Na Natureza Selvagem (Sean Penn, 2008)

Por Suzana Altero*

O nome é Christopher Johnson McCandless, mas pode chamar de Alexander Supertramp. Esse é o codinome, o auto-batismo (ou exorcismo!) do garoto que em junho de 1990 abandona toda uma vida já estruturada e enlaça o mundo com um mochilão e com toda ânsia e angústia de um romântico do século XIX, ou mesmo de um Rosseau, que, no caso, encaixa-se aqui muito bem… Em sua aventura, ou loucura sã, tem apenas um destino: Alasca. Por quê? Não sei e, na verdade, não importa.

A história é retratada pelo diretor-roteirista Sean Penn. No entanto, Chris McCandless já havia rendido alguns bons dólares com tal história publicada em revista e livro, “Na Natureza Selvagem”.
De qualquer modo, voltemos…
Alexander Supertramp. Intrigante. O novo nome assumido pelo garoto ao cair na estrada já evidencia uma crise interna, pessoal e tão cara a qualquer espectador com algum coração… Alexander liga-se no nosso imaginário à grandeza – Alexandre, o Grande. E o que dizer de Supertramp? Super… Não, o garoto mesmo já diz que ele não é um super-herói. Mas, no entanto, escolhe esse prefixo, este Super tão ligado à cultura americana de heróis, de respostas mágicas, de liderança, de bom versus mau. No entanto, ele não é Super Man, ele é Super T R A M P ! E tramp traz o peso da palavra vagabundo. Seu codinome, assim, entrega uma pergunta essencial: Quem sou eu?

“Mais que amor, dinheiro, fé, fama, justiça, dê-me verdade.”
de Thoreau e citado por Chris.

A questão não é nova. Nada é novo no cinema ou na vida: tudo acaba voltando às questões que carregamos desde o nascimento do mundo ou da nossa consciência. No entanto, falemos do filme: em Chris McCandless podemos identificar, através do desenrolar da trama, o quanto essa crise está ligada ao questionamento da instituição familiar (aqui vamos nós novamente…).

O que desencadeia a crise, primeiramente, é a descoberta da real história sobre o casamento dos pais. Sua mãe era, na verdade e inicialmente, amante de seu pai, que acaba se separando da primeira mulher e também de seus outros filhos, isto é, abandona-os. Então, do dia para noite, Chris se enxerga como um filho bastardo participante de uma família rodeada de mentiras e construções fantasiosas que acobertam um ato vergonhoso dentro do ideário burguês – a traição, o adultério. Juntamente a isso, temos claramente, na família, o culto capitalista de consumo e o cuidado extremado com “as aparências” que se confronta com os ideais de Chris.

Assim, depois de completar a jornada burguesa (ou quase) de estudar, cursar uma faculdade e se formar, Chris parte do mundo familiar que tanto o machuca, foge das relações humanas (na verdade, das relações familiares…!) e se desvencilha da cultura da posse… Ao menos o tanto quanto pode. “I don´t want a new car. I don´t want anything… These things, things, things…” (fala de Chris).

Em seu percurso ele encontra diversas pessoas, é claro: um casal hippie, um traficante “homem do campo”, um casal de jovens estrangeiros, uma cantora hippie adolescente e um idoso, Ron. E, ao contrário do que se possa imaginar, ele é sociável, alegre e divertido. Chris encanta todos que encontra e, muitas vezes, toca-os profundamente… O que demonstra também o quanto sua angústia está muito mais voltada aos pais do que à relação humana em geral.

A mulher do casal hippie vê nele seu filho, a cantora se apaixona… Ele até mesmo escreve ao seu amigo traficante que está preso. E o velho Ron quer adotá-lo. Tal seqüência, aliás, é um tanto dramática: Ron pede para adotá-lo ao ver que o garoto estava para partir e seguir com seus planos de chegar ao Alasca. Chris, mais uma vez, se distancia de uma relação potencialmente familiar e segue seu rumo.

Inicialmente, ele tenta cortar a relação burguesa com o mundo, não apenas pelo rompimento com as relações familiares, mas também doando seu dinheiro guardado para cursar Direito, em Harvard. Além disso, queima algumas notas e corta cartões. Mas não adianta, não se escapa tão facilmente desse mundo e, logo depois, o viajante vê-se obrigado a trabalhar e chega mesmo a trabalhar num símbolo dessa sociedade que ele grita (de fato, ele grita mesmo no filme) e clama ser tão hipócrita – ele trabalha no Burguer King…

Contudo, ele prossegue e sempre que possível se testa: descer a corredeira de um rio, acampar num deserto e assumir uma solidão (se possível colocar aqui: uma solidão solitária sozinha…). Até que, enfim, o garoto chega ao Alasca, onde mora num ônibus no meio do nada: ele caça, ele escreve, ele lê Tolstoi, Thoreau… Ele se encontra.

Um momento no filme é retomado na cena final em que percebemos que a personagem “se encontrou”. Ron e Chris (“Alex”) conversam sobre a relação deste com seus pais e com o mundo. Chris aponta que a alegria da vida não vem principalmente das relações entre humanos… Ron, referindo-se ao relacionamento de Chris com os seus pais, diz: “Quando se perdoa, se ama… E, quando se ama, as luzes de Deus brilham sobre você.”…e, então, a luz do Sol brilha intensamente…

No final do filme e da vida de Chris temos o personagem com outra idéia… Uma personagem que escreve: “Happiness – only real when shared”. A personagem se encontra e entende, depois de visceral solidão, o quanto as relações humanas são essenciais e fundamentais para se ter alguma felicidade. Entende-se que, mesmo reconsiderando o papel da relação humana, ele ainda acredita que esta precisa se modificar… A personagem deixa de assinar seus escritos como Alexander Supertramp e assume sua identidade, assinando Christopher Johnson McCandless. O garoto, assim, deitado e entre seus últimos suspiros, olha pela janela o céu, o Sol… Então, temos flashes de fantasias de Chris reencontrando seus pais entre planos do brilho do Sol… No final, pois, o jovem perdoa metaforicamente seus pais…

Logo, o filme é mais que uma amostragem de uma aventura ou rebeldia típica jovem versus mundo, é um retrato de um indivíduo em crise que se encontra ao mesmo tempo em que se encontra com a morte (e talvez por causa dela). Essa crise é claramente compreendida por qualquer pessoa que se sinta presa entre valores vazios e relações humanas regidas tão intensamente por uma moral que, de fato, quando desnudada, mostra-se insustentável, mostra-se como um objeto residente entre as “aparências”… E está aí o valor essencial do filme: essa discussão.

Para relatar a trajetória de “Alex Supertramp” e mesmo evidenciar essa mudança interior do personagem, Sean Penn recorre ao conhecido, contudo eficaz, flashback. Temos, na verdade, mostrados a nós intercaladamente, as semanas finais de Chris no Alasca e o início da sua jornada (desde a sua formatura, etc.). Acredito que tal organicidade e trabalho de construção dramática tenha alcançado seus objetivos, o filme, de fato, consegue prender a atenção e parece fazer o espectador participar mais com as idas e vindas no tempo. A organicidade do filme também é revelada pela evidenciação de blocos nomeados tais como capítulos de um livro: nascimento, adolescência, maturidade, sabedoria… Explicando esta escolha, o diretor-roteirista Sean Penn aponta que o uso de capítulos acaba por demonstrar que o garoto vive, em pouco tempo, todas as fases de uma vida natural… Os títulos-blocos do filme mostrariam o quanto as experiências de Chris, que são muitas e profundas, acabam por fazê-lo percorrer toda a trajetória de uma vida sem que, de fato, a viva até a velhice… E, aqui, acredito que a escolha foi feliz. De fato, com essa explicitação de segmentos o espectador vê o filme identificando, mais conscientemente, talvez, o quanto aquela experiência é significativa e o quanto traz amadurecimento… E mesmo com essas separações no filme, todas as partes estão organicamente ligadas e não as sentimos como se fossem cada uma como uma comprovação de uma tese, mas como uma constatação em meio à vida deste rapaz que transcorre na tela.

Usa-se também (e um tanto exaustivamente) a voz over que, no caso, é da irmã de Chris – ela narra não a sua viagem, mas dá uma espécie de diagnóstico do irmão, o que eu acredito não ter sido a melhor escolha para exposições da personagem principal. Sabe-se de experiências passadas do irmão através desta voz que, em alguns momentos, acabou me soando como uma “voz de Deus” um tanto excessiva. As informações que ela nos entrega são essenciais, fundamentais… Mas o uso dessa voz em quase todas (senão todas) as exposições da personagem é cansativo e acaba por torná-la uma voz da Verdade, mesmo que a própria ponha suas palavras em dúvida em algum instante. No entanto, é através dela que temos um histórico de Chris, de suas questões e razões, e é através dela também que se dá a caracterização dos pais.

Juntamente a isso, temos em algumas seqüências uma aura documental, uma aparência de documentário de viagem. Em partes, essa aura contribui muito em momentos que, particularmente, tornam-se emocionantes devido, essencialmente, às personagens que gritam uma realidade na tela – um exemplo é o momento em que Chris e uma cantora adolescente hippie encontram-se com um beato (que encena a si mesmo) em seu espaço-relicário no topo de uma colina, no deserto.

Mas, mesmo com tal aura e com toda crítica aqui relatada à sociedade capitalista, não há dúvida: estamos lidando com um filme clássico, de linguagem clássica. Nós temos um herói individual, uma construção de espaço e tempo “realista”, uma história, um drama, e começo, meio e fim… Uma evolução interna do herói… Mas há toques de rebeldia. Em alguns momentos, o ator olha diretamente para a câmera – um crime num filme que se pretende provocar uma ilusão naturalista e instigar o voyeurismo. Esses olhares são provocadores… Afinal, o filme está denunciando a hipocrisia de relações humanas, em especial, as familiares, e também a cultura capitalista de consumo. Afinal, estamos vendo um filme, produto de uma arte industrial que engole e produz um capital exorbitante. Afinal, os cinemas são freqüentados pela parte consumidora e integrante de tal cultura criticada. Afinal, somos pegos meio que de surpresa por esse olhar e julgados, sem dúvida…

Ainda convém aqui lembrar, antes de encerrarmos esta análise, a escolha de Sean Penn na trilha sonora. Ela realmente impregna – e não no mau sentido. As músicas, compostas e interpretadas por Eddie Vedder, são daquelas que quando chegamos em casa corremos à internet para escutarmos com maior cuidado. A música e as cenas do filme estão entrelaçadas até a alma e o sentido de ambos se amplifica quando juntos… Verdadeiramente, a voz, a letra e o, às vezes, choro instrumental aqui têm um casamento certeiro.

Enfim, e de qualquer modo, vale também acrescentar como uma observação geral e final que é um filme com seqüências tocantes e um trabalho que, particularmente, achei bem realizado: a mensagem está ali e é bem passada… Consegue prender o espectador, provocá-lo, incentivar uma reflexão… A temática é extremamente válida atualmente, visto que lida com questões como o relacionamento entre os seres humanos e a crise de identidade.

*Suzana Altero é graduanda em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

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Este post tem 2 comentários

  1. Author Image
    Mallu

    Grande filme!
    Mostra de uma maneira tão simples a busca pela felicidade e novas experiências.
    Traz tantas sensações boas!!!
    Como a de que ser e estar só nem sempre é tão bom.
    E, como o filme diz, a felicidade só é verdadeira quando compartilhada.

    Tem uma das melhores trilhas sonoras do cinema!

  2. Author Image
    raskol

    Gostei da análise! Alguns pontos são especialmente ricos, como as partes técnicas que só os olhos de um acadêmico cinéfilo poderia enxergar.

    Mas terei de discordar de algumas partes da análise psicológica. Não acredito que McCandless queria cortar qualquer relações familiares. Sua relação com wayne (e ele n era propriamente um traficante, ele fazia algumas gambiarras com antenas de tv a cabo pra captar o sinal e não demorou pra ser solto) era muito próxima e forte, chegando ao ponto de ser considerado a família que ele adotou depois de abandoar seus pais biológicos. O que ele fugia era de qualquer compromisso (aí sim, incluindo os familiares) que pudesse comprometer a sua viagem, pois os compromissos limitam a liberdade.
    E o fato dele ter que trabalhar muitas vezes (até no burger king), não significa que ele tenha tido que abrir mão de seus ideais. Acredito que quando ele doou todo seu dinheiro bancário, queimou o que tinha na carteira e abandonou o carro, era em prol de uma idéia que pode ser resumido na frase que ele mesmo pronunciou: “o dinheiro torna as pessoas cautelosas”. Quando ele precisou comprar seu rifle, a canoa e outros equipamentos, ele não se recusava a trabalhar, inclusive desempenhando funções que poucos de nós se sujeitaria. O seu objetivo não parecia ser sair do sistema, mas adotar a vida mais simples possível, sem ficar se projetando para o futuro, acumulando dinheiro, e sim aproveitado o presente e trabalhando só quando necessitasse.

    E quanto a “feicidade só ser verdadeira quando compartilhada”, embora ele não pretendesse ficar recluso na selva para sempre, ele nunca conseguiu voltar para praticar essa idéia. Mas, de qualquer forma, acho que sua felicidade foi compartilhada. O livro e o filme me mostraram que sim.

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