Programas da Secretaria do Audiovisual para a televisão (2003-2010)

Laura Bezerra é Doutoranda do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professora substituta do Instituto de Humanidades Artes e Ciências Professor Milton Santos da UFBA. Coordenadora do projeto Filmografia Baiana. E-mail: laurabezerra1@gmail.com

Uma consulta ao site do MinC em abril de 2010 mostrou que, entre os catorze programas em andamento na Secretaria do Audiovisual (SAv), oito se relacionam com a TV[1]. Isto revela uma importante mudança de paradigma na atuação da Secretaria durante o Governo Lula. A televisão, nunca anteriormente contemplada pelas políticas federais de cultura (RUBIM; RUBIM, 2008), passa a ter uma posição central nas ações da SAv.

Este artigo aborda as ações da Secretaria do Audiovisual para a televisão entre 2003-2010. Mesmo consciente das dificuldades inerentes à análise de um processo em andamento, parece-nos importante iniciar uma primeira sistematização de dados, que, mesmo que ainda incompleta, possa talvez impulsionar discussões num momento de mudança de governo.

Uma “nova” SAv: novos desafios, novos enfrentamentos[2]

Ao assumir a Secretaria de Audiovisual em janeiro de 2003, o cineasta Orlando Senna, já traz consigo um esboço de política para o setor, que tem entre seus pontos principais a necessidade de se pensar o audiovisual como um todo. Este “esboço” é o Relatório do Seminário Nacional do Audiovisual, que aconteceu em dezembro de 2002 e contou com a participação de diversos representantes setoriais, entidades de classe e associações profissionais[3].

Um dos grandes temas que perpassam o documento é a relação com a televisão. Os participantes apresentaram demandas como a abertura da grade de programação das TVs para a produção independente, a regionalização da produção e a implementação de uma rede pública de televisão. Um forte pleito é a regulamentação do setor como um todo, com a inclusão da TV no âmbito regulatório de uma agência para o audiovisual.

É com este lastro que o Secretário inicia seu trabalho e, desde o início de sua gestão na SaV, se inaugura um “processo de aproximação das relações entre cinema e televisão, união estratégica para o fortalecimento da indústria audiovisual brasileira.” (MINC, [2007?], p. 8). Esta tentativa de articular o audiovisual como um todo acontece em três frentes: diversos programas e projetos da SAv; a tentativa de implementação da Agência Nacional de Cinema e Audiovisual  (ANCINAV) e a instituição de uma rede pública de televisão. Este artigo se concentra na primeira frente.

Programas da SAv para articulação entre a produção independente e a televisão: primeira fase

Orlando Senna inicia seu mandato reestruturando a SAv e investindo numa maior amplitude das atividades da Secretaria. Esta ampliação do seu âmbito de atuação inclui não somente a regionalização, mas também a democratização da produção, com ações dirigidas a grupos até então excluídos das políticas audiovisuais. Além disso, as políticas desta “nova SAv” começam a considerar e articular os diversos elos do processo produtivo do audiovisual: criação, produção, distribuição, fruição, preservação e formação. Isto representa outra grande mudança, visto que as políticas do setor tradicionalmente se concentraram no fomento à produção.

Os programas DOCTV, Revelando os Brasis, Documenta Brasil, Curta Criança e Curta Animação, lançados nos dois primeiros anos do mandato de Senna, são exemplos deste pensamento integrado, na medida em que, mesmo sendo editais de fomento à produção, incluem também ações de formação e pensam já em formas de exibição. Estes cinco programas buscam formas diversas de articulação com as emissoras de TV, sejam da rede pública de televisão (DOCTV, Curta Criança e Curta Animação[4]), da TV aberta (o Documenta Brasil, realizado em parceria com o SBT[5]), ou da TV por assinatura (Revelando os Brasis[6]).

Logo do DocTV

Ainda em 2003 é lançado o Programa de Fomento à Produção e Teledifusão do Documentário Brasileiro (DOCTV), “objetivando a regionalização da produção, a articulação de um circuito nacional de teledifusão e a criação de mercado para o documentário brasileiro” (MINC;TV Cultura, [2007?]). Com o DOCTV estabeleceu-se um modelo de atuação, que articula o Governo Federal, através da SAv,[7] as TVs públicas regionais, muitas delas vinculadas aos Governos Estaduais, a Associação Brasileira das Emissoras Públicas, Educativas e Culturais (ABEPEC) e a produção independente, representada pela Associação Brasileira de Documentaristas (ABD). Num artigo anterior[8] assinalamos a importância e os resultados positivos das ações em prol do fortalecimento da produção regional e da qualificação dos pólos estaduais – inclusive para a mobilização de recursos locais para a produção de um maior número de documentários. Relevante é também a criação de um circuito nacional de teledifusão, a chamada “Rede DOCTV”, num momento em que a TV Brasil ainda não existia.

O Programa DOCTV não somente teve continuidade, como foi ampliado e aperfeiçoado no decorrer dos anos; na última edição do Programa, a quarta, foram produzidos 55 filmes em 26 unidades federativas, exibidos entre maio de 2009 e junho de 2010. Além disso, O DOCTV Brasil tornou-se uma referência internacional e seu modelo de gestão influenciou diretamente a implantação de programas análogos no México e na Colômbia, assim como a criação de programas supranacionais, como o DOCTV Ibero-América e o DOCTV CPLP, ambos em andamento.

Logo do DocTV Iberoamérica

Como dissemos anteriormente, a partir de 2003 a Secretaria do Audiovisual vai ampliar seu escopo de atividades, passando trabalhar com grupos sociais que até então não eram contemplados pelas políticas audiovisuais. Se o DOCTV é direcionado para profissionais do audiovisual, o Revelando os Brasis, lançado em 2004, é edital para seleção de histórias e produção de vídeos digitais destinado a qualquer cidadão maior de 18 anos, que more em municípios de até 20.000 habitantes. O projeto, realizado pelo Instituto Marlin Azul (IMA) em parceria com  o MinC/SAv e o Canal Futura, está em sua quarta edição e pretende democratizar o acesso aos meios de produção audiovisual. A cada edição do Revelando os Brasis, são selecionados 40 estórias e os autores contemplados passam por um curso de formação básica na sede do Canal Futura no Rio de Janeiro. Após isso, voltam para suas cidades para captação de imagens e finalização dos vídeos de no máximo 15 minutos.

Logo do Revelando os Brasis - ano IV

O Revelando prevê formas de exibição diferenciadas. Uma mostra com os quarenta filmes de cada edição passa no “Circuito de Exibição nas Cidades”, que inclui os municípios com projetos escolhidos e mais 21 capitais. A exibição na TV acontece no Canal Futura, que, produz, junto com o IMA, o Programa Revelando os Brasis, que além dos filmes apresenta também entrevistas com os realizadores; após a exibição no Canal Futura, os programas são disponibilizados para emissoras públicas, educativas e culturais. A partir de 2008, os filmes foram lançados também em DVD, que são distribuídos gratuitamente. Além disso, a coordenação do projeto investe na exibição dos filmes em festivais nacionais e internacionais.

Neste contexto não poderia deixar de referir-me ao Brazilian TV Producers (BTVP), programa de exportação de conteúdo audiovisual, criado em 2004, numa pareceria entre o MinC/SAv, a Associação Brasileira de Produtores Independentes de Televisão (ABPITV) e a Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex). O BTVP participa de diversas feiras internacionais, além de oferecer consultorias e oficinas de capacitação.

Programas da SAv para articulação entre a produção independente e a televisão: segunda fase

Em novembro de 2007, Orlando Senna, deixa a SAv para assumir o cargo de diretor-executivo da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), célula-mãe da TV Brasil.  Silvio Da-Rin, técnico de som reconhecido e, na época, vice-presidente da Associação Brasileira de Cineastas (ABRACI), assume a Secretaria.

O novo Secretário mantém alguns e cria novos programas que procuram a articulação com a televisão, mas a relação agora se dá num espaço mais claramente delimitado: a televisão é vista como um (importante) canal de difusão. Isto fica claro no texto da portaria do MinC que institui o Programa Nacional de Estímulo à Parceria entre a Produção Independente e a Televisão que  tem como meta

“promover parcerias entre as emissoras e programadoras de televisão públicas e privadas e a produção independente de cinema, televisão e  novas mídias,  visando  o desenvolvimento  da  indústria  audiovisual  brasileira  e  a ampliação do acesso da população às obras audiovisuais nacionais.” (Portaria nº 19, 6/5/2008).

Antigos programas como o DOCTV e Revelando os Brasis são mantidos. Agora realizados em parceria com a EBC, o Curta Criança tem seu edital modificado em 2009 e o Curta Animação  é substituído pelo  AnimaTV.  Com a EBC são realizados também os editais Brasília 50 anos[9] e LongaDOC.[10]

Logo do FicTV

Dois novos programas, integrantes do Programa Mais Cultura, trabalham com a questão da inclusão social/cultural. O FicTV, realizado em parceria com a EBC e com o apoio da ABEPEC, visa o desenvolvimento e produção de mini-series “que proponham uma visão original sobre a(s) juventude(s) brasileira(s) das classes C,D e E, desconstruam os estereótipos comumente associados a elas e provoquem a sociedade a debater essas questões” (Edital FicTV 2008). Em abril de 2010 foram divulgados três projetos vencedores;  as mini-séries, com 13 episódios de 26 minutos,  serão exibidas na TV Brasil.

Logo do Nós na Tela

O Nós na tela premiou 20 projetos de documentários ou telereportagens de até 15 minutos sobre o tema “Cultura e Transformação Social”. O edital é “destinado exclusivamente a pessoas físicas integrantes ou egressas de projetos sociais que desenvolvam atividades de formação para realização de obras audiovisuais” (MINC, 2009). A partir de agosto de 2010 os filmes deverão ser exibidos nas emissoras da Associação Brasileira de Canais Comunitários (ABCCom), parceira do projeto.

Silvio Da-Rin ficou na Secretaria do Audiovisual até o final de abril de 2010, assumindo  algum  tempo depois o cargo de Gerente Executivo de Articulação Internacional e Licenciamento  da EBC.  Em 20 de abril de 2010 o MinC divulga nota informando que Newton Cannito, diretor e roteirista de cinema e TV e autor do livro “A televisão na era digital”, assumirá a SAv no mês seguinte. Citada em primeiro lugar entre suas principais missões aparece “debater com a sociedade a criação do canal da Cultura na TV Digital…”[11]

Considerações finais

Fazendo uma retrospectiva da sua atuação à frente do Ministério da Cultura[12], Gilberto Gil afirma que “pensar a função cultural das comunicações” era, desde o início, de fundamental importância. Até o Governo Lula, a televisão permaneceu excluída das políticas federais de cultura apesar de poder ser considerada como “dado cultural avassalador no Brasil” (RUBIM; RUBIM, 2008, p.186). Neste contexto é de enorme importância que o MinC/SAv tenha começado a delinear uma política para o setor e aberto um debate fundamental.   Programas como o DOCVTV e o Revelando os Brasis, só para citar os mais antigos e consolidados, estão tendo um papel importante em prol da democratização e regionalização da produção audiovisual. Novos programas como o FicTV e o Nós na Tela podem, se tiverem continuidade, apontar caminhos para a construção de novos olhares sobre a tão heterogênea população brasileira.

Entretanto, mesmo reconhecendo o grande valor do trabalho do Ministério nesta área, não podemos ignorar que não tivemos um avanço efetivo nas duas outras frentes de relacionamento entre a SAv e a televisão apontadas no início deste artigo. O projeto de criação de uma Agência Nacional de Cinema e Audiovisual (ANCINAV) é engavetado no final de 2004, depois de enorme pressão midiática.  Com o fim do projeto da ANCINAV, a Secretaria do Audiovisual centra seus esforços na criação de uma rede pública de televisão de alcance nacional. A TV Brasil foi implementada, mas perdeu-se uma oportunidade preciosa de se construir uma TV efetivamente pública, na qual a sociedade civil tivesse mecanismos eficientes para deliberar sobre seu desenho e seus modelos de financiamento e gestão. Em segundo lugar, a demanda de regulamentação do audiovisual como um todo, incluindo a TV, também não aconteceu, deixando um enorme vazio que precisa urgentemente ser preenchido. Não seria justo cobrar do MinC a regulamentação e democratização das comunicações do Brasil, tarefa que extrapola o âmbito de atuação do Ministério. Ressaltamos mais uma vez que as políticas do MinC  nesta área merecem grande reconhecimento por sua atuação “inauguradora” (RUBIM, 2008, p. 65).  Mas temos também que sublinhar que a regulamentação do setor continua sendo uma necessidade premente.

Bibliografia

BARBOSA, Frederico. Ministério da Cultura no governo Luiz Inácio Lula da Silva: um primeiro

balanço. In: CALABRE, Lia (Org.) Políticas Culturais: um campo de estudos. Rio de Janeiro : Fundação Casa de Rui Barbosa, 2008, p. 59-85.

BEZERRA, Laura; MOREIRA, Fayga; ROCHA, Renata. A Secretaria do Audiovisual: políticas de

cultura, políticas de comunicação. In: RUBIM, Antonio Albino C. (Org.) Políticas culturais no Governo Lula. Salvador: Edufba, 2010, p. 133-158.

LEAL FILHO, Laurindo Lalo. Uma dívida histórica do Estado com a sociedade. Le Mond

Diplomatique Brasil (Dossiê Confecom), São Paulo, ano 3, nº 29, dezembro de 2009, p. 32.

MINISTÉRIO DA CULTURA. Relatório de Gestão da Secretaria do Audiovisual (Nov/2007 –

Abr/2010). [Brasília, 2010a]. Disponível em: <http://www.cultura.gov.br/site/wp-content/uploads/2010/04/relatorio-sav-gestao-nov2007-abr2010.pdf> Acesso em 04/2010.

_______. Revelando Os Brasis – Ano IV: Regulamento. [Brasília, 2010b]. Disponível em

<http://www.revelandoosbrasis.com.br/>. Acesso em 05/2010.

_______. Nós na tela: Edital de concurso nº 26. [Brasília], 15/09/2009.

_______. FicTV: Regulamento. [Brasília/São Paulo?], 2008.

_______. Relatório de Gestão da Secretaria do Audiovisual (2003-2006). [Brasília, 2007?].

Disponível em: <http://www.cultura.gov.br/site/2008/12/05/relatorio-de-gestao-2003-2006/>. Acesso em 03/2009.

_______; TV CULTURA. Programa de Fomento à Produção e Teledifusão do Documentário

Brasileiro – DOCTV. Balanço de Gestão (2003-2006). [Brasília/São Paulo?, 2007?].

RUBIM, Antonio Albino C. Políticas Culturais do Governo Lula/Gil: Desafios e Enfrentamentos.

In: RUBIM,  A.; BAYARDO, Rubens (Orgs.)  Políticas culturais na Ibero-América. Salvador: Edufba, 2008, p. 51-74.

RUBIM, Antonio Albino C. e RUBIM, Lindinalva S. O. Televisão e Políticas Culturais no Brasil Contemporâneo. In: RUBIM, A.; e RAMOS, N. (Orgs.) Estudos da Cultura no Brasil e em Portugal. Salvador, Edufba, 2008, p.183-213.

SENNA, Orlando. Seminário Nacional do Audiovisual: Relatório. Rio de Janeiro: 2002. Disponível

em <www.cinebrasiltv.com.br/pdf/relatorio.pdf>. Acesso em 07/2010.


[1] Os catorze programas: ANIMATV; Brazilian TV Producers; BR Games; Cinema do Brasil; DOCTV; DOCTV IB; DOCTV CPLP; Documenta Brasil; Fomento à Animação; Pontos de Difusão; Programadora Brasil; Rede Olhar Brasil; Revelando os Brasis; TVs e Produção Independente.

[2] O título faz referência ao artigo “Políticas Culturais do Governo Lula/Gil: Desafios e Enfrentamentos” de Albino Rubim.

[3] O Seminário foi coordenado por Senna e organizado pela Equipe de Transição e pela Coordenação do Programa de Governo do presidente Lula.

[4] Os Editais de Apoio à Produção de Obras Audiovisuais Cinematográficas Inéditas de Curta Metragem, do Gênero Ficção, com temática infanto-juvenil (Curta Criança) e de Apoio à Produção de Obras Audiovisuais Cinematográficas Inéditas de Curta Metragem, do Gênero Animação, com temática infantil (Curta Animação) foram lançados em 2004 pela Secretaria do Audiovisual e desenvolvidos em parceria com a TVE RJ.

[5] O Documenta Brasil é um edital para a produção de documentários feitos em duas versões: uma de 48 minutos para exibição na TV e outra em versão de longa-metragem para o circuito digital. Lançado em abril de 2006, o programa foi fruto de uma parceria entre a SAv, a Associação Brasileira dos Produtores Independentes de TV (ABPITV) e o Sistema Brasileiro de Televisão (SBT). Os recursos, R$ 550 mil por projeto, vieram da Petrobrás através da Lei Rouanet e os quatro documentários selecionados foram exibidos na SBT. Não houve uma segunda edição do programa e este foi o único trabalho conjunto da SAv com as emissoras privadas.

[6] Realizado em parceria com o Canal Futura. Na verdade o Canal Futura  pode ser acessado de diferentes modos, mas é somente acessível em todo o Brasil na TV por assinatura, através do sistema Globosat.

[7] Posteriormente também da EBC/TV Brasil.

[8] Mais sobre o Programa DOCTV em BEZERRA; MOREIRA; ROCHA, 2010.

[9] O edital premiou um documentário de 52’ sobre a Capital Federal, que deverá ser exibido na TV Brasil até o final de 2010 como parte das comemorações da criação de Brasília.

[10] Que prevê a premiação de cinco documentários de longa-metragem, que serão distribuídos em salas de cinema digital e posteriormente na TV Brasil (nacional e internacional) e suas associadas.

[11] “Newton Cannito assumirá a Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura a partir de maio” Disponível em <http://www.cultura.gov.br/site/2010/04/20/novo-secretario-3/>. Acesso em 05/2010.

[12] Entrevista (inédita) com o ex-Ministro da Cultura, Gilberto Gil, em março de 2009 para “Políticas Culturais em Revista”.

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