
Por: Ian Costa
Professor da Universidade Federal de Campina Grande
INTRODUÇÃO
Os estudos de som no audiovisual vêm sendo fortalecidos no Brasil sobretudo a partir de 2009, ano de criação do seminário específico junto à Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (Socine), expondo pesquisas e produções debruçadas sobre aspectos técnicos, criativos, históricos, assim como da sintaxe dos elementos constitutivos da trilha sonora. Salientemos de início que ao tratar deste último aspecto nos referimos ao conjunto de todos os sons que compõem a parte sonora de um produto audiovisual:
(…) a trilha sonora de um filme – que também podemos chamar de “banda sonora” – é composta por três elementos: a voz (diálogos, narração monólogos, etc), os ruídos (efeitos sonoros) e a música. Alguns pesquisadores contemporâneos incluem os silêncios nesta equação (Costa, 2008), já que em muitos filmes o silêncio exerce função narrativa. (Carreiro, 2018, p. 21-22)
A proposição de Carreiro não apenas explana a afirmação anterior, ela é metonímia da proposta de debruce deste artigo: a divisão taxonômica basilar da banda sonora audiovisual apresentada pelo autor denota a tipologia com maior aderência às acepções canônicas como as de Michel Chion (2008), assim como boa parte dos principais nomes da pesquisa neste campo no Brasil, tais como Suzana Reck Miranda (2011) e Débora Opolski (2013). Entretanto, traz à tona a visão de Fernando Morais da Costa (2008) de que o silêncio seria um dos elementos basilares da banda sonora. Carreiro (2018) alude aos ruídos como sendo estes os efeitos sonoros, corriqueiramente colocados como sinônimos nos estudos do som e frequentemente utilizadas ambas as nomenclaturas em referência ao mesmo significado por diversos autores. Especificamente o termo “ruído” é apontado como polissêmico (Sabino, 2021) ou mesmo como possivelmente detrator (Wanderlei, 2020), ao passo que a taxonomia dentro do próprio grupo deste elemento traz uma divisão que engloba os sound effects (Opolski, 2013). O termo em língua inglesa que pode num primeiro momento aparentar ser utilizado para mesma classificação de um conjunto de elementos, uma tradução, é na realidade conceito que daria conta especificamente da utilização de sonoridades não representativas de ações diegéticas, destacando uma ação ou elemento, conduzindo a atmosfera emocional do espectador. Por sua vez, podemos compreender que estas funções empregadas aos sound effects são aplicáveis à esfera musical aos moldes de uma junção perceptualmente coesa das camadas sonoras em consonância à proposição de “sutura” de Gobman (1987). A autora é defensora da tese de que a mistura entre música e efeitos sonoros seria, em grande parte, indiscernível nas trilhas atuais (Costa et al., 2016).
Notemos que existe então uma taxonomia consolidada a respeito dos grupos que compõemcompõe a parte sonora de uma produção audiovisual. No entanto, a mesma está repleta de asteriscos, cognatos e porosidades fronteiriças. A proposta deste artigo é mergulhar no estado da arte desta classificação e expor pontos sinuosos desta por meio da revisão de literatura. Não é nosso objetivo, contudo, refutar teorias ou autores, delimitar os conjuntos ou enrijecer fronteiras, até pelo entendimento da natureza híbrida de alguns elementos. A proposta recai sobre o destaque destes pontos labirínticos para fomentar reflexão e debate aos pesquisadores deste campo de estudo.
Face ao exposto, nas páginas que seguem discutiremos as razões pelas quais o silêncio é incluído por alguns autores como elemento expressivo e por outros não, debateremos o uso dos termos empregados ao conjunto ruído/efeitos sonoros e suas subdivisões, bem como o hibridismo entre as funcionalidades deste grupo com o campo da música. Não nos debruçaremos sobre o conjunto das vozes, ao compreender que este, embora dotado de exceções e “subversões” pontuais de sua natureza, do ponto de vista taxonômico, nos parece mais bem delimitado que as outras questões aqui exploradas.
TRÊS MATIZES E MEIO
Fernando Moraes da Costa (2014), autor de extensa e basilar produção bibliográfica brasileira sobre o silêncio no audiovisual e um dos precursores em língua portuguesa da abordagem analítica e expressiva deste elemento sonoro, enumera diversas abordagens acerca das possibilidades de utilização deste recurso como ferramenta expressiva no audiovisual, valendo-se da análise literária, linguística e até musical, assim como de outros autores que se debruçaram sobre este elemento nas obras cinematográficas. Apesar da defesa deste ponto de vista, o autor provoca: “Dentro do reconhecimento da importância do som nos filmes, há um caminho quase inexplorado. Se pouco se diz sobre o som, quem fala sobre o silêncio nos filmes?” (Costa, 2004, p. 107).
O argumento do autor tem fundamento de raízes metodológicas. Conforme ressaltado anteriormente, a maior parte dos autores clássicos e mesmo os contemporâneos constroem a taxonomia da banda sonora através de uma classificação baseada nos três elementos “palpáveis”, vozes, música e ruídos. Carreiro (2018, p. 22) ressalta que:
A separação da banda sonora em três partes não é aleatória. Ela reflete a divisão de trabalho da área de som cinematográfico que segue o modelo implementado ao longo do período de transição do cinema silencioso para o cinema sonoro (entre 1927 e 1932); Este modelo de produção estava consolidado, em Hollywood, no ano de 1933. Adotado por praticamente todas as escolas cinematográficas ao redor do mundo, o modelo de produção sonora costuma dividir o setor de produção da trilha sonora em três equipes distintas: uma cuida dos diálogos; outra, dos efeitos sonoros (ruídos); a terceira, da música. Mesmo que as equipes de produção sonora têm aumentado e se diversificado bastante, principalmente a partir dos anos 1970, este modelo de divisão do trabalho ainda continua valendo, com pequenos ajustes, em pleno século XXI.
A passagem em destaque evidencia uma variante necessária a esta análise, a de que existe uma faceta amálgama entre o técnico e o analítico nos estudos de som. Miranda (2011, p. 161) ressalta que o interesse acadêmico em som/música no cinema aumentou após a viabilidade técnica de maior integração entre os elementos sonoros, no final dos anos 1970, cujo marco é o conceito de sound design. O termo, cunhado por Walter Murch e Ben Burtt, diz respeito à construção sonora facilitada, sobretudo, pelo avanço tecnológico à época que possibilitava maior controle dos elementos e, portanto, maior experimentação. As proposições de Carreiro e Miranda denotam a união existente entre a visão prática e a teórica. Grande parte dos avanços e proposições dos estudos do som no cinema se dão em comunhão a partir da premissa técnica e padronização do cinema industrial.
Débora Opolski (2013) e Kira Pereira (2020) são reconhecidas pesquisadoras com representativa atuação na produção prática do desenho de som. Ambas se valem da divisão exposta por Carreiro (2018) ao tratarem de temas relativos à produção sonora para o meio audiovisual em suas nuances técnicas e criativas. A não inclusão do silêncio como conjunto expressivo faz mais sentido aqui, pois não existe uma equipe dedicada à “gravação ou mixagem do silêncio” do filme, sendo esta a presença deste elemento normalmente executada na etapa de pós-produção junto à mixagem realizada após a montagem, junto a direção. Ressaltamos, entretanto, que existe possibilidade de previsão do silêncio em etapas de concepção, como no próprio roteiro da obra. Tal premissa poderia ser um indicativo deste recorte taxonômico, advindo da divisão industrial do cinema.
Partindo deste pressuposto, poderíamos afirmar que existem diferentes vertentes da pesquisa em som no audiovisual, uma morfológica, empírica e pautada em uma divisão de gênese prática, industrial, técnica e setorizada, e uma sintática, partindo essencialmente da natureza semântica, diegética e expressiva. É importante salientar que tal proposição não significa dizer que autores com histórico prático ou que se debruçamdebrucem sobre questões técnicas deixem de lado ou não atentem às questões expressivas. Igualmente, autores que identificamosidentifiquemos aderindo à vertente sintática também fazem uso de estudos técnicos, históricos, industriais e mercadológicos. Aqui não nos referimos ao conteúdo em si, muito menos a um determinismo histórico autoral, mas ao ponto de partida para esta visão taxonômica, mutável a depender do objetivo e/ou do objeto.
Uma das possíveis questões que ilustram as afirmativas é que não há negativa em torno do valor expressivo do silêncio na obra audiovisual. O próprio Rodrigo Carreiro (2010) que ilustrou a divisão se dedica a análise do uso do silêncio como um conjunto no filme Cinema, Aspirinas e Urubus (Marcelo Gomes, 2005), ressaltando inúmeras possibilidades expressivas. Para tanto o autor se vale do conceito de valor agregado (ou valor acrescentado) cunhado por Michel Chion, propondo-o como:
O valor expressivo e informativo com que um som enriquece uma determinada imagem, até dar a crer, na impressão imediata que dela se tem ou na recordação que dela se guarda, que essa informação ou essa expressão decorre “naturalmente” daquilo que vemos e que já está contida apenas na imagem e até dar a impressão, eminentemente injusta de que o som é inútil e de que reforça um sentido que, na verdade, ele dá e cria, seja por inteiro, seja por sua própria diferença com aquilo que se vê. (Chion, 2008, p.12)
Deste modo, atrelado à imagem, o silêncio tem “sua importância ampliada como valor agregado, pois auxiliam o espectador a encontrar um significado emocional para aquilo que ele vê” (Carreiro, 2010, p. 8). A necessidade da interação com o visual, entretanto, não configura o cerne diminuto ao silêncio enquanto tipologia, compreendendo que esta é condição fílmica contida no conceito central de audiovisão (Chion, 2008).
Se tal premissa não parte da negação da expressividade, além da raiz do fator de produção a gênese da não categorização pode mesmo estar na sua percepção ou na constatação de sua presença na narrativa. Os filmes estão repletos de silêncios, ora evidentes, sublinhando a dramatização como no grito silenciado de uma mãe durante um tiroteio em Os Intocáveis (Brian de Palma, 1987) ou na anulação das camadas diegéticas em Touro Indomável (Martin Scorsese, 1980), ora de modo mais sutil, coexistindo aos demais grupos sonoros:
É necessário esclarecer que, sendo o cinema um meio que se serve de três matizes sonoras, não é preciso, para que se instaure um momento de silêncio, que haja a ausência de todos eles. Há música sobre o silêncio da voz de Pacino, assim como não se interrompem os sons ambientes do restaurante na sequência de O Quarto do Filho, mas o fato de não haver uma ausência total de sons não impede que se reconheça o silêncio da voz. (Costa, 2004, p. 111)
É notável que a dificuldade do silêncio em ser compreendido como um destes matizes perpassa a esfera técnica e, salvo nos momentos de ênfase, também no caráter de percepção, da escuta do silêncio. Entretanto, lembremos que este último fator poderia ser associado ao “princípio de inaudibilidade”, no qual, conforme Gorbman (1987), a música não seria percebida conscientemente, mas influenciaria na percepção do todo. A questão é se o silêncio não faz o mesmo em diversos momentos, até mais que a própria música.
Deste modo, compreendemos que não há incoerências nas classificações dos autores aqui apresentados, todas integram conformidade às perspectivas em que são construídas e aos propósitos que visam atender. Se é evidente que existe significação e função sintática, assim como possível reconhecimento morfológico do silêncio, pelo prisma analítico, concluímos que este deveria ser entendido enquanto um grupo dessa taxonomia. Entretanto, do ponto de vista técnico, esta afirmativa não faz tanto sentido. Assim, poderíamos chegar a um meio termo e parafrasear Altman (1992), afirmando que a tipologia do som no audiovisual é composta por três grupos e meio.
RUÍDO NO RUÍDO
Existe uma aparente ambivalência entre aquilo que é chamado de ruído ou efeito sonoro. Os termos podem ser, em primeiro momento, apontados como sinônimos. Opolski (2013; 2018) e Carreiro (2018) denominam tal grupo enquanto efeito sonoro. Chion (2008), Costa (2014), Kassabian (2003) e Pereira (2020) chamam de ruído. Esta nomenclatura, entretanto, pode não ser tão inofensiva e o sentido pode ser radicalmente alterado de acordo com seu emprego.
Iniciando a apresentação dos componentes deste conjunto, tal atividade comumente se dá por eliminação. Ao referirmos às vozes, música e mesmo ao silêncio, o espectador rapidamente será capaz de identificar tais elementos. Assim, aquilo que não estiver em um desses territórios será efeito sonoro. Neste campo teremos novamente que permear morfologia e sintaxe para compreender a taxonomia.
Do ponto de vista técnico, Opolski (2018) faz uso da exclusão para elucidar os elementos pertencentes ao campo dos efeitos sonoros, retirando vozes e músicas:
Compõem os efeitos todos os outros sons acrescentados ao filme que não são, necessariamente, gravados em sincronia com a imagem. Alguns autores incluem foley na categoria dos efeitos. Porém, essa inclusão acontece quando do uso generalizado do termo: todo som que não é música, nem diálogo é efeito sonoro. (OPOLSKI, 2018, p. 199)
¹Segundo Opolski (2013), Foley seria a técnica de recriação de sons relativos aos movimentos humanos e aos objetos das cenas em sincronismo com a imagem. A gravação posterior dos sons, além de permitir detalhamento sonoro, gera possibilidades para a criação artística e invenção de novos sons que auxiliem a narrativa da história (nosso destaque).
A passagem acaba por demonstrardemostrar um entrelace que necessita ser detalhado para o alcance de sua compreensão: Quando a autora evidencia a não necessidade de sincronia faz jus ao fato de que as sonoridades miméticas às ações visualizadas são unificadas graças ao que Michel Chion (2008) denomina como síncrise, conceito forjado a partir da justaposição dos termos “sincronismo” e “síntese”, evidenciando que independente da lógica, a coincidência de eventos imagéticos e audíveis concebe percepção de associação unitária destas partes, o que permite que sons criados posteriormente – por vezes a partir de fontes totalmente distintas da natureza mimética da intencionalidade – sejam entendidas quanto resultantes das fontes associadas pela visão. Entretanto, sendo o foley um termo relacionado ao processo de produção laboral, o caráter técnico acaba por se fundir à semântica a partir da divisão proposta por Opolski (2018) que mescla o aspecto sincrônico à diegese, organizando a imprecisão de Burtt:
Penso o som entre como literal e não literal. O lado literal seria como os diálogos, quando você vê alguém falando. Por outro lado temos a música como não literal – uma coisa muito abstrata, uma artificialidade, um estilo. Em algum lugar entre os dois estão os efeitos sonoros. Às vezes você quer que os efeitos gravitem em direção ao lado literal, mas você tem que ser muito seletivo porque não consegue ouvir tudo o que está na tela. (BURTT apud SONNENSCHEIN, 2001, p. 197, tradução nossa)²
² I think of the sound as being literal and nonliteral. The literal side is like dialogue, when you see someone talking. On the other hand, you have music as the nonliteral – a very abstract thing, an artificiality, a style. Somewhere in between the two are the sound effects. Sometimes you want the effects to gravitate toward the literal side, but you’ve got to be very selective becauuse you can’t hear everything that’s on the screen.
Para a autora, os efeitos sonoros se dividem em backgrounds (BGs), entendidos enquanto as ambiências e sons não sincrônicos dentro da diegese; hard effects, decorrentes de ações dentro do universo narrativo, miméticos; sound effects, sons indiciais, não representativos das ações. Enquanto os hard effects conferem credibilidade e realismo às ações, pelo sincronismo on frame que podemos relacionar à síncrise, a indicialidade dos sound effects os aproxima potencialmente da esfera musical e de relações de natureza subjetiva. A divisão incide sobre o campo da técnica, vista a necessidade de sincronismo dos hard effects, assim como na própria natureza das sonoridades, mas a partir dos sound effects e dos BGs teríamos uma construção que incidiria no aspecto semântico e influenciaria, inclusive, seu modo de produção.
Apesar da divisão ser clara e bastante eficiente no que se propõe, voltemos nossa atenção ao fato de que o domínio dos “efeitos sonoros” contempla uma divisão chamada “sound effects”, termos linguisticamente semelhantes, em idiomas diferentes. A nomenclatura em língua inglesa, advinda da cadeia produtiva hollywoodiana (sobretudo voltada à mixagem), tem raízes remetentes aos primórdios das tentativas de sonorização do cinema silencioso. Entretanto, termos cognatos podem causar confusão em quem não estiver familiarizado à terminologia ou não captar o contexto de seu uso. O perigo desta mistura terminológica, no entanto, parece-nos diminuto quando comparado ao ruído polissêmico que a denominação “ruído” pode trazer.
Sabino (2021) aborda diversas conotações para utilização do termo, relatando que poderia abarcar o significado de algo errático:
Quando reflito sobre os sons que me circundam e me perseguem no ambiente onde moro, percebo que todos eles podem ser de certa maneira considerados ruídos. Um ventilador já cansado de uso, o terrível zumbido dos mosquitos, um ar-condicionado que parece alçar voo, os intermináveis e rotineiros carros de som com suas propagandas que anunciam produtos intercalados com hits do momento que ficam na sua mente, as músicas gospel que minha vizinha escuta e suas preleções no filho. Quando estou colocando meu bebê para dormir, parece que muitos dos sons que geralmente não me incomodam durante o dia se tornam muito mais contundentes. Qualquer estalar involuntário das pernas pode me fazer perder um trabalho de horas, que é fazer com o que o neném durma. (Sabino, 2021, p. 118)
A autora apresenta uma vasta gama de sentidos atribuídos ao termo ruído, desde o apontamento sinônimo e genérico às sonoridades à sua volta, passando por representatividade social e juízo de gosto. Chama-nos atenção o sentido de mal funcionamento, incômodo, remetendo predominantemente a algo negativo. Neste sentido, Wanderlei (2020) propõe:
Embora o erro esteja associado à ideia de falha, de mal funcionamento de um sistema, e o ruído seja essencialmente parte de qualquer corpo, estrutura, enfim, universo expressivo (o que aparentemente faria do primeiro um “defeito” e do segundo um “efeito”), esses dois conceitos não estão assim tão distantes. (Wanderlei, 2020, p. 159)
A colocação da autora demonstra a conotação negativa do termo ruído. Mesmo que com função de “efeito”, como coloca, carrega proximamente o sentido de erro. Sob o prisma da técnica, ruído é algo que está em oposição ao sinal, uma taxa de perda de informação apresentada nos materiais de gravação e transmissão de dados, corroborando com proposições de Schafer (1992) do ruído como detrator, interferência.
É compreensível, entretanto, que o ruído como interferência carregue possibilidades criativas tal qual 4 ’33 “4’33” de John Cage que ao mesmo tempo dialoga com sua evidência através do valor expressivo do silêncio. Em mesma via, múltiplas estéticas do ruído podem ser averiguadas diante, por exemplo, da faceta do incômodo proposital, da transmissão de alteração de um estado de espírito através de distorções de sonoridades na diegese e na música, ou mesmo “certo grau de ‘sujeira’ na apresentação sonora capaz de reforçar a credibilidade no estatuto amador daqueles registros” (Carreiro, 2021, p. 59), como o faz o gênero Found Footage. Tais usos carregam em si a face mais nítida e inequívoca do termo ruído. Para sermos metalinguísticos poderíamos afirmar que o perigo na confusão deste termo é o ruído de comunicação que ele possa causar ao inferir que se trate de uma sonoridade indesejada, errática, incômoda e/ou não proposital.
Diante da polissemia apresentada, talvez então “ruído” não seja o termo mais adequado da língua portuguesa a nomear este conjunto expressivo, devendo ser utilizado com muita cautela, nos parecendo mais seguro tratar este conjunto sob a alcunha de “efeito sonoro”. Entretanto, existe certa imprecisão nesta denominação ao refletir que, se “efeito” é por si o resultado de uma causa, de algo que o tenha provocado, então as vozes seriam o efeito dos falantes, as músicas seriam o efeito de uma ação instrumental ou sintética de justaposição das melodias, harmonias e ritmos. Em ambos os casos há intencionalidade ao dispor dessestais elementos e, portanto, causar no espectador algum efeito através da dimensão sonora.
As questões conceituais subvertem não apenas a ordem da nomenclatura, mas da funcionalidade e identificação dos elementos sonoros. A prerrogativa do envolvimento interseccional entre composições e efeitos sonoros aponta às contribuições de John Cage (2019) e Pierre Schaeffer (2010) no uso de ruídos como integrantes de um universo sonoro e potencial matéria-prima na construção musical e desemboca em direcionamentos delimitados na alegoria do envolvimento sinuoso entre a dimensão musical e os efeitos sonoros. Se para Kassabian (2003) existiria uma evaporação nas fronteiras e hierarquias entre ruídos e música, a afirmação de Opolski (2018, p. 206-207) ao propor que os sound effects “ocupam a mesma função que a música: são sons criados com objetivo dramático e narrativo para determinada montagem de imagens” ratifica a latente transgressão taxonômica e o processo de hibridismo destes conjuntos sonoros.
EFEITOS SONOROS, MÚSICAS E FRONTEIRAS
A divisão categórica da música no audiovisual pode ser compreendida de maneira mais sucinta que os grupos anteriormente discutidos. Chion (2008) divide-as em “música de fosso” e “música de ecrã”:
Chamaremos música de fosso aquela que acompanha a imagem a partir de uma posição off, fora do local e do tempo da ação. Este termo faz referência ao fosso da orquestra da Ópera Clássica. E chamaremos música de ecrã aquela que emana de uma fonte situada direta ou indiretamente no lugar e no tempo da ação mesmo que esta fonte seja um rádio um instrumento fora de Campo. (Chion, 2008, p.67)
Compreendemos então que a música de ecrã proposta por Chion seria aquela diegética, enquanto a de fosso seria a extra-diegética. Embora não raras as transições diegéticas das sonoridades, a questão em torno da fronteira não diz respeito ao que ocorre nesta subclassificação do grupo das músicas, mas relativa à porosidade e hibridismos de uso entre este elemento e os efeitos sonoros, sobretudo quando tratamos das esferas extra-diegéticas: música de fosso e sound effects.
Com o intuito de classificar os princípios da composição musical no Cinema Clássico, Gorbman (1987, p. 73) enumera diversas diretrizes que alicerçaramalicerçavam as partituras deste recorte, das quais destacamos os princípios da “Invisibilidade”, em que o aparato da música extra-diegética não deve ser visível; “Significante de emoção”, imprimindo determinada conotação emocional ao enredo; “Marcação da narrativa”, servindo como marca para transições como quebras espaço-temporais ou ilustrando eventos narrados; e, talvez o mais importante, a “Violação das diretrizes anteriores”, defendendo que a composição para um filme pode violar qualquer dos princípios listados, considerando que a violação está a emprego de outros princípios.
As proposições da autora, embora em alguns pontos não se sustentem na atualidade (sobretudo quando relaciona a subordinação da música às imagens e às vozes), ilustram nos pontos destacados fatores que podemos igualmente remeter à utilização dos sound effects, uma vez que estes, para Opolski (2018, p. 208), teriam três possibilidades básicas de uso: “(1) em conjunto com efeitos visuais diversos para reforçar momentos de irrealidade”, o que podemos remeter à materialização da subjetividade, como emoções e estados de espírito, logo, ligados ao significante de emoção; “(2) sublinhando títulos, cartelas e créditos, para estabelecer sonoridades temáticas relacionadas à história do filme”, apontando assim ao princípio da Marcação da Narrativa; “(3) reforçando foley e hard effects para adicionar impacto e intensificar climas de suspense, tensão, alegria etc.”, mais uma vez ligado ao Significante de Emoção. E, portanto, se sãos sound effects, não há fonte sonora diegética, logo, está de acordo com o princípio da Invisibilidade. Assim como, se transcendem a sua razão de ser, os efeitos sonoros invadem o campo que antes seria da música, algo que podemos entender como o princípio de violação de diretrizes consolidadas na linguagem cinematográfica.
A sonorização no cinema silencioso ficava a cargo de mecanismos improvisados durante a exibição dos filmes, tanto na esfera da música quanto dos efeitos sonoros e, em ambos os casos, isto incorria em problemas de sincronização, causando possíveis quebras de síncrise. Pereira (2020, p. 55), salienta:
A partir do cinema sonoro estas funções puderam se consolidar, e com a possibilidade de precisão sincrônica a música passou a ser usada não apenas para estabelecer uma leitura emocional para a cena de modo geral (romance, medo, ação, etc.), mas pôde também delinear cada nuance de emoção, instante a instante. A música assumiria neste período o papel similar ao dos ruídos, pontuando os movimentos das personagens principais e destacando o que era importante para a compreensão da narrativa.
A partir desta sincronização seriam instituídas diversas linguagens para uso conjunto do sonoro e o imagético, dos quais surgiriam os códigos aos quais Gorbman (1987) se debruçou em relação à música e Opolski (2018) acerca dos efeitos sonoros. Mas a partir de mudanças tecnológicas, culturais e experimentações artísticas essa lógica se converteria mais uma vez:
(…) grande mudança viria a partir da década de 1970 onde – impulsionados pelo avanço técnico do som estereofônico e também pela chegada de uma nova geração de cineastas e técnicos que trazem novas referências para o cinema industrial – alguns filmes passam sistematicamente a “embaralhar” os papéis estabelecidos para sons e música, e aproximá-los. De um lado, alguns filmes passam a fugir das composições sinfônicas típicas das décadas passadas e adotam estilos musicais mais modernos e que podem ser considerados “ruidosos” (como o jazz, a música popular, a música eletrônica e, em alguns casos, a música concreta e eletroacústica). De outro, os ruídos assumem em determinadas cenas um caráter mais expressivo distanciando-se de sua obrigatoriedade de verossimilhança e ganhando um maior protagonismo dentro da trilha sonora. (Pereira; Miranda, 2016, p. 176)
Diversos casos de usos híbridos de efeitos sonoros e músicas se deram ao longo da história. Se era comum o uso da música para enfatizar sonoridades diegéticas na época em que era tecnicamente difícil (e caro) produzir os respectivos efeitos, filmes como Blade Runner (Ridley Scott, 1982), Dunkirk (Christopher Nolan, 2017) e The Sound of Metal (Darius Marder, 2019) demonstram quão musicais podem se tornar estes efeitos e indissolúveis as camadas de efeitos e música. Roberta Coutinho (2021) evidencia como os efeitos sonoros podem se comportar tão bem com funções essencialmente ligadas à música que técnicas como o leitmotiv, tão difundido ao longo da história do cinema, podem ser encontradas a partir de um sound effect de natureza obtusa em um filme de LucreciaLucrécia Martel e remeter a um sentimento de estranheza, igualmente oblíquo, sem deixar de atender aos mesmos princípios musicais narrativos empregados por Richard Wagner em óperas do período Romântico.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O que entendemos como a taxonomia da banda sonora parece ter fronteiras menos rígidas. Mergulhar na música, nos ruídos e no silêncio faz parte do questionamento de certos paradigmas. Estas breves reflexões acerca da taxonomia da banda sonora evidenciam que existem não erros ou imprecisões, mas curvas um pouco mais fechadas que exigem atenção no percurso, o que entendemos como causa de um campo de estudo em desenvolvimento é ume um processo que se debruça sobre um organismo vivo que é o cinema e sua linguagem.
Observamos quão fluidas podem ser as concepções ao tentar compreender o porquê da inclusão ou não do silêncio no aspecto tipológico. As propostas de classificação abordadas sob o viés morfológico ou sintático estão de acordo com o objetivo das pesquisas e seus autores. Mesmo que pautadas em um modelo de linha de produção, é notório que os pesquisadores que a propõem são partidários e conscientes da amálgama semântica que é a construção do som no cinema. Uma visão não descredencia a outra, mas talvez seja imperioso, assim como Carreiro (2018), sempre destacar a existência de mais de uma vertente deste pensamento.
Destacamos ressalvas a usabilidade do termo “ruído” de modo indiscriminado para fazer referência ao conjunto das sonoridades ao qual é relacionado, reconhecendo o quanto pode se valer de seu próprio sentido nesta comunicação, bem como compreendemos que “efeito sonoro” não transmita nem limite efetivamente o significado desta acepção. Não propomos aqui nomenclaturas específicas ou concretas revisões, mas é nosso objetivo fomentar o debate em torno da forja de algumas questões que talvez atendam aos requisitos sem margem de imprecisão, assim como quando nos referimos às “vozes” ou à “música”.
Da forma que é passível de hibridismo a percepção da música e dos efeitos sonoros, o mesmo ocorre com esta classificação. Se diversos autores e filmes demonstram que a fronteira entre partituras e sonoridades não musicais podem incorrer em expressividades similares, do ponto de vista semântico poderiam compor uma nova categoria ou uma pertencer à outra. Contudo, assim como o silêncio na visão técnica, isto nem sempre funcionaria. A fluidez da taxonomia da banda sonora mostra quanto o cinema consegue modular sua linguagem dentro das mesmas variáveis.
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