Sobre alguns procedimentos de criação de trilhas sonoras para cinema: primeiros escritos

Prof. Ms. André Luiz Gonçalves de Oliveira – UNOESTE – SP
andre@unoeste.br / alguns@gmail.com

1. Introdução:

Há muito do que se falar em se tratando desse tema. Escolherei uma abordagem mais pessoal, até por esse ser meu primeiro exame, por escrito, de uma ação que desenvolvo há exatos dez anos agora em 2008. Sou músico (compositor) e pesquisador na área de percepção auditiva. Logo, são do meu interesse as diversas possibilidades de apresentação de material sonoro, seja em música de concerto (trabalho especialmente com paisagens sonoras e música eletroacústica), seja como música e áudio em geral para filmes. Em princípio penso que o processo que tenho que abordar seja bastante complexo, com muitas etapas e atores organizados em diferentes grupos de ação. É necessário que haja um grande sistema dinâmico e integrado para produzir um filme, seja este um curta ou um longa metragem, em suporte digital ou em película. E a trilha sonora, original ou não, mais ou menos ousada, é sempre parte integrada desse sistema, sendo também um subsistema específico, com características bem definidas. Nesse artigo de estréia desse novo veículo para a reflexão sobre a produção audiovisual no país (de um importante centro universitário) me atrevo a refletir sobre duas experiências distintas que realizei com criação de trilhas para curtas-metragens cinematográficos de ficção.

A produção de um audiovisual envolve diversas etapas que vão desde a elaboração de um roteiro, a montagem das diferentes equipes de trabalho, até o planejamento e execução da distribuição do produto. Entre essa grande gama de atividades encontra-se circunscrita aquela que lida com o áudio do produto audiovisual que se está realizando. O nome que se atribui a essa atividade varia muito de contexto para contexto de produção. Assim como para a realização das imagens há uma variedade de funções operando juntas. Para o áudio pode-se contar funções como: técnicos de gravação para som direto, editores e mixadores, produtores e músicos (desde compositores regentes até instrumentistas). Assim esse grupo de agentes da área de áudio deve trabalhar de forma integrada para que o processo das outras equipes não seja prejudicado.

Há também padrões de tempo e de seqüência envolvidos no processo de produção do audiovisual que devem ser respeitados. A produção da trilha será um elo do processo geral, portanto, de certa forma, ela continua o trabalho de uma equipe e entrega seu resultado para que uma terceira continue o processo. Isso precisa acontecer dentro de um cronograma de ação. Conseqüentemente vários conflitos são decorrentes do ajuste dos cronogramas entre a produção musical e a produção geral. Uma das formas de minimizar ou resolver tais conflitos durante minhas produções tem sido montar meu cronograma em função estrita do cronograma geral. Entretanto este mecanismo ocorre melhor apenas quando posso opinar na montagem do cronograma geral, o que via de regra não ocorre. Assim, é preciso que se leve em consideração que o áudio deve estar pronto, finalizado composicionalmente falando, no término do prazo estabelecido pelo cronograma geral de produção. Há ainda outro porém: tal prazo não é estipulado pelo compositor, ou pelo diretor de áudio. Cabe aqui uma explicação de que na área de criação musical – falo de minha própria experiência e da observação da conduta de colegas mais próximos – há dificuldades em receber prazos e limites de fora, de outro lugar que não seja de si próprio. No entanto, por outro lado há que se levar em consideração que isso não tem atrapalhado o surgimento de grandes trabalhos na área de trilha sonora. É, sim, uma entre as tantas outras limitações existentes.

2. “A Hora da Virada”

Tive algumas experiências diversas quanto aos problemas envolvidos com o tempo e o momento dedicados à produção da trilha pela produção geral, nas quais creio que se possa observar alguns traços que devem ser comuns à outras experiências similares. Em uma produção de 1999, meu segundo curta metragem em 8 mm, tive de elaborar músicas (eu podia decidir quantas e em quais momentos) a partir do roteiro e de conversas com os diretores e produtores. Também pude acompanhar algumas filmagens. No entanto, não pude esperar a montagem ficar pronta para escolher os momentos e as músicas que eu colocaria. Não pude sequer ver copiões ou uma prévia qualquer das imagens em movimento. Assim, para o curta “A hora da virada” em 8 mm, criei 3 peças diferentes e escolhi lugares para elas. Além de ter escrito as partituras também precisei tocar, gravar, mixar e finalizar cada uma das músicas antes de enviá-las à equipe que faria a montagem final da trilha, bem como sua gravação na banda sonora do filme. Os diretores e o montador ainda escolheram colocar os trechos das músicas nos locais indicados por mim em metade do filme. Quanto à outra metade, eles utilizaram ainda outras músicas e as montaram onde pensavam ser melhor.

Creio que o episódio acima ilustre bem o que classificamos por processo coletivo de produção. Embora eu tenha composto, tocado, gravado, editado, mixado e masterizado cada uma das músicas, isso ainda não garantiu que minha contribuição fosse aceita inteiramente e fizesse, portanto, parte do filme como eu quisera inicialmente. Por isso, quando utilizo a definição de coletivo para caracterizar o processo de produção do audiovisual não estou utilizando uma metáfora, mas um termo direto, que referencia diretamente o modus operandi da produção de trilha sonora para audiovisual.

Uma das dificuldade que encontrei em compor a trilha para “A hora da virada” foi não ver o filme antes de ter as músicas. Não sabia se iriam mesmo funcionar para as imagens. Não tinha idéia de como as cores ficariam na tela, ou de como seriam os enquadramentos, ou o tempo das seqüências. Enfim, foi um pouco complicado no momento de fazer escolhas de criação, como por exemplo, que instrumentos ou que estilo musical utilizar.

Por fim, compus algo como um improviso para voz feminina acompanhada de piano e baixo, como um jazz, para os momentos mais descontraídos. Escolhi ainda uma música instrumental, com sintetizador, baixo e bateria, com uma rítmica quebrada (utilizando compasso em 7) e andamento rápido, para os momentos mais tensos e de correria que estavam previstos. Além disso, para o final, fiz um Blues bastante estereotipado como algo escrachado e despreocupado. Eram essas as características da ação do personagem no fim da história. No geral a montagem acabou bem parecida com o que eu pensei, até melhor mesmo. Creio que essa seja uma das características que marcam muito a produção audiovisual, a força da coletividade no processo de produção. De certa forma tais atributos a diferenciam do processo de produção bastante individualizado de diversas outras modalidades artísticas (sobretudo a partir da Idade Moderna) como a pintura ou escultura, mais ainda a música e a literatura.

3. “Saudade”

Um outro filme em que o tempo de produção e o envolvimento com a produção foram marcantes e interessantes para um estudo de caso foi a produção do curta metragem em 35 mm chamado “Saudade”. Essa produção foi realizada por uma equipe que já estava trabalhando junto há algum tempo com outros curtas-metragens. E nesse sentido havia um envolvimento muito pessoal com o filme, de minha parte e de diversos outros membros do grupo. Tive a oportunidade de acompanhar desde a feitura do roteiro até a mixagem final em 5.1. Tive ainda outras três oportunidades que não acontecem sempre: acompanhei as filmagens de dentro do set – com a equipe de direção – pude iniciar meu processo de criação a partir do filme já montado e telecinado e o mais interessante, o filme não teria fala de personagem algum ou narrador, apenas ruídos e música. Tal fato dava à sonoplastia e à música um grande destaque na elaboração do discurso estético. Ou seja, senti mesmo que o filme dependeria muito de seu som.

Assim, “Saudade” tem duas músicas. Até porque tem duas cores, dois personagens, dois tempos em que os personagens estão… enfim, é um filme com dois mundos distintos, mas intimamente relacionados, ainda que seja apenas por suas melancolias. Seria Barroco não fosse noir. Por isso utilizei uma música para o personagem masculino e outra para o feminino. Uma com muitos instrumentos no início e dois no final e outra com dois do início ao fim. O “tema dele” foi composto para oboé e piano. Uma melodia acompanhada em modo menor, bastante melancólica, com notas longas e finais de frase descendentes. O timbre do oboé já é bastante melancólico, quando utilizado em modo menor refaz fortes estereótipos. A melodia, no entanto, não é pessimista, mas triste, ou, de outra forma, consciente da ausência.

Ainda sobre a música do curta “Saudade”, não quis fazê-la com estéticas mais novas, ao contrário, fui buscar no minimalismo vivaldiano a sonoridade dos metais para a peça do personagem feminino. Vendo o filme hoje, para escrever o presente ensaio, creio que optei em utilizar uma sonoridade tonal por dois motivos fundamentais. O primeiro relacionado ao dualismo próprio presente em todo o filme – nada melhor que bom e velho Tonalismo como referência à dualidades – e o segundo em função de uma direção de fotografia e de arte que ousavam em vários aspectos e flertavam com estéticas mais novas. Pensei em equilibrar um pouco a quantidade de novidade presente na obra. Se por um lado eu tinha de ajudar a contar a história com a música e o som em geral, uma vez que não há fala de nenhum tipo durante o filme, por outro eu tinha certa responsabilidade em manter alguns vínculos com o espectador mais tradicional. Escolhi o sistema Tonal como esse lastro em função de seu grande alcance junto ao público menos especializado.

O curta “Saudade” possibilitou também um minucioso trabalho de criação dos ruídos, para ajudar contar a história num período de tempo tão curto. Havia no roteiro indicações de que o personagem ouvia ruídos no outro cômodo sem que houvesse alguém lá. Como numa tênue linha entre ouvir e lembrar de ouvir. Durante todo o filme o áudio também tem encontros e desencontros com as imagens. Como na primeira seqüência quando a cadeira de balanço está em quadro sem o som, que vem depois, junto com o blackout e o título. Ou como no momento do ruído do líquido caindo do bule e enchendo a xícara que se adianta às imagens da seqüência seguinte. Foi um grande desafio e pudemos concretizá-lo com a mixagem em 5.1. E dessa maneira espacializamos os ruídos para auxiliar a composição do discurso. Efetivamente esse foi um caso onde música e sonoplastia tiveram equivalência de relevância para a composição do discurso estético da peça.

Vídeo “Saudade”

Espero por fim que tais reflexões acerca de meu pouco e iniciante trabalho com música e som para audiovisual possam ser úteis, de alguma forma, para os leitores que heroicamente chegaram até aqui, da mesma forma como é útil para mim poder repartir a experiência.

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Este post tem um comentário

  1. Author Image
    Janio Santone

    Caro colega André Luiz, parabens pelo seu trabalho e pela sua criatividade, eu tambem sou músico arranjador e conheço bem as ddificuldades que temos no nosso trabalho!
    Um grande abraço.

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