Articulações fílmicas da percepção do espaço e da realidade

Maria Helena Braga e Vaz da Costa é Arquiteta pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Doutora em Estudos de Media (University of Sussex – UK), Professora do Programa de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas e do Departamento de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Coordenadora do Grupo de Pesquisa Linguagens da Cena: Imagem, Cultura e Representação e pesquisadora do CNPq.


“Uma das coisas mais curiosas sobre experiências cinematográficas profundas é que você sempre lembra onde viu os filmes” (Berger, 1973).

Neste artigo tecerei alguns comentários sobre a capacidade do cinema, enquanto meio de representação, de articular diferentes formas perceptivas do real. A eterna correlação entre as construções reais e subjetivas no que toca tanto a visão quanto a construção de um imaginário coletivo regido pela percepção e pela construção do que conhecemos pela realidade concreta, e a idéia de uma constante e permanente troca e sobreposição entre imagens, textos e representações é aqui objeto de interesse.

Contudo, antes de adentrar propriamente no assunto, gostaria de abrir um parêntese para falar de uma experiência – aparentemente sem relação com o assunto sobre o qual trata este artigo -, que acredito, auxiliará na tragetória da reflexão que pretendo desenvolver. É claro que justificarei mais adiante o porquê de aludir ao assunto.

Há algum tempo atrás, no Departamento de Artes da UFRN, falei aos alunos do curso de Licenciatura em Teatro e em Artes Visuais sobre escolhas. Referia-me naquela ocasião ao fato de sermos, em grande parte e enquanto sujeitos, o resultado das nossas escolhas. Afirmei acreditar ser a partir das escolhas que fazemos em nosso dia-a-dia ao longo do tempo que construímos, ou não, uma vida pessoal e profissional satisfatória e constituimos a nossa própria identidade.

Mais ou menos no mesmo período, um amigo muito próximo, “acusou-me” de ser uma pessoa intransigente. É claro, que minha primeira reação foi discordar; achar o seu comentário um absurdo, entre tantos que ouço. Pensei: como alguém tão racional – como eu me considero – pode ser intransigente? Ou estaria a intransigência talvez diretamente relacionda à racionalidade? Pus-me então a refletir sobre o assunto e propus a mim mesma tirar um proveito acadêmico da questão – prática exercida constantemente.

Pensei: não seria contraditório? Intransigência e racionalidade “compondo” um mesmo sujeito… Quem sabe a contradição estivesse demarcada por ser a intransigência normalmente avaliada pelo viés do “defeito”, como algo negativo.

Lembrei-me da afirmação de Ehrhardt (1994) de que compreenção, por exemplo, constantemente entendida como sinônimo de perdão, tolerância ou benevolência, e resultado de uma prática imposta culturalmente de “aprendermos, no nosso ambiente cultural, que aborrecimento, raiva e capacidade de imposição são coisas negativas” (Ehrhardt, 1994, p.193). Fazendo uma analogia, não seria agora o caso de considerar a alternativa de refletir sobre a intransigência pelo viés da qualidade? Ou seja, durante a minha reflexão sobre o assunto, o que me pareceu razoável propor, no mínimo, foi considerar intransigência como um adjetivo aplicável, sem nenhum preconceito, à personalidade de qualquer sujeito, sem juízo de valor.

Passei então a considerar a conexão intransigência / escolhas. Sendo um adjetivo que varia em acordo com o discurso, e que perdeu muito da sua força na medida em que ficou estigmatizada nas redes da linguagem – como a palavra “crítica”, por exemplo, que sempre remete a um sentido negativo (na língua portuguesa pelo menos) – intransigência poderia ser justificada por algumas escolhas qualitativas no sentido de insistência/maturidade/teima! Intransigência assim, seria uma qualidade fundamental àqueles que não só buscam, mas conseguem insistir nos seus desejos e sonhos – transformando-os em realidade.

Tendo feito essa introdução, gostaria de traçar algumas conexões com o tema proposto neste artigo adiantando ser nessa direção que gostaria de refletir sobre o cinema: isto é, no contexto da escolha e da intransigência.

Existe aparato mais intrinsicamente constituído e condicionado em si mesmo das escolhas? Ou mais intransigente que a imagem fílmica e o discurso construído e atrelado a ela? Sabemos que filme não permite alteração/modificação ou ajustes uma vez tendo sido “formado” – apesar de ser o filme em si mesmo constituído por meio de “cortes”, “edições”, montagem, etc.; isto é, por uma diversidade de imagens manipuladas mas que ao final constituem um todo imagético “amarrado” por um constructo narrativo.

Um filme é um corpus de imagens; e este tem sido constantemente pensado e analisado com base em um questionamento específico: sendo articuladas as imagens em relação aos fragmentos dentro e fora (como rebatimento) da narrativa fílmica, como estas se relacionam com a nossa experiência (individual e/ou coletiva) no mundo?

“No mundo real, algo está acontecendo e ninguém sabe o que vai acontecer. No mundo-imagem, aquilo aconteceu e sempre acontecerá daquela maneira” (Sontag, 2004, p.184).

Ademais, acrescem o fato de as imagens fílmicas serem em muitos casos consideradas ou como registros do real, visibilidades da realidade, ou fantasmas, alucinações que também são provenientes e/ou relacionadas diretamente e inequivocamente à realidade concreta. Contudo, deve-se considerá-las principalmente – mesmo se indispensável sua conexão com o real – modos como a realidade e sua concretude objetificada se oferece à percepção, à imaginação, à transformação do limite da sua aparência para, ficcionalmente ou não, contextualizar nossa vivência e nosso imaginário.

Filme, como a fotografia, como acrescenta Sontag (2004), supõe “descontinuidade, formas desarticuladas e unidade compensatória; arrancar as coisas do seu contexto (vê-las de modo renovado), associar as coisas de modo elíptico, de acordo com as imperiosas mas não raro arbitrárias exigências da subjetividade” (p.112).

Precisamos lembrar o conceito de “espaço narrativo”, desenvolvido por Heath (1993) no qual a idéia basilar é a de que a construção do espaço pelo cinema advém de um discurso projetado pela e através da visão e que esse discurso está impregnado de formas simbólicas. A noção do espaço narrativo, ou espaço fílmico, corresponde então ao espaço imaginado.

Capaz de fragmentar o espaço, como, por exemplo, através do isolamento de uma face ou objeto por meio de um close-up, o cinema passa a manipular e utilizar fragmentos imagéticos para, quebrando ou não com as estruturas narrativas convencionais, estabelecer novos formatos visuais e perceptivos para o espaço fílmico. Segundo Degli-Espositi (1998),

Um uso fragmentado de câmera-lenta nos filmes enfatiza uma percepção expandida, segmentada e reconstruída do tempo real, agora dada uma visibilidade hiperbólica através da desconstrução. A prática do detalhamento, do tempo nesse caso, pretende alcançar um objetivo: sua própria fragmentação icônica. Esse uso da câmera é comumente associado ao processo da hypertextualidade que interrompe a narrativa para tomar outra direção, e outra, e outra, e possivelmente voltar à primeira opção ou alternativamente outra completamente distinta (p.7) (Tradução minha).

Se a experiência do espaço – como uma prática social e material – é percebida e representada visual e culturalmente pelo aparato cinematográfico, o espaço fílmico é ao mesmo tempo agente e resultado da produção de novas formas de percepção do espaço.

Portanto, a interação entre a “prática espacial” (que acontece com a percepção da realidade) e o “espaço fílmico”, que é essencialmente o espaço “construído” pela imaginação, torna-se responsável pela produção de novas formas de perceber, construir, entender e modificar o espaço real. É exatamente o que Sontag (2004) descreve de forma clara: “…o realismo fotográfico pode ser – e é, cada vez mais – definido não como o que ‘realmente’ existe, mas como aquilo que eu ‘realmente’ percebo” (Sontag, 2004, p.136).

Em texto anterior (Costa, 2006), apontei para a significativa conexão entre a imagem do real, e seus diferentes “fragmentos” captados e modificados espacialmente e temporalmente pela câmera que expandindo, segmentando e reconstruindo o tempo e o espaço, participa efetivamente do processo hypertextual que aparece em meio ao processo perceptivo e de construção do espaço fílmico e do imaginário coletivo. A “interrupção narrativa” a que se refere Degli-Espositi citada acima assume então uma dimensão mais complexa na medida em que pode ser compreendida como agente produtor de novas e díspares formas de percepção, construção, re-construção e imaginação do tempo e do espaço.

Interessante notar que na medida em que o retorno ao mesmo “banco de referências” (de imagens) parece ser culturalmente imposto e, portanto, inevitável, mesmo assim o processo permite que se construam novas percepções (e representações) no decorrer da prática das escolhas. A diversidade nos modos de manipulação dos “fragmentos” reais ou fílmicos e dos seus mais diferentes movimentos – que advém igualmente das escolhas – abre a meu ver uma infinidade de questões sobre o espaço real e as diferentes formas como este é representado pelo cinema, e principalmente como este é percebido, “lido” e interpretado pelo espectador.

Nessa perspectiva podemos considerar a forte relação entre a construção fílmica narrativa – iniciando com a escolha das imagens e culminando com a ênfase dada aos fragmentos espaciais, ao enquadramento, à mise-en-scène, a diferentes movimentos, e à inserção dos personagens em locações geográficas específicas – e o mundo real das relações sociais (Crang, 1998; Lury e Massey, 1999) e entender as construções fílmicas não apenas como objeto de estudo e criticismo, mas como re-ordenamento das imaginações espaciais que adquirimos do mundo que em si mesmas advém das nossas próprias escolhas tomadas de forma individual e/ou coletiva.

O cinema, sem a menor sombra de dúvida, tem assumido um papel central na construção das imaginações espaciais dos indivíduos, ajudando a “inventar” e re-inventar espaços de vivência do real e de subjetividade no contexto das imagens de uma grande diversidade de lugares. Ademais, “A realidade sempre foi interpretada por meio das informações fornecidas pelas imagens” (Sontag, 2004, p.169), e não devemos esquecer que estas não se nos apresentam “por vontade própria”, mas a partir da escolha dos agentes/sujeitos atuantes.

O que há de fascinante nos filmes é a capacidade de estabelecer entre a nossa experiência e a ficção, entre as duas imaginações, a nossa e a que está projetada, um vínculo de coincidências e proposições.

“… a ficção torna-se mais real que a própria realidade. São nesses momentos narrativos que a ficção consegue, com muito mais propriedade que a narrativa biográfica, expressar a vida de uma pessoa em toda a sua extensão e complexidade… O cinema realiza um tipo de educação da sensibilidade que a vida real não é capaz de realizar” (Coutinho, 2009, p.83).

Podemos perceber em Coutinho (2009) uma tentativa de idealizar o cinema/filme como o meio através do qual podemos comparar/sobrepor e escolher nossas memórias visíveis; é como se ele nos apresentasse a fómula selecionada – ou talvez a única encontrada – para sua escolha do que deve permanecer no rol dos processos de assimilação, retenção e dispensa desse contínuo fluxo de imagens ao qual nos referíamos.

Cinema materializa uma percepção visual que advém da conjunção da imagem com a imaginação. Esta capacidade é a sua maior e mais interessante propriedade, a de formar imagens a partir de coisas não percebidas, não visíveis e também subjetivas. Como Berger (1973) defendeu, não é realmente possível desatrelar o que vemos do que sabemos. Filmes reformulam e ressituam conotações culturais e sociais tratando das nossas pressuposições culturais básicas e não questionadas sobre o espaço, as fronteiras entre nós e os outros.

O contínuo processo de construção e produção de novas percepções espaciais possibilitadas pelo cinema – desde o início do séc. XX – provocou com o passar do tempo o surgimento do que Fredric Jameson (2004) caracteriza como o “momento pós-moderno”: um tempo em que “a sociedade se submerge em imagens, ocorrendo uma estetização e visualização mais completa da realidade” (pág 23-24).

De fato as discussões sobre a contemporaneidade, que refletem sobre a natureza das mudanças na cultura visual, convergem para o cenário de “um tipo” de realidade pautada em uma cultura na qual “as imagens não mais se referirão ou farão a mediação de uma realidade socialmente dada”, ao contrário, elas serão virtualmente a realidade ela mesma (Santaella, 2003, p.143).

Em outras palavras, todo o senso humano estará engajado em um ambiente eletrônico que se torna “virtualmente” indistinto das realidades sociais e materiais que as pessoas vivenciam (Santaella, 2003). Isto é, estamos todos “imersos” em uma realidade na qual a sua própria existência e vivência se baseiam agora em modos muito mais subjetivos e complexos de percepção do real, do que na concretude da visibilidade do próprio real. Rocha (2008) destaca:

“A cenarização do mundo e a conversão do humano em imagem promovem uma aproximação impactante entre espaço vivido e espaço visto, entre presencialidade e mediação” (p.92).

Descartamos uma imagem no momento em que a vemos e embarcamos em outra e assim sucessivamente. Vivemos, literalmente, o “limite do olhar” passando de uma imagem para outra, sendo conduzidos a um estado ininterrupto: “imaginamos ver o real e o que vemos é sua encenação” (p.92). É a “estetização da realidade” surgindo a um só tempo de imagens ficcionais e reais.

Trata-se, portanto, do imperativo do visível – que não é mais concreto/real nos moldes como o definíamos anteriormente – mas profundamente midiático. Configura-se então uma nova manifestação de um original domínio da realidade das imagens, que produz e induz a modificações profundas na esfera da percepção espacial que se constrói nos interstícios da narrativa e da factualidade. Não seria este o tempo da intransigência?

Bibliografia

BERGER, J. Ways of Seeing. Londres: Penguin, 1973.

COSTA, M.H.B.V. Imagens e narrativas da violência: o cinema, o espetáculo e a perspectiva pós-moderna. In FREIRE-MEDEIROS, B.; COSTA, M.H.B.V. da (Orgs.) Imagens Marginais. Natal: EDUFRN, 2006, p. 131-146.

COUTINHO, L.M. O olhar cinematográfico. In CUNHA, R. (Org.) O Cinema e Seus Outros. Brasília: LGE Editora, 2009, p. 77-88.

DEGLI-ESPOSTI, C. (Ed.). Postmodernism in the Cinema. New York: Berghahn Books, 1998.

CRANG, M. Cultural Geography. Londres: Routledge, 1998.

EASTHOPE, A. (Ed.). Contemporary Film Theory. Londres: Longman Group Ltd., 1993.

EHRHARDT, U. Meninas Boazinhas Vão para o Céu, as Más Vão à Luta. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 1994.

HEATH, S. From narrative space. In: EASTHOPE, A. (Ed.). Contemporary Film Theory. Londres: Longman Group Ltd., 1993, p. 68-94.

JAMESON, F. Espaço e Imagem: Teorias do Pós-moderno e Outros Ensaios. Organização e tradução de Ana Lúcia de Almeida Gazzola. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2004.

LURY, K.; MASSEY, D. Making connections. Screen, v.40, n.3, 229-238, Outono 1999.

MANGUEL, A. Os Livros e os Dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

ROCHA, R. M. Cidades Palimpsestas, Cidades Midiáticas: Limiaridades e Errâncias que Produzem Significação. In PRYSTHON, A. e CUNHA, P. (Orgs.) Ecos Urbanos: A Cidade e suas Articulações Midiáticas. Porto Alegre: Editora Sulina, 2008, p.91-110.

SANTAELLA, L. Culturas e Artes do Pós-humano: das Culturas das Mídias à Cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003.

SONTAG, S. Sobre Fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

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Este post tem um comentário

  1. Author Image
    tatiele

    nada a ver com o que eu queria nao gostei do seu artigo

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