O Arquivo Rogério Sganzerla: Percursos de pesquisa e processos de criação

Anna Karinne Ballalai[1]

Resumo: Este artigo apresenta uma metodologia de tratamento documental aplicada ao Arquivo Rogério Sganzerla, cujo desafio principal é a preservação das “linhas de pesquisa” empreendidas pelo próprio cineasta, ou seja, as conexões entre os documentos estabelecidas pelo titular do arquivo. Algumas destas “linhas” evidenciam um retorno às referências artísticas e culturais brasileiras dos anos 1930-40, num cruzamento entre a ideologia “nacional-popular” e a tradição romântica do elogio ao gênio.

Palavras-chave: Arquivo Rogério Sganzerla; Preservação audiovisual; Cinema no Brasil; Metodologia de tratamento documental.

Abstract: This article presents a methodology of document management applied to the Rogério Sganzerla Archive, whose main challenge is to preserve the original research themes (and the connections between each document) undertaken by Sganzerla himself. Some of these research themes show a return to Brazilian artistic and cultural references of the 1930’s and 40’s, in a cross between the “national-popular” ideology and the romantic tradition of laudation to genius.

Keywords: Rogério Sganzerla Archive; Audiovisual preservation; Brazilian Cinema; Methodology of Document Management.

Este artigo é o resultado de algumas reflexões e experiências na área da preservação audiovisual, tanto na restauração de filmes como no tratamento documental, em especial nos projetos desenvolvidos no Arquivo Rogério Sganzerla, no Arquivo de Filmes e no Setor de Documentação da Cinemateca do MAM-RJ (Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro) e no Tempo Glauber [2]. O objeto desta investigação é o Arquivo Rogério Sganzerla, no qual venho trabalhando como pesquisadora e documentalista desde a mostra/exposição Ocupação Rogério Sganzerla (Instituto Itaú Cultural, 2010), evento que expôs pela primeira vez itens do arquivo pessoal do cineasta Rogério Sganzerla, incluindo roteiros, desenhos, anotações, fragmentos de textos e filmes, fotografias, correspondência e objetos pessoais [3].

O arquivo pessoal de Rogério Sganzerla reflete suas atividades profissionais, criativas, intelectuais, políticas e afetivas, deixando patente o quanto estas vertentes não se separam, e lançando indícios de como sua obra reflete aspectos de sua vida, e vice-versa. Tratando-se de um arquivo pessoal, com valor histórico ou permanente, cujo titular é uma personalidade do universo do cinema, ligada à criação cinematográfica e literária, portanto artística, este arquivo revela uma multiplicidade de processos de criação e associações poéticas.  Este aspecto demanda um profundo respeito, sensibilidade e conhecimento da vida e da obra de Sganzerla por parte do documentalista, de forma que o manuseio e o processamento dos documentos não venham a “apagar” certas características e informações que possam estar “incubadas” na organização original do arquivo.

O objetivo deste artigo é apresentar uma metodologia de tratamento documental desenvolvida para o Arquivo Rogério Sganzerla, cujo desafio principal é a preservação das “linhas de pesquisa” empreendidas pelo cineasta, ou seja, as conexões entre os documentos estabelecidas pelo próprio titular do arquivo [4]. Verifica-se que algumas destas “linhas” evidenciam um retorno às referências artísticas e culturais brasileiras dos anos trinta e quarenta, num cruzamento entre a ideologia “nacional-popular” e a tradição romântica do elogio ao gênio [5].

 

O Arquivo Rogério Sganzerla

Nascido na cidade de Joaçaba (Santa Catarina), na Região Sul do Brasil, Rogério Sganzerla (1946-2004) precocemente se destacou como crítico e cineasta a partir da segunda metade dos anos 1960. Obteve sucesso e notoriedade, prêmios e projeção internacional, mas enfrentou também períodos de marginalidade, denunciados por ele mesmo, especialmente nos artigos que publicou nos anos 1980, na imprensa brasileira. Além de uma extensa filmografia que compreende cerca de 30 títulos entre longas, médias e curtas-metragens, Sganzerla constituiu um precioso arquivo pessoal, o qual se encontra praticamente inédito e está sob a custódia familiar.

Uma faceta menos conhecida deste crítico, escritor, roteirista, diretor, montador e produtor cinematográfico é seu caráter de pesquisador. Este caráter torna-se mais evidente em seus filmes de montagem, sobretudo aqueles realizados sobre o poeta e compositor brasileiro Noel Rosa (1910-1937), e sobre a presença do cineasta norte-americano Orson Welles (1915-1985) no Brasil, em 1942, por ocasião das filmagens de It’s all true, no contexto da Política de Boa Vizinhança e do Estado Novo.

Mas é na análise do arquivo pessoal de Rogério Sganzerla que seu caráter de pesquisador vem à tona de forma mais expressiva: além dos originais de sua produção intelectual e da vasta documentação nos mais diversos suportes, gêneros e tipologias, encontram-se singulares volumes documentais resultantes de pesquisas históricas, iconográficas, filmográficas e fonográficas realizadas por Sganzerla.

A delimitação destes volumes não é óbvia e impõe um grande desafio ao tratamento documental do arquivo: como preservar o arranjo original e a integridade das “linhas de pesquisa” empreendidas pelo cineasta? São pilhas de documentos muitas vezes sem qualquer separação física explícita, mas que numa análise cuidadosa podem evidenciar um mesmo eixo temático ou a remissão a determinado projeto fílmico ou literário do autor. Onde começa e onde termina cada um desses subconjuntos? Como definir, no caso de uma pilha de documentos aparentemente avulsos, uma unidade documental?

Além disso, a análise do arquivo pode sugerir possíveis relações entre o arranjo original dos documentos e alguns procedimentos de montagem cinematográfica adotados por Sganzerla em seus filmes de montagem. Para citar um exemplo: uma pasta de envelopes plásticos contendo materiais de pesquisa relativa a projetos de Sganzerla sobre Orson Welles, que reúne, em cada um de seus vários envelopes transparentes, anotações manuscritas e datilografadas, fotografias, cartas, recortes de jornais, ilustrações, fotogramas de positivos e diapositivos (alguns de cinejornais cariocas da década de quarenta). Como estabelecer se a reunião de tais documentos num mesmo envelope plástico é aleatória, ou se, pelo contrário, é arbitrária, refletindo, neste caso, usos e funções específicos para aqueles materiais? Sendo mesmo impossível responder a esta pergunta, deve-se considerar a possibilidade de que esta reunião talvez não seja aleatória. Deve-se tentar preservar estas relações entre documentos que tanto podem ser aleatórias quanto podem ser deliberadamente arbitrárias.

Sendo assim, é importante registrar não apenas a listagem de cada um dos documentos que se encontram no interior desta pasta, os quais se relacionam às pesquisas sobre Orson Welles e que compõem o que podemos chamar de um dossiê na acepção arquivística. Faz-se necessário registrar também estes subconjuntos que estão entre o nível de descrição dossiê e o nível de descrição item; a saber, a relação de itens contidos em cada um dos envelopes plásticos desta pasta.

Esta operação meticulosa, em parte, relaciona-se com um princípio arquivístico denominado princípio da santidade da ordenação original, ou princípio do quietat non movere, segundo o qual se deve respeitar o arranjo interno com que os documentos são encontrados. Por outro lado, este excesso de cuidado é coerente com os processos de criação também meticulosos de Sganzerla em seus filmes de montagem.

A reunião de documentos num mesmo envelope plástico poderia talvez estar relacionada a processos de montagem cinematográfica ou “colagem” de imagens filmadas quadro a quadro, numa truca, em table top – recurso estilístico largamente utilizado nos filmes Tudo é Brasil (Rogério Sganzerla, 1997) e Noel por Noel (Rogério Sganzerla, 1980), entre outros. O resultado estético deste recurso é o reenquadramento sucessivo de imagens fixas, criando uma espécie de movimento do olhar, e revelando uma série de facetas ao se “abrir” ou “fechar” os enquadramentos. Direciona-se o olhar do espectador para um ou outro aspecto de uma imagem plana, animando-a, sugerindo ou enfatizando certas relações entre personagens numa mesma fotografia still ou ilustração, ou entre uma ou mais fotografias. Este recurso pode enfatizar a troca de olhares entre personalidades numa mesma fotografia, ampliando as possibilidades de leitura da imagem fixa, e também de imagens fixas entre si, pela justaposição de enquadramentos. Pode-se fazer “contracenar” personalidades da História que sequer se encontraram. Pode-se também promover “encontros” entre personalidades das quais se conhecem relações, apesar de inexistirem imagens em movimento ou fixas que registrem estes encontros. Esta montagem pode recriar e sugerir uma série de relações políticas, poéticas, afetivas, psíquicas e psicológicas. Acrescido das relações com a banda sonora, este efeito é exponencializado.

Então, conhecendo alguns processos de criação do cineasta e recursos estilísticos por ele adotados, pode-se aventar a hipótese de que aquela reunião de documentos num mesmo envelope plástico possa talvez corresponder a uma pequena sequência a ser filmada em table top. São materiais de diversos gêneros (textual, iconográfico, cartográfico, cinematográfico) que na tela de cinema vão assumir uma função ao mesmo tempo icônica, simbólica e indicial. A averiguação desta hipótese, entretanto, demanda um tempo de análise, estudo e pesquisa minuciosa do qual os projetos de tratamento documental geralmente não dispõem, até porque existem objetivos mais imediatos a cumprir [6].

A hipótese acima mencionada é um exemplo do tipo de indagação ou questionamento que não pode ser resolvido imediatamente; mas que, se ao menos for aventada no momento do manuseio do arquivo, pode direcionar a uma ética de preservação das possíveis conexões que alguns subconjuntos possam estabelecer. Esta ética, por sua vez, pode levar à resolução de que é fundamental o registro minucioso deste tipo de informação, mesmo que isto tome mais tempo no processo de tratamento intelectual do arquivo. Registrada a ordenação original, a análise minuciosa pode ficar para um segundo momento, mas as possibilidades de que ela ocorra futuramente ficam desde já preservadas.

A ideia, portanto, é registrar nos níveis micro e macro esta localização de origem para permitir que futuramente estas associações entre documentos possam ser refeitas e analisadas. Mas a esta necessidade de análise profunda, dada a riqueza dos processos de criação do cineasta, alia-se a necessidade premente de realizar a preservação do arquivo, a qual inclui a organização (inventário, arranjo intelectual, descrição arquivística, indexação), a conservação preventiva (higienização, pequenos reparos e restauro de certos documentos), a digitalização e também a difusão.

A metodologia aqui apresentada propõe aliar aos princípios fundamentais da Arquivologia e às modernas normas de descrição arquivísticas e de gestão da informação, um registro meticuloso e tão obsessivo quanto o caráter de pesquisa e criação artística de Sganzerla. Na prática, esta metodologia observa um aspecto sempre frisado pela teoria arquivística, que é a necessidade do conhecimento prévio do arquivo antes da intervenção técnica sobre o mesmo. Entretanto, as políticas públicas relacionadas à preservação documental nem sempre garantem o tempo necessário para o conhecimento prévio do arquivo, e quase sempre os projetos surgem em circunstâncias emergenciais, havendo documentos em risco de deterioração.

Acresce que a dificuldade de obter financiamentos no Brasil para o tratamento documental geralmente leva a uma lógica de hiperdimensionamento dos projetos e à fixação de cronogramas de difícil execução, que forçam a realização concomitante de etapas que por sua natureza deveriam ser sucessivas. Os projetos tendem a abranger todas as necessidades do acervo de uma só vez, porque não há garantias de obtenção de recursos para projetos futuros.

Isto reflete, por um lado, um grande descompasso entre as necessidades de um arquivo histórico e o que realmente pode ser feito na prática. Também evidencia certo desconhecimento por parte dos órgãos financiadores do quão meticuloso e minucioso é o tratamento documental de um arquivo: um trabalho que necessita de tempo, requer ética, pesquisa complementar e extremo rigor. E, por outro lado, nem sempre o profissional de arquivo tem a consciência de quão meticulosa é a criação cinematográfica, e de como se dão alguns processos criativos de um artista/cineasta.

A metodologia de tratamento documental ora proposta, além de observar os princípios de proveniência e de respect des fonds, segundo os quais um fundo de arquivo não deve sofrer dispersão nem desintegração de seus elementos, atenta também para o princípio da organicidade, segundo o qual o documento de arquivo só tem sentido se relacionado ao meio que o produziu. Aliás, seu sentido é ampliado pela preservação do conjunto. Além destes, deve ser respeitado o princípio da reversibilidade, que prevê que toda ação de preservação deve ser passível de ser revertida. Isto implica em registrar a metodologia utilizada, critérios adotados, decisões tomadas, dificuldades e resoluções.

Uma organização “apressada” deixa de registrar e respeitar a organicidade dos documentos conforme os seus usos e funções originais. Isto é, o que pode parecer a princípio a desorganização de um arquivo “virgem”, a partir de uma análise cuidadosa pode revelar uma série de conexões significativas entre documentos, possivelmente estabelecidas pelo próprio titular do arquivo, as quais devem ser respeitadas, recuperadas e registradas. A não observância deste rigor pode levar à perda irremediável deste tipo de informação, que não está apenas no documento em si, mas no entre-documentos.

Assim, a metodologia aqui apresentada consiste no registro rigoroso do arranjo original dos documentos a partir da criação de códigos topográficos da localização de origem, e da digitalização sequencial dos documentos (respeitando e registrando a ordenação original), tal como o arquivo foi encontrado. Independentemente do gênero, tipologia e suporte documentais, estabelece-se uma “linha geral” que preserva a informação da ordenação original nos níveis micro e macro, antes de realizar separações físicas ou intelectuais, e de definir as unidades documentais e os níveis de descrição. O objetivo é minimizar o grau de arbitrariedade da intervenção arquivística e “deixar o arquivo falar”.

Linhas de pesquisa no Arquivo Rogério Sganzerla

Dentre as “linhas de pesquisa” que pude identificar no Arquivo Rogério Sganzerla, destaco preliminarmente:

  1. Relações entre artes, cultura e sociedade na obra de Noel Rosa. Esta linha de pesquisa resultou nos filmes: Noel por Noel (1980) e Isto é Noel (1990).
  2. O impacto artístico e nos meios de comunicação da presença de Orson Welles no Brasil, em 1942, bem como as implicações políticas e sociais deste episódio. Esta linha de pesquisa resultou nos filmes Nem tudo é verdade (1986); A linguagem de Orson Welles (1991); Tudo é Brasil (1997); O signo do caos (2003).
  3. Vida e obra do cineasta Luiz de Barros. Esta linha de pesquisa não resultou num projeto filmado. Pude constatar o interesse manifesto de Sganzerla, numa série de correspondências, de desenvolver um projeto sobre Luiz de Barros, cineasta que atuou por cerca de sete décadas no meio cinematográfico brasileiro.
  4. Investigação e defesa de um Cinema Moderno. Esta linha atravessa todas as demais, e constitui um tema de investigação permanente do crítico/cineasta, verificado tanto na produção textual crítica quanto na realização cinematográfica.

Esta última “linha”, Investigação e defesa de um Cinema Moderno, talvez tenha sido a primeira obsessão do cineasta em termos da pesquisa e investigação cinematográficas. A maior parte dos artigos de Sganzerla da década de sessenta discorre sobre o cinema moderno. Nos anos oitenta, Sganzerla retoma esta teorização, culminando na publicação do livro Por um cinema sem limite (SGANZERLA, 2001), integralmente dedicado à questão do cinema moderno. A análise do livro sugere que certos artigos dos anos sessenta teriam sido reformulados nos anos oitenta, sob outros títulos. Vide, por exemplo, “Noções de cinema moderno” (1965) e “Passagem ao relativo” (1980). Um projeto de livro inédito, datado de 1966, de autoria de Sganzerla, já aponta para o esforço de sistematização destas ideias, conceitos e investigações acerca do tema. Conforme o projeto, que fora remetido ao crítico e historiador Alex Viany, no intuito de ser publicado, o livro seria intitulado A dialética do Cinema Moderno. Certamente, aí se encontra a gênese do livro que Sganzerla publicaria mais de três décadas depois. A obsessão de pesquisa pelo cineasta Orson Welles, que já se manifesta nos primeiros anos da crítica sganzerliana, também estaria relacionada a esta investigação sobre o cinema moderno. Conforme Sganzerla destaca, “Citizen Kane, 1941, de Orson Welles: segundo Truffaut (e quem duvida?), o início e o fim do cinema moderno” (SGANZERLA, 2001: n.p.).

Pode-se pensar o curta-metragem Brasil (1981), de Rogério Sganzerla, como um atravessamento entre as linhas “1” e “2”, de forma mais livre e solta, visto que ao documentar os bastidores da gravação do disco “Brasil” (1981), de João Gilberto, Gilberto Gil e Caetano Veloso, evocam-se referências presentes tanto em um como em outro eixo de pesquisa: o samba, a indústria radiofônica, os cantores da rádio, os filmes musicais carnavalescos brasileiros. Além disso, são utilizadas imagens das filmagens realizadas no Brasil por Orson Welles, em 1942, como o episódio dos jangadeiros e o carnaval carioca. A canção “No tabuleiro da baiana” (1936), de Ary Barroso, remete à célebre gravação de Carmen Miranda, personagem-ícone nos filmes de Sganzerla sobre Orson Welles, e cuja presença é evocada de diversas formas em Tudo é Brasil, Nem tudo é verdade e A linguagem de Orson Welles, seja por imagens de arquivo em movimento, por fotografias e ilustrações, por fonogramas musicais e transmissões radiofônicas, ou por alusões poéticas. Carmen Miranda eternizou músicas dos principais compositores brasileiros, como Ary Barroso e Dorival Caymmi, na rádio e no cinema, e é uma figura chave da Política de Boa Vizinhança do presidente Roosevelt, tornando-se uma grande estrela latina em Hollywood, e tendo convivido com Orson Welles em sua passagem pelo Brasil.

Por outro lado, neste mesmo universo radiofônico, carnavalesco e cinematográfico (dos primeiros anos do filme sonoro brasileiro), estava envolta a figura de Noel Rosa ainda em vida. Noel fez sucesso na rádio e no cinema, compôs trilhas sonoras como a de Cidade-Mulher (Humberto Mauro, 1936). Suas músicas estão presentes em diversos filmes como A voz do carnaval (Adhemar Gonzaga, Humberto Mauro, 1933) e Alô, alô, carnaval (Adhemar Gonzaga, 1936), ambos estrelados por Carmen Miranda e demais estrelas da rádio. A música de Noel, aliás, é presença constante na história do cinema brasileiro, inclusive no cinema de Sganzerla.

Estas duas “linhas de pesquisa” (Noel; Welles) e a terceira “linha” (Luiz de Barros) evidenciam o interesse de Sganzerla sobre a cultura brasileira dos anos trinta e quarenta, em chave diversa da influência tropicalista e do resgate da chanchada realizado nos anos setenta, no período Belair (produtora fundada por Rogério Sganzerla, Julio Bressane e Helena Ignez no Rio de Janeiro, em 1970).

A hipótese é a de que o retorno às referências artísticas e culturais deste período (anos trinta e quarenta) tenha sido uma forma encontrada por Sganzerla de legitimar e dar continuidade à sua própria trajetória artística, que na década de setenta teria sido condenada à marginalidade. Verifico ainda, nesta operação, um cruzamento entre a tradição romântica do elogio ao gênio (Noel, Welles, Jimi Hendrix) e um retorno ao nacional-popular, justamente num momento em que a crítica acadêmica revia os limites ideológicos desta proposta cultural. Este cruzamento resultou numa vertente de produção na obra de Sganzerla que podemos denominar como filmes de montagem, isto é, filmes constituídos em grande parte de materiais de arquivo reciclados e re-significados – estratégia de produção que garantiu a continuidade do trabalho de Sganzerla até Tudo é Brasil (1997).

Referências bibliográficas

AUTRAN, Arthur. Alex Viany: crítico e historiador. São Paulo: Perspectiva; Rio de Janeiro: Petrobras, 2003.

BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Arquivos permanentes. Tratamento Documental. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2004.

COUTINHO, Carlos Nelson. Cultura e sociedade no Brasil. Ensaios sobre ideias e formas. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

GALVÃO, Maria Rita e BERNARDET, Jean-Claude. Cinema: repercussões em caixa de eco ideológica. As ideias de “nacional” e “popular” no pensamento cinematográfico brasileiro. São Paulo: Brasiliense, 1983.

SGANZERLA, Rogério. Edifício Rogério. Textos críticos 1 e 2. LIMA, M. R. de, e MEDEIROS, S. L. R. [orgs.]. Florianópolis: UFSC. São Paulo: Instituto Itaú Cultural, 2010.

____ . Por um cinema sem limite. Rio de Janeiro: Azougue, 2001.

____ . Tudo é Brasil. Projeto Rogério Sganzerla. Fragmentos da obra literária. IGNEZ, Helena e DRUMOND, Mario. [orgs.]. Joinville: Letradágua, 2005.

OCUPAÇÃO Rogério Sganzerla. Catálogo. São Paulo: Instituto Itaú Cultural, 2010.

ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 2005.

VIANY, Alex. Introdução ao cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro,1959.

[1] Mestre em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com a dissertação O ator-em-ato: a dialética ator/personagem em Copacabana mon amour. financiada pelo CNPq. Pesquisadora e roteirista, formada em Cinema pela Universidade Federal Fluminense. Trabalhou no Arquivo Rogério Sganzerla, no Tempo Glauber (entidade custodiadora do Arquivo Glauber Rocha e demais fundos) e na Cinemateca do MAM-RJ (Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro). Pesquisadora do projeto Copacabana Mon AmourRestauro, financiado pelo Programa Petrobras Cultural (2011).

[2] Agradeço a Helena Ignez, Sinai Sganzerla, Djin Sganzerla, Hernani Heffner, Lúcia Rocha (in memorian), Paloma Rocha, Sara Rocha, João Rocha, Joel Pizzini, a confiança e a oportunidade de trabalhar numa série de projetos na área da preservação audiovisual, tendo contato com importantes arquivos brasileiros. Agradeço também às equipes do Instituto Itaú Cultural, da Petrobras Cultural, da Cinemateca do MAM-RJ e do Arquivo Nacional, especialmente a Sérgio Lima e a Beatriz Monteiro.

[3] Várias tentativas estão sendo feitas no sentido de viabilizar o tratamento documental do Arquivo Rogério Sganzerla. Uma delas foi a publicação do livro Tudo é Brasil: Projeto Rogério Sganzerla. Fragmentos da obra literária (SGANZERLA, INEZ, DRUMOND, 2005). A família está mobilizada e vem desenvolvendo projetos para obter financiamentos, e eu tenho colaborado neste sentido. A realização da Ocupação Rogério Sganzerla pelo Instituto Itaú Cultural, em São Paulo, em 2010, deu grande impulso aos trabalhos no arquivo, os quais vêm sendo continuados sem financiamento específico para o arquivo, através do projeto Copacabana mon amour – Restauro financiado pelo Programa Petrobras Cultural. Este período de trabalhos foi importante para realizar um diagnóstico e promover uma reflexão sobre o arquivo, estabelecer diretrizes, estratégias e iniciar a aplicação de uma metodologia de tratamento documental e digitalização de documentos.

[4] Esta metodologia foi desenvolvida especialmente para o Arquivo Rogério Sganzerla e se propõe como etapa preliminar para os trabalhos de arranjo intelectual e descrição arquivística. O objetivo é preservar informações que se encontrem no arranjo e na ordenação original dos documentos, e que possam se perder caso esta ordenação seja alterada inicialmente pela intervenção e manuseio por parte dos arquivistas. Esta metodologia prevê sua execução mesmo com poucos recursos financeiros, e visa anteceder projetos futuros de grande porte e com amplos recursos, os quais permitam realizar a conservação preventiva dos documentos e pequenos restauros. Acredita-se que tal metodologia possa vir a ser aplicada em outros arquivos, sobretudo arquivos pessoais e familiares.

[5] Verifica-se na filmografia e na produção textual de Rogério Sganzerla certa obsessão por personalidades artísticas que se identificariam com o ideal romântico do gênio, entre elas o sambista e compositor Noel Rosa, o cineasta Orson Welles, o guitarrista Jimmy Hendrix e o músico expoente da Bossa Nova, João Gilberto. Tais figuras são marcadas pelo talento precoce e virtuose, e, com exceção de João Gilberto, estão ligadas a episódios fatídicos e trágicos em sua biografia. No caso de Noel Rosa e Hendrix, a morte prematura. No caso de Orson Welles, o boicote à sua promissora carreira de cineasta pelos estúdios norte-americanos após a realização de Cidadão Kane, exarcebado pelos escândalos que envolvem a realização das filmagens de It’s all true, no Brasil, em 1942. A respeito da obsessão de Sganzerla pela ideia do gênio, é elucidativa a leitura de um texto de sua autoria intitulado “Retiro espiritual”, publicado na Folha de S. Paulo, em 29 de dezembro de 1980. Neste texto, o autor descreve a intensa experiência pessoal de ter assistido à performance musical de Jimmy Hendrix no festival da Ilha de Wight, na Inglaterra, em 1970. Sganzerla afirma categoricamente “Minha tese será a de que o gênio existe, sim; embora pouco ou nada fizessem para demonstrá-lo, ao contrário de Hendrix, cuja genialidade estava na cara”. Desde o seu primeiro longa-metragem, O bandido da luz vermelha (1968), Sganzerla é tomado pela indagação “um gênio ou uma besta?”, indagação essa que atravessa boa parte das personagens sganzerlianas, até o seu último longa-metragem, O signo do caos (2003).

[6] Devido a cronogramas apertados e curtos prazos para execução dos projetos de preservação e tratamento arquivístico, não se dispõe do tempo necessário para o exame dos conjuntos e subconjuntos documentais. Por vezes certos conjuntos e subconjuntos acabam por sofrer dispersão e desintegração de seus elementos, caso sejam manuseados por profissionais que não levem em conta a ordenação e o arranjo original, e que não atentem para a necessidade de preservar este tipo de informação.

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