Debora Taño *
Introdução
Partindo dos textos de Robert Stam sobre multiculturalismo, diversos filmes foram pensados como forma de aplicar a teoria ou, ainda, entendê-la a partir de um exemplo concreto de formas de representação de diferentes culturas em um objeto audiovisual. A escolha de Babel se deu não apenas por seu título ser sugestivo às diferenças, mas por ser um filme que aborda questões comuns a diversos cantos do planeta, integrando-os de certa forma e, sobretudo, por ser uma visão de dois mexicanos – o diretor Alejandro González Iñárritu e o roteirista Guillermo Arriaga – dentro de uma produção predominantemente norte-americana. A intenção deste trabalho é observar como são tratados os assuntos expostos referentes aos diferentes povos e, principalmente, a relação que se dá entre eles.
O Filme
Babel , assim como os outros dois filmes feitos pela dupla de diretor e roteirista, Amores Brutos (Amores Perros, no original) e 21 gramas, tratam da inevitável interrelação entre as pessoas, da forma como, mesmo sem perceber, vidas se cruzam e influenciam umas as outras. Babel, entretanto, parte para uma visão global do assunto. Enquanto Amores Brutos acontece principalmente, se não todo, na Cidade do México e 21 gramas nos Estados Unidos, Babel acontece simultaneamente nos Estados Unidos, México, Marrocos e Japão. Assim como nos outros filmes um acidente une as pessoas dos diferentes lugares, mas desta vez de forma mais longínqua, afetando mais a vida de uns do que de outros.
O filme conta a história de um casal que está no Marrocos para ficar sozinho e recuperar a relação após a morte de seu filho mais novo. Enquanto isso, nos Estados Unidos, a babá mexicana cuida dos outros dois filhos do casal, e no Marrocos uma família compra um rifle para matar os chacais que comem suas cabras. O rifle fica com os dois filhos que, duvidando do alcance prometido para as balas, 3km, atiram em um ônibus de turismo. O tiro atinge a mulher do casal. Por conta disso o ônibus para no vilarejo mais próximo, para aguardar a ajuda da embaixada americana. No Japão, uma adolescente surda-muda vive suas questões próprias da idade e a falta de sua mãe. Nos Estados Unidos, a babá decide levar as duas crianças para o México, para o casamento de seu filho, uma vez que os pais delas não voltarão na data combinada, por conta do tiro. A partir destes acontecimentos, as histórias se desenvolvem e as relações entre os países, seja pela política externa ou pelas relações pessoais, vão se fazendo presentes. Ao final, descobre-se que o rifle fora dado a um guia marroquino pelo pai da jovem japonesa, unindo, assim, todos os núcleos da história. O filme, no entanto, não se passa em ordem cronológica, é ao longo do filme que o espectador vai percebendo que muitos dos acontecimentos não aconteceram ao mesmo tempo, mas sim, sucessivamente. O fato das ações serem mostradas como simultâneas será tratado posteriormente.
Representações e Relações
O filme inicia com a parte árabe do filme. Imagens amplas de desertos nos ambientam a paisagem marroquina, assim como um de seus personagens andando pelo deserto com um aspecto tipicamente local – local realmente ou simplesmente a fora de representação comum? Em seguida este personagem chega à casa da família, onde vende seu rifle, e inicia-se a sequência de ações que mostra a relação dos irmãos e do cuidado com as cabras.
Passando para a parte norte-americana, vemos Amélia, a babá mexicana cuidando de duas crianças loiras. Importante notar é o fato de que Amélia fala em espanhol e as crianças entendem perfeitamente, respondendo em inglês. Tal representação mostra o quão natural é a relação das crianças norte-americanas com latinos, sobretudo mexicanos, e quais funções estes ocupam na sociedade estadunidense. No geral, quando vão para os Estados Unidos, latinos exercem funções consideradas menos importantes, como babás, cozinheiras, arrumadeiras, garçonetes, motoristas etc. Entretanto, a relação que se vê entre Amélia e as crianças mostra que, por mais que seja considerada menos importante, é ela quem cuida e participa efetivamente do dia destas crianças, muitas vezes mais do que os próprios pais.
Continuando na narrativa, vemos Amélia conversando com o pai das crianças, que está viajando, e com sua mulher hospitalizada (o que saberemos mais tarde efetivamente) sobre ela poder sair para seu compromisso. Entretanto, mais para frente o casal não consegue voltar a tempo e não encontra ninguém que possa ficar com as crianças, impedindo Amélia de sair para o casamento de seu filho. Esta situação denota o quanto os problemas dos patrões – os norte-americanos – são mais importantes do que os compromissos familiares da empregada – mexicana. Amélia, no entanto, não conformada em perder o casamento de seu filho, decide levar as crianças consigo. Antes disso, porém, a babá tenta encontrar alguém que fique com as crianças, mas nenhuma colega sua pode, pois não é possível convencer seus respectivos patrões de que aquelas crianças loiras são de sua família
No Marrocos, Susan e seu marido, os pais das crianças, pedem algo para comer. Neste momento, fica evidente o nojo que Susan sente do lugar, perguntando se não há nada menos gorduroso, passando álcool em suas mãos e impedindo que o marido usasse o gelo, por conta da procedência da água. É possível perceber a idéia de superioridade que há embutida no pensamento da mulher, uma vez que seu marido em momento nenhum receia em comer algo daquele lugar, assim como os demais turistas – até onde é mostrado – e habitantes. Neste momento, é possível perceber a preocupação do filme em não generalizar esta posição por parte dos norte-americanos, colocando isso como presente, mas não como verdade absoluta para todos eles, na contraposição das idéias da mulher e de seu marido. A superioridade de Susan , no entanto, não fica restrita a este exemplo; Enquanto conversa, ela pergunta ao marido porque estavam ali, com um ar de que haveria muitos outros lugares possíveis e melhores para que um casal fique sozinho. Outro exemplo ocorre quando as crianças se dão conta de que chegaram ao México e o pequeno garoto diz que sua mãe lhe contara que o México é perigoso. Estes três momentos mostram não apenas a consideração de superioridade por parte de Susan, mas seu completo desconhecimento da vida destes locais, gerando um preconceito que é passado aos seus filhos. Preconceito e falta de conhecimento que geram nas crianças um primeiro momento de insegurança ao chegar ao casamento e interagir com os demais. Entretanto, o filme mostra que, talvez justamente por serem crianças, estas idéias não estão ainda cristalizadas o que possibilita a interação e a diversão deles. Mais tarde, durante os preparativos do casamento, elas brincam de pegar galinhas e presenciam Santiago matando uma delas. As duas crianças americanas ficam horrorizadas, enquanto as outras correm atrás da galinha sem cabeça. Este incidente, no entanto, não impede que depois elas voltem a brincar e a dançar na festa.
Partindo para o Japão inicia-se a representação da jovem surda-muda e seus conflitos. A relação com o pai e a com as amigas é fortemente marcada. O filme mostra a relação dos jovens surdos entre si e com outros jovens, sendo esta última complicada por conta da falta de aceitação por partes destes. Ao ser abordada por um rapaz, a jovem tenta se relacionar, mas assim que ele percebe que ela e a amiga são surdas-mudas, ele se afasta. Ao mesmo tempo, a relação do grupo de amigas surdas é comum a qualquer grupo de amigas, com problemas auditivos ou não, sendo do Japão ou de outra parte do mundo. Seus conflitos com os pais, e, no caso da personagem, com a perda da mãe, com jovens de sua idade, com a sexualidade etc. são questões que se veem em muitos outros lugares do mundo. Uma interpretação possível para este núcleo do filme é mostrar que mesmo com suas diferenças estes jovens são como quaisquer outros. Entretanto, um ponto a ser levantado é que estes personagens fazem parte de uma região rica e urbanizada do mundo, assim como o casal americano que está apenas de passagem pelo Marrocos, o que entra em contraste com as representações destes e do casamento em uma região quase rural do México.
Voltando ao Marrocos, inicia-se o drama dos dois garotos que atiraram no ônibus. Vemos a aflição dos dois, depois de o pai contar que uma americana foi morta por terroristas. Esta parte deixa bem clara a relação que se dá entre a visão americana e a visão local dos acontecimentos. Para os americanos o tiro foi um ato terrorista, típico do local, já para a imprensa local foi uma questão isolada de banditismo. A partir daí, inicia-se toda a questão internacional – que é mostrada na televisão da jovem japonesa – de culpar os responsáveis pelo atentado e a forma como o poder norte-americano se impõe. A polícia local inicia as investigações, mas há, em alguns momentos, como a fala de, aparentemente, alguém do governo afirmando que eles encontrarão os responsáveis, sendo que quem encontra é a polícia local, que age de forma violenta, assim como, provavelmente seria, se fosse em qualquer parte do mundo. Esta violência se mostra presente na posição superior da polícia, sendo uma interpretação possível, uma violência por conta da pressão exercida sobre estes policiais para encontrar os culpados e retirar a idéia de terrorismo que macula a imagem do país, afetando-o inclusive economicamente.
Na chegada ao México, vemos o quanto o controle é escasso, no sentido Estados Unidos – México, o que é marcado pela fala do personagem Santiago: “É fácil entrar no paraíso”. Neste momento, o filme nos mostra a entrada do país e diversos elementos presentes ali, como ambulantes, imagens de santos, pessoas andando, barbeiros, engraxates, etc. tudo como se fosse uma visão das crianças que olham pela janela do carro. Esta mesma representação do local acontece no Marrocos e no Japão. No primeiro, a chegada do ônibus no vilarejo mostra as pessoas, casas e ações do local, assim como no segundo os trens, as luzes e a movimentação típicas da metrópole japonesa. Mas um elemento mostrado diferencia Japão e Marrocos – pelo menos os locais especificamente mostrados no filme – de forma brusca; Ao chegar no vilarejo, há apenas um veterinário que pode atender Susan até a chegada da ambulância (que não vem) , precisando dar pontos em seu ferimento, para que ela não sangre até a morte sem qualquer tipo de anestesia, apenas a desinfecção da agulha com fogo. Já no Japão, vemos a jovem indo a um dentista bem equipado e cuidadoso com todos os detalhes. Este ponto não passa sem ser percebido, possivelmente de forma intencional. A diferença de condições é clara, mas, mesmo com as mais precárias, é este cuidado do veterinário que impede a morte de Susan. Ainda com relação à representação do local, o casamento mexicano dá ao espectador uma visão detalhada dos aspectos culturais relativos a este tipo de festa. As músicas, danças, brincadeiras (como a de pegar a galinha) mostram a realidade local ou algo próximo dela.
A trilha sonora contribui de forma precisa para a representação dos lugares e mesmo das sensações dos personagens. A música inicial, no Marrocos, utilizando instrumentos locais, assim como as tipicamente mexicanas e as “modernas” japonesas dão a cada lugar sua cara. Além disso, ponto importante de ser ressaltado, é o momento em que a jovem japonesa vai a uma festa com seus amigos e não ouve a música. Cada vez que a câmera assume a sua visão, em subjetiva, a música é cortada, assim como quando ela sai dali e enquanto anda pela cidade, o filme fica em silêncio. A trilha, portanto, não apenas colabora na ilustração e ambientação, mas também reforça as relações de alguns personagens com o meio externo.
A trama continua, assim como os dramas de seus personagens, até o momento em que, voltando do México, Santiago, Amélia e as duas crianças são paradas na fronteira. Com os documentos destas, mas sem uma autorização dos pais, eles têm que responder diversas perguntas e são barrados. Entretanto, Santiago acelera e foge, atravessando a fronteira, agora como procurado. Depois de dificuldades, sozinha no deserto com as crianças, Amélia é encontrada pela polícia, que a prende. Seu patrão não presta queixa, mas, mesmo assim, ela é deportada, mesmo estando a 16 anos no país, sem poder nem ao menos ter notícias das duas crianças. Enquanto isso, na trama do Marrocos, um helicóptero é enviado pela embaixada americana para resgatar Susan, e os policias acabam matando o irmão do garoto que atirou no ônibus no momento em que os dois e o pai tentavam fugir e esconder o rifle. No Japão, a menina conversa com o investigador, que quer confirmar a história de que o pai da garota dera a arma ao seu guia no Marrocos, mas ela acha que ele quer saber sobre a morte de sua mãe, que se matou.
De forma geral, no final do filme, a família americana volta à sua vida normal. Não vemos o casal de volta, mas sabemos que Susan está se recuperando. A garota japonesa continua com sua vida e as difíceis formas de lidar com a morte de sua mãe. Já mexicanos e marroquinos acabam prejudicados por conta da justiça feita sobre eles. O filme mostra, assim, como a justiça e as relações de poder, no final das contas, privilegiam alguns em detrimento de outros. Não fica clara nenhuma posição que defenda um lado ou outro, até porque a idéia do filme é a relação que se dá entre as pessoas e não colocar, necessariamente, valores sobre elas. Ao final, cabe ao espectador tirar as suas conclusões e, se for de sua vontade, escolher um lado a partir de seus julgamentos.
Como dito anteriormente, as ações mostradas no filme não ocorrem todas simultaneamente. Ao decorrer do filme, vamos percebendo o que veio antes e o que veio depois e montamos a história toda em ordem cronológica apenas depois do filme terminado. É possível que esta construção se dê para mostrar, reforçando, a importância das relações que se dão de forma global. Se o filme fosse construído de forma cronológica, talvez seu impacto fosse menor. Os acontecimentos simultâneos passam a noção de que tudo pode acontecer concomitantemente, que as relações variam e ocorrem ao mesmo tempo e que, por mais que uma ação gere outra, cada elemento da ação tem seu contexto e personagens que vivem e agem simultaneamente. A montagem, desta forma, evidencia a forma que o mundo se vê hoje, onde as informações, acontecimentos e trocas se dão ao mesmo tempo no mundo todo, globalizado.
Possível Conclusão
Depois de analisados momentos significativos no filme no que diz respeito à representação dos diferentes povos e como eles se relacionam, é possível observar que o filme se propõe justamente a unir estas diferentes partes do mundo, tomadas como exemplos dos ditos “quatro cantos do mundo”, a partir de suas diferenças e semelhanças. Cada lugar com suas peculiaridades apresenta pontos em comum com os outros, como a formação e a importância da família, encontradas nos quatro lugares, e os anseios sexuais dos jovens – a japonesa que se incomoda por ser virgem e o irmão mais novo marroquino que espia sua irmã se trocar. Ao mesmo tempo, apresenta as diferenças contrastantes, como de costumes, condições e formas de vida e até mesmo as questões geográficas. Aparentemente, o filme representa cada local o mais fielmente possível e o faz também para que seu objetivo de mostrar as semelhanças e diferenças seja mais claramente visto, uma vez que elas realmente existem.
O fato de a história ser contada a partir do olhar de dois mexicanos que trabalham também nos Estados Unidos coloca mais uma questão que é mostrada de forma até mesmo bonita na relação que se dá entre Amélia e as crianças e o desfecho de sua história. Pertencendo a uma realidade de terceiro mundo, os criadores acabam tendo um olhar diferente do hegemônico, dando-lhes espaço para criar filmes como este, que incluem cada região com as suas singularidades, tentando não subvertê-las a uma visão comum e simplificada. É possível que em alguns momentos do filme isso aconteça, mas, no geral, o que se vê é a diferença, e não uma tentativa de igualar tudo em uma única visão.
A possível conclusão que se pode tirar é que, no geral, a idéia do filme era realmente abarcar estas diferenças como elas são e mostrar o quanto, mesmo com as diferenças, as semelhanças existem, afinal, são todos seres humanos vivendo em uma mesma época de mundo globalizado. Além disso, vemos que os pequenos cosmos dentro de cada sociedade são o que a formam e influenciam os demais, seja na cidade ao lado, ou do outro lado do mundo. Talvez seja justamente neste ponto que o filme se construa, e a partir dele forma-se a idéia de que no mundo de hoje, por mais que tenhamos nossa vida, no micro, com as nossas próprias características, outras pessoas também têm as delas, com as suas peculiaridades. O mais interessante é saber conviver e perceber que as muitas visões existem para enriquecer tanto o particular quanto o todo, e que o cinema é uma forma de mostrar às outras partes do mundo cada uma destas visões ou mesmo uni-las, fazendo com que uma complemente, e não sobreponha a outra.
* Debora Taño é graduanda em Imagem e Som pela UFSCar – Universidade Federal de São Carlos
Bibliografia
– BORDWELL, David. Estudos de cinema e as vicissitudes da grande teoria. In RAMOS, Fernão (ed.) Teoria contemporânea do cinema. Volume 1. Senac. São Paulo. 2005. p 25-70.
– STAM, Robert. Multiculturalismo, raça e representação. In: Introdução à teoria do cinema. Papirus Editora. Campinas. 2003. p 294-307
– STAM, Robert , SHOHAT, Ella. 1. Do eurocentrismo ao policentrismo. In: Crítica da imagem eurocêntrica: multiculturalismo e representação. Editora Cosac Naify. 2006. p 37-88
Filmografia
IÑÁRRITU, Alejandro González. Babel. Produção de Paramount Pictures, Paramount Vantage, Anonymous Content, Zeta Film, Central Films e Media Rights Capital. Direção de Alejandro González Iñárritu. Roteiro de Guillermo Arriaga. França, EUA, México, 2006. DVD. 143 min.