Antecedentes históricos e estéticos dos filmes de ação de Hong Kong

Alita Sá Rego é Doutora em Comunicação e Cultura diplomada pela ECO-UFRJ. Atualmente está realizando a pesquisa de pós-doutorado Imagens sensoriais digitais e suas narrativas: a produção de material didático audiovisual para os adolescentes da periferia do Rio de Janeiro no século XXI, na UERJ.

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A mútua influência entre os modos ocidentais e orientais de estar no mundo se refletiu no cinema asiático. Os formatos narrativos de alguns realizadores da China insular, que compreende Hong Kong e Taiwan, ressoam os gêneros importados tanto de Hollywood quanto da Europa do pós-guerra. No entanto, eles mantêm algumas características que refletem os modelos cognitivos tradicionais de seu país. No contexto dos anos 60, é possível apontar três  realizadores asiáticos que criaram os principais códigos daquilo que poderia ser considerado os elementos formais básicos das imagens do cinema na China Insular, que vão romper com a lógica do cinema narrativo ocidental produzido em Hollywood: o japonês Seijun Suzuki e os chineses Chang-cheh e King Hu, ambos de Hong Kong. Atualmente, podemos detectar nos filmes de Tsui Hark, diretor e produtor da mais ocidental ilha da China, a forte influência dos três realizadores. Hark é um dos raros cineastas de Hong Kong que freqüenta os festivais internacionais. Ele tem como princípio fazer filmes para o mercado ao mesmo tempo em que faz experiências de linguagem.

Seijun Suzuki

Nos anos 60, o japonês Seijun Suzuki dá primeiros passos na criação dos códigos formais dos filmes sobre a Yakusa (a máfia japonesa), uma herança dos filmes de gangsters de Hollywood que inundaram as telas do Japão a partir de 1929. De acordo com o mito, a Yakusa surge como uma sociedade secreta formada por samurais desempregados, jogadores e integrantes de brigadas paramilitares do século XVII. Mas, nos anos 60, os filmes do gênero se ocidentalizam nos moldes de Hollywood, com perseguições de automóveis, tiroteios e mulheres fatais. As imagens criadas por Suzuki têm um rigor estético pictórico mais próximo dos mangás[1] do que do próprio cinema. Planos com enquadramentos inesperados apresentam um cenário modernista, minimalista e ocidentalizado, realizado obviamente em estúdio. A composição está baseada em uma iluminação artificial sobre cores irreais e contrastantes na geometria da arquitetura e da localização espacial dos objetos. Os espaços são construídos pela luz e podem estar desconectados do espaço diegético, sem nenhuma referência espacial material. Por exemplo: num ambiente azul, o close do personagem pode ser enfatizado por uma luz vermelha (Le Vagabond de Tókio, 1966). Suzuki desrespeita o eixo de 180º e desorienta o espectador com a inversão de direita e esquerda manipulando a temporalidade no interior do próprio quadro, sendo usada para tal uma câmera lenta praticamente imperceptível. Além disso, os chineses fogem do realismo utilizando sombras chinesas, alto contraste e tela monocromática. Apesar de romper com o realismo ocidental, os filmes mantêm a estrutura narrativa típica dos filmes noir americanos, com uma intriga e personagens indefinidos que defendem valores tradicionais.

Chang Cheh

Também na década de 60, Chang Cheh realiza filmes nos quais os personagens são heróis trágicos, cuja morte é decorrente justamente de seus atos de heroísmo. Eles possuem corpos sobre-humanos: pulam, saltam, escalam paredes, voam e são capazes de lutar contra centenas de homens, mesmo estando com o corpo transpassado por golpes de armas[2]. O diretor explora posturas e posições de luta. Estas começam com planos gerais fixos que localizam o herói em seu contexto e se desenvolvem em enormes planos seqüência, realizados, muitas vezes, com câmera na mão. As mudanças de enquadramentos são realizadas com zooms súbitos e radicais[3] para destacar objetos, pessoas ou feridas, criando o efeito de “veracidade” em cenas absurdas, como quando o herói luta contra dezenas de inimigos com um machado enfiado na barriga. Movimentos de câmera supervelozes, que não levam em consideração o eixo de referência. Cheh também interfere na temporalidade interna do plano, através da câmera lenta. As lutas em plano-seqüência, recurso típico do cinema verdade ou do jornalismo televisivo, dão origem ao “fantástico-real” típico do cinema chinês.

King Hu

Hu é o mestre do “fantástico-real”, cuja representação técnica foi, sem dúvida, desenvolvida por ele. Sem nenhum efeito digital, King Hu alcança resultados que, atualmente, são realizados com a ajuda dos computadores. Calígrafo de formação, o diretor cria pictogramas com os próprios elementos do filme, como faz com os galhos de árvore em alto contraste na abertura de A Touch of Zen (Xia Nu, Hong Kong, 1975). De acordo com COPPOLA (2004) o diretor é adepto da “montagem elástica”, onde a seqüência dos planos está direcionada para os efeitos imaginários que deseja provocar. Por isso, cada plano se transforma em um traço da ação, da mesma forma que o pincel traça uma linha de um pictograma. Pode ser um pedaço de espada, um movimento do braço e uma mão decepada que se sucedem numa velocidade tal que os torna imperceptíveis[4] para a consciência. Esses recursos desmaterializam a ação e provocam distúrbios espaciais na percepção do espectador, que são acentuados pelo jogo de luz e sombra. Muitas vezes, as cenas se dão na escuridão total de um plano geral, mas na hora do close o personagem está iluminado sem nenhuma relação de continuidade. Essas iluminação não orgânica somada às elipses da montagem provocam profundos distúrbios de espaço e tempo. O diretor também cria o ritmo narrativo a partir da oscilação entre espaços abertos e fechados. Os efeitos de montagem, somado aos cabos e trampolins, transformam seus personagens em seres voadores, rompendo com as leis da gravidade.

Os recursos técnicos utilizados pelos três realizadores orientais para provocar os distúrbios espaço-temporais serão reutilizados no final do século XX, a partir do uso das tecnologias digitais. São eles que darão origem às imagens de Tsui Hark.

Ultrapassando os mestres

É sempre bom lembrar que, ao contrário do pensamento ocidental que cria o realismo-fantástico, para os chineses o fantástico faz, de fato, parte do real. Por isso os heróis chineses possuem uma força sobre-humana, são capazes de voar e de ter intuições premonitórias. Isso fica bem claro no filme Futebol Shaolin (Chow,Stephen. Shaolin Soccer, Hong Kong, 2001), quando o mocinho lutador de kung fu apresenta as utilidades e as habilidades da luta estacionando um carro apenas com um golpe de luta ou fazendo o corte dos galhos de uma árvore. No realismo ocidental, o fantástico sempre tem uma causa externa ao racional. Ou trata-se de um sonho, uma invasão alienígena, uma experiência científica etc.

Tsui Hark utiliza a tecnologia cinematográfica ocidental para criar filmes comerciais, sem abrir mão, entretanto, da tradição chinesa do fantástico-real e de uma pesquisa estética e formal. Por isso, ele se apropria dos recursos utilizados pelos seus antecessores e os soma aos efeitos especiais digitais para criar a sua marca autoral. Para tal, cria, em 1984, a sua produtora, Film Workshop, e organiza sua própria companhia de efeitos especiais. Com a produtora, ganha mais liberdade artística e pode produzir os filmes que não tem tempo de realizar, como A better tomorrow, que levou John Woo ao estrelato internacional. Em 1997, Hark vai para os estúdios americanos, mas realiza filmes de pouco sucesso como The  master (1997), com Jet Li, e dois filmes de ação com Jean Claude Vann Damme: O embate (Knock Off, EUA/Hong Kong, 1998) e A colônia (Double Team., EUA/Hong Kong, 1997).

Em 2000, de volta a Hong Kong realiza Tempo e Maré, (Time and Tide, Hong Kong, 2000), em que mistura mercenários, assassinos profissionais e traficantes de drogas ao romance entre um jovem que trabalha como segurança particular e uma policial lésbica que ele engravida. Com esse filme, Hark investe no mundo tecnológico do século XXI e começa a freqüentar os festivais de cinema europeus. É a partir de Time and Tide que o diretor chinês leva sua “câmera-fluxo” ao extremo.

O início do filme é um bom exemplo das marcas de atualização das imagens dos mestres do diretor. De Suzuki, ele apresenta os maneirismos estilísticos como os enquadramentos de histórias em quadrinho e a iluminação estilizada. Da nouvelle vague, herda as filmagens em locação. De Hu e Cheh, utiliza os efeitos especiais criados para dar o toque de fantástico-real, como os saltos e vôos dos heróis. Mas a sua marca registrada, que é justamente a transformação da câmera-movimento em câmera-fluxo, faz com que tudo o que é sólido se torne fluxo. E isso só é possível com os recursos info-eletrônicos. A pequena câmera digital, com sua enorme mobilidade, é capaz de alcançar os espaços mais difíceis e realizar os movimentos mais incríveis. Alguns, com a câmera na mão de um excelente cinegrafista; outros através de uma boa steadycam. Ela passeia pela cena, se aproxima dos personagens observando-os um a um, se afasta para mostrar todos juntos e se aproxima de um ou outro, fazendo um zoom afetivo que leva o ator a iniciar a ação. Através do motion control, para ela se liberta dos limites do corpo humano e deixa de ser apenas um observador estando de corpo presente na ação. Isto pode ser verificado durante a perseguição de Jack em um edifício de apartamentos de Hong Kong: “Nós prendemos a câmera em um cabo, pusemos um trilho no teto e a mandamos para fora da janela por controle remoto. Não havia cameraman, nem operador (HARK, apud THORSEN) [5].

A câmera-fluxo também é capaz de distender ou acelerar seu movimento no interior do próprio plano, durante a pós-produção. Ela acelera para ver o que o personagem irá fazer, como na seqüência em que Tyler persegue o bandido Ratinho, que vai esconder sua arma no banheiro. Ela ralenta a ação para criar uma atemporalidade, como na seqüência em que Tyler observa o salão de festas do hotel procurando identificar o Ratinho. Nesse último caso, sua função é diferente da câmera lenta ocidental, que, normalmente, é a expressão de um tempo subjetivo, criando um novo tempo universal, uma imagem direta da eternidade.

A montagem também acentua a mobilidade da câmera-fluxo, já que permite que ela seja capaz de observar uma mesma cena, num mesmo instante, de diferentes pontos de vista justapostos seqüencialmente num movimento convergente. Este recurso cria uma distensão temporal que dá origem a uma nova forma de visualização da cena.

Esses recursos, reunidos ao longo do filme, constroem uma narrativa sensorial que faz com que o espectador vivencie diretamente as sensações provocadas pelo uso das novas tecnologias no mundo globalizado, onde telefones celulares funcionam como armas estratégicas de uma guerra pela sobrevivência no cotidiano, as identidades são mutantes, as narrativas tradicionais não conseguem mais explicar o “real” e o tempo e o espaço assumem uma nova dimensão onde não existe “em cima” ou “em baixo”, direita ou esquerda, e o tempo mistura todos os tempos agora.

Considerações finais

Se no início do século XX o cinema Ocidental chegou ao Oriente como uma grande mágica, no final do século a grande novidade foi o caminho inverso realizado pelo cinema produzido em Hong Kong. Os filmes de espadachins voadores, kung fu, tríades e outros gêneros mais sangrentos, possuem o perfil perfeito para o cinema globalizado: efeitos especiais, muita ação e poucos diálogos – um caminho aberto para a compreensão de todas as línguas. Pode-se dizer que isso é uma conseqüência das imagens que geram filmes de alto impacto sensorial, uma qualidade rapidamente reconhecida pelas produtoras de Hollywood. Os filmes das grandes produtoras americanas andam precisando de um sopro de vitalidade, capaz de romper com os clichês em que se transformaram os grandes filmes de ação baseados nos efeitos especiais digitais e nas releituras das antigas histórias. É por isso que nos anos 90, junto com os mangás e os animes japoneses, o cinema de Hong Kong está arrebanhando fãs por todo o mundo. E se a violência de John Woo e as artes marciais de Jackie Chan fazem sucesso internacional ao se incorporar aos clichês dos narrativos ocidentais, a câmera-fluxo e os distúrbios de espaço tempo de Tsui Hark levam o diretor para o terreno dos cult movies e realizam o desejo do diretor de não abrir mão da experiência estética, ainda que em filmes comerciais.

Referências Bibliográficas

BERGSON, Henri. Matéria e Memória: Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

_______________. Essai  sur lês données immédiates de la conscience.Paris.PUF.2003

COPPOLA, Antoine. Le cinéma asiatique. Paris: L’Harmattan, 2004.

DELEUZE, Gilles. A Imagem tempo. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1990.

________________. A imagem movimento. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1985.

GRANET, Marcel. O pensamento Chinês. Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 1997.

HAMUS-VALLÉE, Réjane. Les effets speciaux. Paris: Ed Cahiers du Cinéma, 2004

STROKES, Lisa and HOOVER, Michael. City on fire : Hong Kong cinema. London : Ed. Verso, 1999.


[1] Histórias em quadrinhos japonesas que possuem em traço característico.

[2] Em o Justiceiro de Xangai (The Boxer from shantung/ Ma Yong Zhen).

[3] Pode-se dizer que os zooms fazem parte do processo de hibridização entre as imagens televisivas e as cinematográficas, já que são um recurso típico da linguagem do jornalismo televisivo, que na época dava seus primeiros passos.

[4] Alguns planos não chegam a ter menos de 24 quadros por segundo.

[5] http://www.reel.com/reel.asp?node=features/interviews/harkHark Boiled

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