Mariana Quijadas Ferreira Garcia é graduanda em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
A “realidade” é um dos temas mais retratados no cinema brasileiro contemporâneo. Seja a realidade social, econômica, política ou cotidiana, este é um tema central dos enredos mais atuais, que discutem em pautas muito diferentes este assunto tão importante: o que é real e o que é ilusão?
Eduardo Coutinho, em sua obra Jogo de Cena (2007), longa-metragem de gênero documental discute de maneira muito particular a essência destes questionamentos e nos leva a refletir e ponderar qual o limite existente entre o que vivemos e o que pensamos ter vivido.
Para tanto, ele cria um ambiente cru, com cenário vazio e sem figurino próprio, onde os raros movimentos e mudanças de ângulo da câmera tendem a acentuar este aspecto minimalista do ser, sua pureza e transparência da trama, que desdobra-se nu diante do espectador.
O projeto do filme é selecionar mulheres com histórias emocionantes, que narram suas vivências para Coutinho, sentadas diante dele e da câmera, num teatro vazio. Em complemento, ele pede para atrizes, algumas muito famosas, interpretarem os relatos das mulheres e darem seu testemunho sobre esta experiência, de forma que o documentário é montado com a intercalação, união, e muitas vezes confusão destes relatos e interpretações, que resultam num produto emocionante e provocativo, que estimula a reflexão do espectador.
À medida que as atrizes tentam interpretar os textos um novo material é gerado, material este, que apesar de não ser real originalmente é tingido por uma emoção íntima das atrizes, que misturam suas vivências com as experiências das mulheres, criando as mais diversas reações.
A ideia da narração dos fatos é reviver a memória daquelas mulheres, que ora expõem, ora mascaram seus sofrimentos de uma maneira muito particular, tão pessoais que tornam-se impossíveis de serem imitadas. Já as atrizes remontam suas próprias memórias, da lembrança de verem as mulheres contando suas memórias, o que de certa maneira as liga de uma maneira impressionante, tornando muito tênue o limite entre a verdade e a ficção das cenas.
Acontece que até certo ponto, precisamos também ponderar o grau de realidade dos relatos das mulheres, isto sob o viés do poder que a câmera exerce sobre as pessoas, sua influência natural sobre a “verdade”. Cezar Migliorin em seu texto “O Dispositivo como Estratégia Narrativa” (2005), desenvolve muito bem esta perspectiva, onde a câmera tem um controle inerente sobre o comportamento das pessoas num vídeo, uma força que as faz interpretar inconscientemente a si mesmas, gerando uma verdade imediata e sem precedentes ou futuro temporal, a câmera é o registro de uma sucessão de “agoras” reais, e “o dispositivo é o que ativa o real”.
O que há de mais intenso e provocante na trama não é, no entanto o contraste entre a realidade e a ficção presente no embate entre as mulheres reais e as atrizes, mas o poder que estas cenas (reais ou não) derramam sobre os espectadores.
O fato é que apesar de muitas vezes sabermos que a história contada pelas atrizes é “meramente” uma interpretação da realidade, sua própria comoção com as histórias é tão verdadeira que nos leva a tê-las como reais. Mesmo quando há a repetição de determinados trechos dos relatos, quando sabemos que aquilo se trata de mera encenação, o poder de realidade exercido pelo vídeo sobre nós é tão forte que nos aprisiona numa verdade ilusória.
Arrisco dizer que o comportamento das mulheres é de tal maneira ilógico, e algumas vezes chocante, que nos faz colocarmo-nos em seus lugares. Torna-se inevitável uma tentativa de comparação entre suas memórias e as nossas próprias, o que várias vezes nos insere naquele contexto conturbado de reviver e recriar dramas, assim como as atrizes profissionais tentam fazer.
A verdade é que esta nuvem de realidades dubitáveis toca o âmago de nossa consciência própria, nos faz refletir sobre nós mesmos e sobre os efeitos e defeitos da verdade muitas vezes idealizada por nós; o lado que queremos olhar da moeda.
Jogo de Cena é um convite a nos olharmos tão francamente quanto a um espelho, de nos enxergarmos um no outro, como as atrizes e as mulheres comuns dentro do teatro vazio. É a oportunidade de nos vermos pequeninos, refletidos dentro dos olhos “dos Outros”, como propõe a teoria existencialista de Sartre em sua obra Entre Quatro Paredes.
Referências Bibliográficas
BERNADET, Jean-Claude. Cineastas e Imagens do Povo. São Paulo: Brasiliense, 1985.
MIGLIORIN, Cezar. O Dispositivo como Estratégia Narrativa, 2005. Disponível em: <http://videodispositivo.blogspot.com/2005/07/o-disposivo-como-estratgia-narrativa.html> Acesso em: 30 mai. 2010.
SARTRE, Jean Paul. Entre Quatro Paredes. São Paulo: Civilização Brasileira, 2007.
Parabéns pelo artigo, sua explanação e seu ponto de vista é interessante principalmente com relação a variação das emoções das atrizes em cada cena.
O segredo do sucesso é a perseverança com perspicácia!!!