ferramentas importantes. No caso específico de filmes,  é fundamental que se considere os diversos artistas envolvidos em sua criação, uma vez que se trata de uma arte coletiva. Além dos registros citados acima, é interessante que se analise o roteiro e as diversas versões de montagem.

Como a citada pesquisa ainda está no princípio, apenas alguns dos índices do processo criativo foram estudados. Para o presente artigo, serão considerados: o livro de José Saramago Ensaio sobre a cegueira, determinado aqui como o ponto zero da criação; o blog Diário de Blindness, postado por Fernando Meirelles ao longo do processo de construção do filme; os cortes 1 e 7 da montagem; uma palestra proferida pelo diretor na ECA-USP em outubro de 2008;  a entrevista concedida por ele ao programa Roda Viva, da TV cultura, em setembro do mesmo ano; além, é claro, da versão final do filme apresentada comercialmente nos cinemas.

Trechos cegos

O livro a partir do qual o filme foi adaptado, devido à própria situação que aborda, uma epidemia de cegueira, utiliza a descrição de estímulos sonoros como importante ferramenta narrativa. Um cego necessariamente desenvolve uma audição mais apurada e passa a ter neste sentido seu principal canal de percepção do mundo.  É bastante freqüente no romance que fatos sejam narrados sob o “ponto de escuta” dos personagens cegos, como a seguir:

“Ele ouvia a mulher passar rapidamente as folhas da lista telefônica, fungando para segurar as lágrimas, suspirando, dizendo enfim, Este deve servir (…)” (Saramago, 1995:18)

“De súbito, vindo do exterior da camarata, provavelmente do átrio que separava as duas alas frontais do edifício, ouviu-se um ruído de vozes violentas, Fora, fora, Saiam (…) O tumulto cresceu, diminuiu, uma porta fechou-se com estrondo, agora só se ouvia algum soluço de aflição, o barulho inconfundível de alguém que acaba de tropeçar.” (Saramago, 1995:65)

“Foi pouco tempo depois que se ouviu o ranger inconfundível do portão. Excitados, os cegos, atropelando-se uns aos outros, começaram a mover-se para onde, pelos sons de fora, calculavam que estava a porta, mas, de súbito, (…)  retrocederam, enquanto começavam já a perceber-se distintamente os passos dos soldados que traziam comida e da escolta armada que os acompanhava” (Saramago, 1995:89)

No filme, de maneira paralela, há uma série de momentos nos quais se opta por reproduzir a percepção de uma pessoa privada da visão, mantendo a tela branca ou negra, como será discutido adiante.

Diversos teóricos de cinema, como Eisenstein e Bresson, versaram sobre as vantagens da não-coincidência, ou não-redundância entre sons e imagens numa obra cinematográfica. Bresson afirma que “O que é para o olho  não deve ter duplo emprego com o que é para o ouvido” e aconselha: “Quando um som pode substituir uma imagem, (deve-se) suprimir a  imagem ou neutralizá-la” (Bresson, 2004:52-53). Na conhecida Declaração sobre o futuro do cinema sonoro, Eiseinstein, Pudovkin e Alexandrov defendem o uso contrapontístico do som no cinema, se opondo aos “FILMES FALADOS (…) nos quais a gravação de som ocorrerá num nível naturalista, correspondendo exatamente ao movimento da tela (…)” (EISENTEIN, 1990:218). Seguindo de certa forma esta lógica, é prática corrente em produtos audiovisuais quando se deseja “fazer o público escutar”, privá-lo da imagem. Assim, já no tema da cegueira, da privação da visão, há a potencialidade de uma utilização ativa do som na construção da narrativa.

Há registros de que ao longo do processo de criação do filme Ensaio sobre a Cegueira a utilização ativa do som foi um tema bastante discutido. Em palestra ministrada na Escola de Comunicações e Artes da USP em outubro de 2008, Meirelles afirmou que nas primeiras reuniões de criação do filme, a idéia era fazer “quase um programa de rádio”, ou seja, criar diversos momentos onde o público fosse privado da informação imagética, recebendo apenas estímulos sonoros. No produto final apresentado ao público, há diversas inserções curtas da tela branca, como no encontro entre o primeiro homem cego e sua mulher; ou tela negra, como na cena do porão do supermercado – ambas a serem analisadas adiante. Nestes dois trechos há a privação temporária da informação imagética, deixando a condução da narrativa a cargo do som e se aproximando da percepção das personagens na situação mostrada.

Um exemplo interessante de uso da tela branca se dá no sanatório, na cena de encontro entre o primeiro cego e sua mulher. A cena começa com a tela branca e ouvimos as vozes dos dois personagens se chamando um ao outro. As vozes se alternam entre os diversos canais de som da sala de cinema (vide figura abaixo), reproduzindo para o espectador a sensação de falta de localização das personagens cegas. A um certo ponto a mão da mulher do primeiro cego aparece em quadro, numa imagem superexposta e desfocada. A voz dela então se fixa no canal central, ainda chamando por ele, e a voz dele ainda pode ser ouvida pulando de uma caixa a outra um par de vezes até que vemos seu vulto desfocado aparecer na tela, sua voz também vai para o centro e finalmente vemos o casal reunido. Há, portanto, uma tentativa de transmitir ao público a sensação dos personagens que vivem a cegueira branca, através da privação da imagem e da utilização da estereofonia reproduzindo a escuta como instrumento de localização. Ao final, no entanto, a suposta imagem subjetiva é dissolvida e se revela uma ilusão de ótica. Procedimento similar acontece na seqüência inicial, que será discutida a seguir, onde a tela branca que aparenta ser a subjetiva do primeiro cego se revela um reflexo no vidro do carro.

Canais da tela: C - canal central, geralmente o lugar da voz e dos sons mostrados em cena;              CR - centro direita e CL - centro esquerda, usados normalmente para sons que estão entrando e saindo de cena, e em alguns casos para sons offscreen  (que estão fora da área da tela).
Canais da tela: C - canal central, geralmente o lugar da voz e dos sons mostrados em cena; CR - centro direita e CL - centro esquerda, usados normalmente para sons que estão entrando e saindo de cena, e em alguns casos para sons offscreen (que estão fora da área da tela). Surround: SR - surround direito; SL - surround esquerdo, geralmente usados para som ambiente e sons mais discretos. Subwoofer: Reproduz apenas as freqüências graves.

No geral as inserções da tela branca duram apenas alguns segundos, ocupando uma parcela mínima do filme, e ficando distante da idéia inicial de “programa de rádio”.  Analisando versões anteriores de montagem – o filme teve quatorze cortes até ser fechado na versão apresentada ao público – podemos ter alguns índices de como estas idéias foram se transformando. Nos primeiros cortes – foram analisados o primeiro e o sétimo – a presença da tela branca é muito maior do que no corte definitivo, e podem ser percebidas diferenças estruturais. Nas versões mais antigas, há uma estrutura recorrente onde se dá a inserção da tela branca a cada personagem que cega, de maneira muito mais alongada e com função narrativa clara. O melhor exemplo para isso é a cena do primeiro homem cego em casa, logo após a saída do ladrão. Tanto no corte 1 como no 7, após o plano detalhe do olho mágico (que se manteve no corte final) há um longo trecho branco, de aproximadamente 14 segundos, que exerce a função de subjetiva do personagem. Durante esse tempo, ouvimos sons de objetos caindo no chão, algo de vidro se quebrando, a voz do primeiro homem cego gemendo e reclamando. No sétimo corte, há ainda um prolongamento deste trecho, incluindo a entrada da esposa, com o ruído de porta abrindo e a reclamação dela sobre a bagunça deixada. Só então a imagem retorna, e a mostra no momento em que percebe o ferimento do marido, enfatizando o relato dele sobre sua cegueira. Já na versão final, após o plano do olho mágico há um brevíssimo trecho branco acompanhado pelo “som de cegueira”: um sino reverberado acompanhado de uma vibração grave. Toda a ação de derrubar o vaso e se cortar é narrada com imagens e sons.  O uso da tela branca perde, portanto, sua força como subjetiva do cego e passa a ter função meramente ilustrativa. Não foi possível até o momento identificar a que ponto (em qual corte) se deu esta modificação radical dentro do processo de montagem, que reduziu todos os trechos brancos a poucos segundos. Tampouco se tem clareza sobre a razão destas escolhas, que aparentemente empobrecem as relações audiovisuais do filme.  Através da análise dos demais cortes e entrevistas com montador e diretor, pretende-se chegar a uma melhor compreensão deste processo.

Ainda sobre os trechos cegos, na versão final do filme, podemos notar uma clara diferenciação – de duração e de tipo de relação audiovisual – entre os trechos brancos e o trecho negro. Os trechos brancos todos tem duração curta, e com exceção da cena de encontro dos japoneses descrita acima, e da conversa no carro entre ladrão e o primeiro homem cego na primeira seqüência,  raramente são acompanhados de um som significativo para a construção da narrativa. Geralmente há apenas o “som de cegueira” descrito acima. O trecho negro, por outro lado, se estabelece claramente como a subjetiva da mulher do médico, que adentra o porão escuro do supermercado. Conforme ela vai descendo as escadas, a imagem vai ficando mais sub-exposta, até haver o corte para o black onde toda a ação – passos, tatear das prateleiras, sacudir dos objetos tentando identificá-los até achar a caixa de fósforos e acender um palito – é narrada exclusivamente pelo som. É bastante interessante analisar os primeiros cortes desta seqüência em comparação com o corte final, pois apesar de desde o princípio haver a privação de imagem, a relação audiovisual criada é bastante diversa.

Até a pré-estréia do filme em Cannes, como já foi divulgado pela imprensa, o uso da voz over – a narração feita pelo velho da venda preta – era muito mais presente do que se pôde ouvir na versão comercial. Aparentemente devido a críticas recebidas após esta projeção, houve uma redução deste uso, mantendo a voz over (V.O.) somente na seqüência em que o velho narra aos cegos do manicômio o que ocorreu do lado de fora, e na conclusão do filme, após o primeiro cego ter recuperado a visão. Um exemplo de V.O. presente nos cortes iniciais que não se manteve no final se dá justamente na cena do porão do supermercado. No primeiro corte, a montagem de imagem e ruídos da seqüência se aproxima bastante da mostrada no corte final, com o uso do black e ruídos de manipulação de objetos, no entanto a presença da narração transforma totalmente a fruição da cena. No primeiro corte, a narração colocada é totalmente explicativa do que a mulher pensa e percebe durante sua ação. O conteúdo do texto revela que a princípio ela pensou que fosse uma garagem, que sentiu cheiro de comida, que tocou algo, que investigou o que era, sacudindo, e vai descrevendo cada objeto até o encontrar da caixa de fósforos. Quando a personagem está saindo com os mantimentos do porão, a V.O. nos fala dos pensamentos da mulher, se questionando se deveria ou não contar para os demais cegos sobre sua descoberta, e revelando que ela deixara a porta do porão aberta.  É claro para quem assistiu ao filme – e talvez até para quem não assistiu – que estas explicações são totalmente desnecessárias, pois as informações  trazidas são redundantes com as trazidas pelos ruídos, podem ser percebidas pelo contexto do filme, ou são irrelevantes para a história. Além disso, a narração faz com que os ruídos de manipulação se tornem apenas uma ilustração do que está sendo narrado, ficando totalmente passivos e sendo pouco percebidos pelo espectador. Na versão final, por outro lado, os ruídos assumem um papel muito mais ativo, sendo os únicos responsáveis por informar ao público o que se passa na cena. Além disso, ao simular uma subjetiva não só imagética como auditiva da personagem, sem interferência de elementos não-diegéticos, o filme traz ao público de maneira muito mais eficiente a sensação de cegueira, promovendo uma adesão total à mente da personagem.

Mas qual o motivo desta diferença tão marcante no uso da privação de imagem entre os trechos brancos – supostas subjetivas dos cegos – e o trecho negro – subjetiva da personagem principal? Um estudo mais aprofundado precisa ser feito, mas é possível inferir que essa escolha tenha relação com a premissa principal do cinema narrativo clássico – a identificação do público com um personagem, que colabora para a sua entrega ao filme e para a suspensão de sua realidade cotidiana durante as duas horas de projeção. O filme, com ainda mais intensidade que o livro, escolhe claramente o ponto de vista da mulher do médico. É sob o olhar dela que percebemos toda a parábola narrada, todo o caos, todo o sofrimento e a transformação dos personagens, trazidos pela epidemia de cegueira. É com ela, portanto, que o espectador deve se identificar. Valorizar as subjetivas dos demais cegos, como era feito nos primeiros cortes e foi descrito acima na cena do primeiro cego, não contribuiria para essa centralização de ponto de vista. Isso pode explicar a redução dos trechos brancos, e também o não estabelecimento destes como subjetivas de fato, através de sua dissolução por efeitos óticos, subvertendo-os. Só interessa ao filme que o espectador se identifique com o olhar externo (que não vivencia a cegueira) da mulher do médico.

A exceção se dá na cena do encontro dos japoneses que, apesar de ter uma breve privação de imagem, promove a identificação do público com as personagens, através dos recursos descritos anteriormente. Esta exceção se justifica pelo fato desta ser uma das cenas com maior carga dramática no filme, e deste modo ser importante a identificação do espectador, para mais eficazmente se alcançar a emoção pedida pela cena.

Offscreen e experimentação

Em seu blog Diário de Blindness, o diretor conta sobre uma vivência – pensada para a preparação dos atores – em que passou algumas horas vendado: “Aprendi muito sobre som nas horas em que fiquei cego e decidi que vamos ser muito experimentais em nossa mixagem”.  De fato, na citada palestra na ECA-USP Meirelles afirmou haver no início do processo criativo um conceito de utilizar extensivamente “sons vindos de fora de tela”. Pretendia-se uma utilização expressiva do multicanal e de sons offscreen (vindos de fora da tela). Em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, Meirelles afirma que uma das idéias de montagem era a de durante a epidemia de cegueira nunca mostrar o rosto de quem estivesse falando, de certa forma se aproximando das propostas de Eisenstein e Bresson.  De maneira geral, a utilização de sons offscreen é bastante presente ao longo do filme, seja nos trechos “cegos”, seja através de ambientes intensos e que chamam a atenção, seja através de diálogos onde freqüentemente não vemos quem está falando.

Exemplo desta afirmação se dá na seqüência de apresentação do filme, que ambienta uma grande cidade e nos apresenta o primeiro cego.  A intensa e rica ambientação de trânsito – com automóveis, sirenes, apitos de guarda, música diegética – é ouvida desde os créditos iniciais, e continua sendo ouvida, sobre uma montagem rápida de imagens em super close de semáforos e carros passando, que apresentam pouca definição e não localizam o espectador espacialmente. A identificação de que a cena se passa em um cruzamento movimentado se dá primeiramente pelo som. Não é rígida a correspondência entre as imagens mostradas e os sons colocados em primeiro plano, como quando vemos o semáforo e ouvimos um apito de guarda, ou quando vemos um PP do Primeiro homem cego e ouvimos buzinas. È bastante freqüente também a montagem com diálogos em off ou com planos onde não vemos bem o rosto de quem está falando. Trabalha-se, portanto, com a idéia de não- redundância entre imagens e sons, ainda que distante do conceito de contraponto como foi pensado por Eisenstein, pois há o desejo de reprodução naturalista da realidade.  A mixagem em multicanal (utilizando os diversos canais da sala de cinema) e as panorâmicas de som (passagem do som de uma caixa a outra) são usadas largamente, provocando uma imersão do espectador neste universo sonoro, e intensificando a sensação de caos passada pelas imagens.

Na anunciação do primeiro caso de cegueira, se dá uma interessante relação audiovisual que já estava presente no livro: “(…) o homem que está lá dentro vira a cabeça a um lado, a outro, vê-se que grita qualquer coisa, pelos movimentos da boca percebe-se que repete uma palavra, uma não, duas, assim é realmente, consoante se vai ficar a saber quando alguém, enfim, conseguiu abrir uma porta, Estou cego.” (Saramago, 2008: 12). Há aqui um descolamento entre a imagem e o som da cena narrada, numa privação de som que alarga o tempo da narração e da revelação do mal branco. Da mesma maneira, a cena do filme nos priva em primeira estância do som, primeiramente mostrando o homem gesticulando e dizendo algo que não podemos compreender. Só após algum tempo, quando a janela é aberta, ouvimos claramente a afirmação “I’m blind” (“estou cego”). Há aqui uma inversão da situação contrapontística mais corrente no filme, na qual se ouve algo que não se pode ver, que ocorrerá na mesma seqüência.

Após ter-se acordado que um dos passantes (identificado depois como o Ladrão de Automóveis) levaria o Primeiro Cego até em casa, há um trecho longo onde toda a tela está branca e ouvimos, em off, o diálogo entre os dois. Poderia se supor que esta seria uma subjetiva do cego, mas em seguida a massa branca se locomove revelando ser um reflexo no pára-brisa do carro, através do qual vemos os dois personagens. Novamente a impressão de subjetiva de um dos cegos não se mantém, dissolvendo a identificação temporária do espectador com a personagem.

Em diversos momentos do trecho analisado, há uma aproximação com a proposta de Robert Bresson, onde “o que é para o olho não deve ter duplo emprego com o que é para o ouvido” (2005:51). Através da não redundância com a imagem, o som exerce um papel ativo na narrativa fílmica, constituindo uma relação audiovisual interessante.  Não se pode afirmar, no entanto, que a estética do filme fuja muito do convencional ou alcance o experimentalismo pretendido no início do projeto. O próprio diretor, na anteriormente citada palestra da ECA, afirmou que grande parte das idéias radicais de relação imagem-som presentes nas primeiras idealizações não se concretizou no produto final.

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O Altifalante

Outro ponto interessante no romance e no filme é a presença sonora do altifalante no manicômio – sigo aqui a grafia do português lusitano utilizado por Saramago, por considerar este objeto como mais um personagem do romance. Utilizado por alguns dos cegos do manicômio como um recurso para marcação de tempo, pois davam nozinhos a uma corda a cada soar diário da mensagem (Saramago, 1995:193), o altifalante funciona também no nível da enunciação,  no filme como no livro, como uma marcação rítmica, um refrão, ajudando na construção da idéia de um cotidiano repetitivo. Por outro lado, o altifalante é um símbolo da opressão vivida pelos cegos, tanto pelo conteúdo do texto, uma enumeração de regras severas, quanto pela sua forma: “uma voz forte e seca, de alguém, pelo tom, habituado a dar ordens. Vinha de um altifalante fixado em cima da porta onde tinham entrado. A palavra atenção foi pronunciada três vezes, depois a voz começou, O Governo lamenta (…)” (Saramago, 1995:49). No filme, o altifalante se mostra também um elemento importante, e seu tom impessoal e frio é reforçado por um tratamento que evidencia a fonte mecânica da voz, dando-lhe um timbre metalizado, quase robótico.  Com o decorrer da narrativa a voz vai se tornando cada vez mais alterada, mais acrescida de ruídos, o que poderia ser justificado pelo “desgaste da fita”, enfatizando o longo tempo transcorrido, mas que serve também aos propósitos narrativos de representar o distanciamento da civilização e o abandono crescente vivido pelos personagens.

O manicômio

O bloco em que as personagens estão encarceradas guarda uma expressividade em sua ambientação, que através das goteiras, do ruído de lâmpadas frias, de um vozerio de gemidos,  de rangidos metálicos diversos – vindos principalmente das camas de campanha, uma escolha da direção de arte muito bem-vinda para o som – traz uma forte sensação de lugar velho e insalubre.  Um elemento sonoro importante, já delineado no romance mas modificado no filme, são as bengalas dos cegos da Terceira Camarata. No romance, o som é exposto como nos exemplos a seguir (grifos meus): “Torciam-se de riso, davam patadas, batiam com os grossos paus no chão (…)” (2008:173); “Por fim, um deles bateu com o pau no chão, Vamos embora, disse. As pancadas e avisos, Afastem-se, afastem-se, somos nós, foram diminuindo ao longo do corredor (…)” (2008:183). No filme, os “grossos paus”, que produziriam um som grave e abafado, dificilmente destacável em meio aos demais ruídos, foram substituídos por pedaços de cano ou outros metais, que além de serem mais agudos e conseguirem se destacar sendo facilmente audíveis, produzem um som cortante, agressivo, que parece traduzir com mais eficiência a sensação de violência física e moral retratada. De qualquer forma, é de suma importância o fato dos vilões da estória terem associados a si um ruído representativo de seu poder, ampliando sua presença física até os limites da propagação sonora, lembrando aos personagens e ao público seu poder e agressividade, mesmo em momentos nos quais a violência não é mostrada. Um ponto interessante a ser pesquisado é quanto das escolhas da direção de arte – como as camas de campanha e os cajados de metal – foram influenciadas pelo favorecimento da narrativa sonora do filme.

Música

Outro elemento de interesse destacado pelo diretor em seu blog é a música do filme. Escolhida para trazer um estranhamento, se distanciar da música orquestral comumente utilizada em filmes, a trilha musical assinada pelo Uakti é toda composta com instrumentos artesanais, como  chori, gig, tampanário, únicordio, e marimba de vidro com arco. Nas palavras do diretor: “(…) a idéia de fazer a trilha com o Uakti foi justamente trabalhar com timbres desconhecidos, com o intuito de colocar o espectador num universo sonoro tão novo quanto o mundo da cegueira. Orquestra, quartetos de cordas, pianos ou violões, por serem muito usados no cinema, nos falam de emoções de um mundo mais conhecido, e neste filme a música deveria levar o espectador para outro lugar.” Na seqüência de abertura, por exemplo, nem sempre fica claro o momento de entrada da trilha musical, pois ela utiliza timbres e andamentos muito similares aos dos ruídos e ambiências -percussão similar à batida no vidro do carro, pulsação das cordas similar a um alarme. Esta proximidade de timbres, conseguida também devido à utilização destes instrumentos “não convencionais”, traz alguns efeitos interessantes, como a  não-hierarquização entre ruídos e música  com ambos contribuindo organicamente para a construção do clima da cena.

Esta não-hierarquização, como já se poderia inferir pelo discurso de Meirelles, diferencia-se do uso comum à música nos filmes da indústria americana, onde a trilha musical ocupa um espaço sonoro muito maior, e os ruídos na maior parte do tempo são usados timidamente. Além disso, da maneira como a música do Uakti foi usada, há uma sensação de que a tensão é toda gerada a partir de sons da cena, emanando da situação real, não sendo imposta por uma música onipresente. É também evitada, como se pretendia, a zona de conforto, a sensação de conhecido que normalmente traz uma música orquestral tradicional.

Ruído e silêncio

No desenho de som do filme, há uma clara oposição entre seqüências mais ruidosas e com maior silêncio. O início do filme, como foi delineado anteriormente,  tem uma grande intensidade sonora, com uma forte ambientação de automóveis, e se opõe às seqüências que mostram a cidade cegada, muito silenciosa, com eventuais ambientações de vozes e presença de sons mais delicados. No nível do enunciado, esta diferenciação se justifica pelo fato de que após a epidemia de cegueira ter se alastrado, não mais se utilizaram automóveis ou aviões como meios de locomoção, e as fábricas e demais maquinários pararam de funcionar. No nível da enunciação, podemos analisar esta polarização trazendo os conceitos de paisagem sonora, parede sonora e áudio-analgesia, apresentados por Murray Schafer em seu A afinação do mundo.

Schafer nomeia como paisagem sonora os sons que compõem o ambiente acústico em determinado local, caracterizando-o. É feita a distinção entre paisagem sonora hi-fi, (do inglês alta fidelidade) na qual se pode escutar e distinguir perfeitamente todos os sons presentes, característica de ambientes mais silenciosos, de paisagem sonora lo-fi (o equivalente a baixa fidelidade), onde os detalhes sonoros ou sons de menor intensidade são mascarados pela saturação de ruídos. Podemos afirmar que o início do filme traria uma paisagem sonora lo-fi, extremamente ruidosa, enquanto que a cidade cegada teria uma paisagem sonora hi-fi,  bastante silenciosa e que permitiria a audição de sons mais delicados. Há ainda dois conceitos que podemos tomar emprestados de Schafer para nossa análise, Parede Sonora e Áudio-analgesia:

Áudio-analgesia (é o) uso do som como um analgésico, como distração para disseminar distração.” (…) “Hoje as paredes de som existem para isolar. Do mesmo modo, a amplificação intensa da música popular não estimula a sociabilidade tanto quanto expressa o desejo de experimentar a individuação… a solidão… o descompromisso. Para o homem moderno a parede sonora tornou-se um fato tanto quanto a parede no espaço.

Estes dois últimos conceitos referem-se à utilização da música, na opinião de Schafer usada nos dias atuais  como analgésico, ajudando a promover a alienação e individualismo. No entanto os ruídos incessantes, por vezes ensurdecedores de motores e máquinas da cidade, também adormecem nossos ouvidos a ponto de quase não percebermos a intensidade da poluição sonora a que somos submetidos todos os dias. Há uma saturação do espaço auditivo, o que acaba formando realmente uma parede que dificulta a percepção de sons delicados, de nuances sonoras, e em alguns casos quase que atrofia esse sentido da audição como instrumento de percepção do mundo.

Esta conceituação poderia ser transposta para uma análise do filme, onde o excesso de ruídos do início formaria uma parede sonora e estaria figurativizando a idéia de uma cidade onde ninguém se escuta, onde não há espaço para a expressão individual ou para a constituição das relações humanas. No extremo oposto,  a paisagem sonora mais silenciosa favoreceria uma escuta interiorizada e para aqueles que estão mais próximos, coincidindo com o trecho da narrativa onde há uma aproximação entre os personagens, que passam a constituir uma família.

Para corroborar esta análise, podemos nos apropriar do conceito de extensão do espaço sonoro, cunhado por Michel Chion em seu Audio-vision. Extensão é o termo que qualifica o grau de abertura e amplitude do espaço concreto sugerido pelos sons, dentro ou fora do campo visual mostrado no filme. Chion propõe uma polarização onde na extensão nula, o universo sonoro estaria reduzido ao nível dos sons ouvidos por um único sujeito, até mesmo incluindo vozes internas e a audição do pensamento deste. Neste caso o filme leva o espectador a  focar sua atenção e seu olhar nesta figura, favorecendo sua aproximação para com sua subjetividade. No pólo oposto, Chion dá o nome de extensão vasta para arranjo no qual, por exemplo, em uma cena interna sem referências visuais do ambiente que a cerca , ouvimos além dos sons das pessoas ou objetos que estão dentro do cômodo, os sons externos, como os carros que passam, passarinhos, o grito da vizinha, um avião. O uso da extensão vasta nos lembra da existência de todo um universo além daquele que a imagem nos mostra, ao mesmo tempo em que nos afasta da intimidade das personagens. Novamente trazendo para o âmbito do filme, o início com sua extensão vasta do universo sonoro nos afastaria da intimidade das figuras retratadas, e a cidade calada, onde há realmente um maior detalhamento dos ruídos de sala, concentraria a atenção do espectador nas personagens favorecendo a narração da intimidade familiar criada entre eles.

Para chegar a essa elaboração conceitual, o pensamento sobre o som não pode se iniciar depois que o filme já está montado, como freqüentemente acontece. Precisa ser planejado  desde o roteiro,  projetado na pré-produção e executado na gravação, ter sua relação audiovisual delineada na montagem, definida na edição de som e finalizada na mixagem. Em Ensaio sobre a cegueira, todas estas etapas são cumpridas e esse cuidado se reflete claramente em uma rica relação audiovisual. A criação artística é um processo vivo, e quando se trata de uma criação coletiva e cara como é o cinema, muitas negociações são feitas até que se chegue ao produto apresentado ao público. Foram aqui apresentados alguns índices deste processo; a pesquisa final pretende investigar mais a fundo cada uma das etapas da criação, buscando analisar o roteiro, anotações do técnico de som, material da edição de som, possíveis registros escritos dos autores envolvidos, além de entrevistas com alguns deles, e promover o cruzamento e análise de todos esses dados coletados. O processo em sua totalidade nunca estará disponível, mas através da rede criada a partir destes índices haverá mais clareza sobre as diversas etapas envolvidas na criação do som de uma peça audiovisual.

BIBLIOGRAFIA

BRESSON, Robert. 2005. Notas sobre o cinematógrafo. São Paulo: Iluminuras.

CHION, Michel. 1994. Audio-vision: sound on screen. New York: Columbia University Press

EISEINTEIN, Sergei. 1990. A forma do filme. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor

MENDES, Eduardo Simões dos Santos.2000. Walter Murch: A revolução no pensamento sonoro cinematográfico. Tese (doutorado) ECA/USP. São Paulo, ECA/USP

SALLES, Cecília Almeida.2004. Gesto Inacabado: Processo de criação artística. São Paulo: Annablume.

_________________. 2008.  Crítica Genética – Fundamentos sobre o processo de criação artística  . São Paulo: EDUC.

SCHAFER,  R. Murray. 2001. A Afinação Do Mundo. Uma exploração pioneira pela história passada e pelo atual estado do mais negligenciado aspecto do nosso ambiente: a paisagem sonora. São Paulo: Editora UNESP.

http://blogdeblindness.blogspot.com/

O presente trabalho foi realizado com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq – Brasil.

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Este post tem 5 comentários

  1. Author Image
    Leonardo Pinheiro

    Parabens pela publicação,muitos detalhes que eu só iria perceber depois que assistir o filme umas 3 vezes seguidas.

    Sucesso.

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    Reilly Steele

    Achei seu artigo muito bem elaborado e amplo. Citando trechos do romance; explorando a importância de imagens e sons na construção do filme a respeito das teorias sobre ” coincidência ” e ” redundância ” ; momentos quando o espectador está privado da imagem e como o som foi utilizado; mostrando diferenças entre versões 1,7 e o corte final a respeito do imagem e som; a relação de ruido e silêncio e como esses são utilizadas para relatar a alienação e a vida social; e muitos outros aspectos intrigantes. Um excelente artigo sobre um filme complexo.

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    Kiki,
    Como você mesmo disse, é apenas o primeiro fruto de uma pesquisa que poderá gerar uma fruteira. A pesquisa está muito bem estruturada e organizada, faltando você se debruçar no importante material que tens a disposição. Tenho certeza que este trabalho será concluído com a sua característica competência e seriedade e, espero, que ele evolua para algo mais geral como uma reflexão sobre processos de criação de som para filmes ou estratégias de criação que propiciem um amadurecimento das trilhas sonoras nos moldes propostos por Eisentein e Bresson.

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    Mari

    excelente artigo obrigada!

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    Depois de mais de 2 anos da sua divulgação consegui enfim ler o teu artigo =).
    Fala com muita propriedade, minúcia e clareza sobre o tema. Realmente muito bem escrito. Meus parabéns!

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